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Perigos da obediência
Livro e filme retratam como a sociedade administrada e a manipulação da linguagem desenvolvem no indivíduo o ódio pelo outro
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Teria o mês de setembro alguma afinidade
secreta com a violência? Diante do número de matanças que
ocorreram ou começaram nele,
poderíamos brincar com a
ideia: em 2001, os atentados de
Nova York; em 1939, o início da
Segunda Guerra; em 1970, o
massacre dos palestinos na
Jordânia (o "Setembro Negro"); em 1792, grassa o Terror
em Paris, que deu origem aos
termos "septembriser" e "septembrisade", significando
"massacre de opositores" -e
haveria outras a lembrar.
Nesse setembro de 2009, um
filme -"A Onda" [em cartaz
em SP]- e um livro -"LTI - A
Linguagem do Terceiro Reich"
[de Victor Klemperer, trad. Miriam Bettina Paulina Oelsner,
ed. Contraponto] nos convidam a refletir sobre a facilidade
e a rapidez com que a violência
se alastra, fazendo com que
pessoas comuns se convertam
em sádicos ferozes.
O primeiro transpõe para a
Alemanha atual um fato que teve lugar em 1967, na cidade de
Palo Alto [EUA].
Querendo mostrar a seus
alunos como o fascismo se apoderou das massas nos anos
1930, um professor põe em
prática um "experimento pedagógico": durante uma semana, organiza com eles o núcleo
de um movimento ao qual dão
o nome de "Terceira Onda".
Sem lhes contar que ele só
"existe" na escola, vai treinando-os com as técnicas consagradas pelo totalitarismo: exercícios de ordem unida, uniformes, adoção de um símbolo e
de uma saudação etc.
Os efeitos dessas coisas aparentemente inocentes não tardam a surgir: como num passe
de mágica, o grupo adquire extraordinária coesão, que dá a
cada integrante a sensação de
ser parte de algo "grande" ou,
pelo menos, maior que sua própria insignificância.
Aparecem também aspectos
menos simpáticos: intolerância
contra os que se recusam a participar, desprezo, ódio e logo
agressões a supostos opositores (os alunos de outra classe,
que estão estudando o anarquismo, passam a ser vistos como anarquistas, e portanto inimigos).
Escolhido como chefe pela
garotada, o professor se identifica com o papel; rapidamente,
o "experimento" foge ao controle -dele e dos próprios integrantes- e termina em tragédia: na vida real, um rapaz perde a mão tentando fabricar
uma bomba caseira -o que
custou a Jones sua licença para
lecionar- e, no filme... bem,
não vou contar o desfecho.
Em "Psicologia das Massas e
Análise do Ego", Freud desvendou os mecanismos psicológicos que nas "massas artificiais"
criam a disciplina e o devotamento ao líder: instituindo-o
no lugar do superego, os indivíduos que delas participam passam a obedecê-lo mais ou menos cegamente e, imaginando-se igualmente amados por ele,
identificam-se uns com os outros, pois de certo modo são todos filhos do grande Pai.
Instrumentos
Nesse processo, abdicam de
sua capacidade de pensar por si
mesmos; compartilhando a
crença na doutrina proposta
pelo chefe, que geralmente divide o mundo em bons (os
adeptos da "causa") e maus (todos os demais), eles a transformam em instrumento de uma
dominação capaz de os arrastar
a atos que, se não fizessem parte do grupo, jamais teriam coragem de praticar.
Muito bem dirigido e interpretado, o filme mostra como a
euforia de ser membro de algo
supostamente tão "poderoso",
e o desejo de agradar ao líder,
vão dando margem a ações cada
vez mais próximas da delinquência.
Tudo se justifica em nome da
"causa", que no caso é nenhuma: a "Onda" não tem conteúdo, a não ser ela mesma e uma
vaga solidariedade entre seus
membros, que se incentivam e
protegem mutuamente.
Forças destrutivas
À medida que transcorre a
semana, no íntimo dos adolescentes dão-se modificações de
vulto.
Por um lado, eles transferem
seu entusiasmo juvenil para o
movimento, que desperta neles
qualidades até então adormecidas: mostram-se criativos, capazes de levar a cabo projetos
que exigem organização e trabalho conjunto (como, por
exemplo, a montagem de uma
peça de teatro).
Por outro, a vibração dessa
intensa energia como que dissolve os freios sociais e morais e
libera forças destrutivas das
quais não tinham consciência:
ameaçam colegas, intimidam
crianças, um rapaz esbofeteia a
namorada que se recusa a participar do grupo, outro adquire
um revólver, um terceiro tenta
afogar um adversário no polo
aquático...
Nas primeiras décadas do século 20, e em escala muitíssimo
maior, os mesmos fenômenos
ocorreram em várias sociedades europeias.
Os mais graves tiveram lugar
na Alemanha, cujo führer arrastou o mundo para uma guerra que deixou dezenas de milhões de mortos e refugiados.
Muito se escreveu sobre por
que os alemães aceitaram seguir um demagogo enlouquecido e por 12 anos aplaudiram
suas iniciativas e seus discursos
delirantes, que Victor Klemperer -o autor de "LTI"- compara aos "desvarios de um criado
bêbado".
Entre os motivos que os levaram a isso, o analisado por ele
se destaca como dos mais importantes: a manipulação da
linguagem.
O estudo da LTI -sigla de
"Lingua Tertii Imperii", ou do
Terceiro Reich- é uma das
mais originais contribuições à
compreensão do fenômeno totalitário. Examinando cartazes,
livros, jornais, revistas, conversas ouvidas e discursos de dignitários do regime, Klemperer
(irmão do regente Otto) mostra
como uma ideologia absurda e
cruel se entranhou "na carne e
no sangue das massas".
Impostas pela repetição e pelo controle absoluto dos meios
de comunicação, as frases e expressões nazistas foram "aceitas mecânica e inconscientemente" pelo povo alemão, passando a moldar sua autoimagem e a justificar a barbárie, pelo método simples e eficaz de a
fazer parecer natural.
Não é possível, neste espaço,
mais do que uma breve referência aos recursos de que se valeram Goebbels [o ministro da
Propaganda no regime nazista]
e sua corja para obter tão fantástico resultado.
Numa prosa límpida, que a
tradutora Miriam Oelsner restitui com fluidez e precisão, o
autor vai desmontando os ardis
que inventaram.
Seu livro revela como a criação de novas palavras, o uso
desmesurado de abreviações e
de superlativos, a mescla de
tecnicismo "moderno" e apelo
ao "orgânico", o emprego de estrangeirismos bem-soantes,
mas intimidadores, a ênfase declamatória, o exagero, a mentira, a calúnia e, ao mesmo tempo, a pobreza monótona de um
discurso calculado para abolir
toda nuança e toda reflexão se
combinam para produzir alienação.
Até as vítimas do regime empregam, sem se dar conta, termos e expressões da "língua
dos vencedores"!
No filme, temos vários exemplos do poder ao mesmo tempo
mobilizador e mistificador da
linguagem. Um deles é a explicação dada pelo professor para
o exercício de marchar no lugar: "melhorar a circulação".
Ritmo acelerado
O bater dos pés em uníssono
cria um efeito de homogeneidade: a energia posta na pisada
se espraia por entre os alunos,
fazendo-os sentir-se parte de
um só corpo e capazes de grandes feitos.
O ritmo se acelera, uma expressão beatífica aparece no
rosto de alguns, os olhos brilham -alguma coisa está de fato circulando, uma exaltação
crescente- e, sem se darem
conta, rendem-se à manipulação de que estão sendo objeto.
(Em "O Triunfo da Vontade",
Leni Riefenstahl utiliza a aceleração das respostas dos recrutas à pergunta "de onde você
vem?" para sugerir que o movimento hitlerista está se expandindo irresistivelmente.)
O que ambos -filme e livro-
revelam sobre a capacidade do
ser humano para obedecer sem
questionar é confirmado por
diversos experimentos científicos; para concluir essas observações, mencionemos o mais
famoso deles.
Em 1961, por ocasião do processo Eichmann, Hannah
Arendt falava da "banalidade
do mal": o carrasco nazista não
era um monstro, mas um homenzinho insosso como tantos
que existem em toda parte.
O psicólogo Stanley Milgram
decidiu por à prova a ideia de
que, sob certas condições, qualquer pessoa pode agir como
Eichmann: na Universidade
Yale (EUA), convocou voluntários para o que ficou conhecido
como Experimento de Milgram
("google it", caro leitor, e veja
por si mesmo os detalhes do
teste).
Em resumo, pedia aos "instrutores" que acionassem um
aparelho de dar choques a cada
vez que os "sujeitos" errassem
na repetição de certas palavras.
A voltagem iria num crescendo, atingindo rapidamente patamares que, era-lhes dito, poderiam causar danos irreversíveis ao cérebro.
A máquina, é claro, estava
desligada; do outro lado da parede, o ator que representava a
pessoa sendo testada permanecia incólume, apenas gritando
como se estivesse de fato sendo
eletrocutado.
O objetivo do experimento
não era avaliar a memória dele,
mas até onde seriam capazes de
ir os "instrutores".
Para surpresa de Milgram,
dois terços deles superaram o
limiar além do qual o choque
levaria a prejuízos irreparáveis.
Ao chegar ao nível perigoso,
muitos se mostravam aflitos,
mas cediam aos pedidos do psicólogo para prosseguir; mesmo
cientes das consequências para
o outro, a garantia de que nada
lhes aconteceria bastava para
continuarem a apertar os botões. O artigo em que Milgram
discute sua experiência -cujo
título tomo emprestado para
estas notas- tornou-se um
clássico da psicologia.
Ela foi reproduzida em outros lugares, com outros sujeitos, por outros cientistas
-sempre com resultados próximos aos da primeira vez.
A conclusão do psicólogo
americano merece ser citada:
"A obediência consiste em que
a pessoa passa a se ver como
instrumento para realizar os
desejos de outra e, portanto,
não mais se considera responsável por seus atos. Uma vez
ocorrida essa mudança essencial de ponto de vista, seguem-se todas as consequências da
obediência".
Outros experimentos, como
o Experimento Prisional de
Stanford, de 1971, confirmam
os achados de Milgram e, a meu
ver, também a análise de Freud
sobre a submissão ao líder.
Nestes tempos em que, sob
os mais variados pretextos, volta-se a solicitar nossa adesão a
ideais de rebanho, impõe-se
meditar sobre o que em nós se
curva tão facilmente à vontade
de outrem.
A "servidão voluntária" de
que falava La Boétie nos idos de
1500 espreita nas nossas entranhas; já o sabia Wilhelm Reich,
cujo alerta é hoje tão atual
quanto em 1930: "O fascista está em nós".
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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