São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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"Eric é Deus"

Em "Eric Clapton - A Autobiografia", o roqueiro inglês que influenciou a música pop desde os anos 60 fala de blues e do consumo de drogas

LOBÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando recebi a incumbência de fazer a resenha deste livro pensei: Clapton na primeira pessoa!
Deve ser muito interessante ouvir as histórias de um homem que ajudou a escrever uma parte significativa da história do blues e do rock and roll e também de uma das maiores lendas vivas que revolucionaram a música e o comportamento de uma geração na última metade do século 20. E percebi, ao iniciar a leitura, que seria bem mais do que boas histórias. A narrativa é muito direta e muito honesta. E eu, em pleno caos aéreo, pude ter um excelente parceiro para me acompanhar em três dias de espera, rolando por cadeiras apertadíssimas, lanchinhos impostos e labirintos de "fingers" em aeroportos colapsados. Afinal, são 400 páginas relatando uma vida cheia de aventuras, glórias, procuras e muitos eventos trágicos...
O livro aborda todos os aspectos pessoais que começam em sua infância, em Ripley, no interior da Inglaterra, sua família, sua angústia em se perceber um bastardo (o vazio de um pai que perseguiu por toda a vida e de uma mãe que nunca se assumiu como tal). A origem humilde, suas primeiras impressões num mundo devastado pelo pós-guerra.
Ao contrário do que muitos podem pensar, o livro não é um workshop de guitarras, mas mostra com nitidez toda sua trajetória pela música, desde que ganhou um prêmio na escola tocando "Greensleeves" na flauta doce, passando por suas primeiras guitarras, como acabou por inventar seu próprio som (como colocava a posição dos microfones em seu amplificador) até as escolhas dos modelos de guitarra que foram marcos fronteiriços em seu som. No início, as Gibson. Depois, as Fender Strat.
Sempre autodidata e amante do blues de raiz, foi um purista que levou tempo para enfrentar uma carreira solo. Em meio a uma trajetória musical que desvenda as entranhas do que seria a cena seminal do rock inglês -bandas nascendo por todos os lados, Rolling Stones, os Beatles, a cena de blues inglesa, The Who, Yardbirds, Jonh Mayall-, é interessante perceber que praticamente todos os caras passavam por uma escola de artes.
O próprio Clapton sempre adorou literatura inglesa e pintura. Ronnie Wood, Mick Jagger... A cena estava cheia de mods e beatniks, todo mundo influenciado pelo jazz, a "beat generation", o blues e o recém-nascido rock and roll.

Encontros notáveis
O que é bastante notório nessa fase é que, pelo fato de bandas e artistas americanos excursionarem com freqüência pela Inglaterra, surgiram possibilidades de encontros dessa rapaziada com seus maiores ídolos. E, como a maior parte deles precisava de bandas de apoio, o destino se arranjou de colocá-los lado a lado, fato que acabou legitimando e dando nova dinâmica àquilo tudo.
Afinal de contas, os bluseiros de Chicago, como Muddy Waters, Howlin" Wolf, B.B. King e principalmente Buddy Guy, levantaram o moral daqueles branquelas metidos a tocar o blues, pois eles realmente tocavam... E bem! Dá para se entender a compatibilidade que o jovem Clapton teve com o blues, sendo esse um estilo com normas e leis próprias, com um humor muito sutil e um extravasamento despudorado da dor e da falta... Tudo isso mantendo uma cadência forte e, como se diz na gíria, "para trás" ("laid back").
Ou seja, você pode explodir de emoção, desde que continue no balanço cadenciado da levada (esse tipo lento e pesado de tocar é um dos grandes desafios do blues).
Com essa paixão e com a obsessão da frase perfeita, testemunhamos sua breve e atribulada passagem pelos Yardbirds, pelo grupo do John Mayall e sua precoce aclamação nos grafites das paredes de toda Londres: "Eric is God". Eric fala sobre seus amores e desamores, sua timidez endêmica, seu medo das mulheres (a mãe que nunca o assumira) e sua tendência a amar desesperadamente as coisas impossíveis, como a mulher de seu melhor amigo, e a verdadeira obsessão pelo vício em si.
Mediante o buraco existencial deixado pela criação, somado a uma folclórica imagem de grandes músicos -como Ray Charles, Charlie Parker e Billie Holyday, com seus eternos envolvimentos com drogas pesadas-, Clapton desencadeia uma vida de alto consumo de drogas pesadas, álcool e muita loucura... Muitas ferraris destruídas, muitas viagens repentinas...
Estava na Inglaterra num dia e, no outro, a bordo de um avião com Lennon para um concerto beneficente no Canadá (por sinal, o episódio é hilário). Não precisa dizer que a plêiade de episódios caríssimos aos amantes do rock é enorme. Histórias com Jimi Hendrix, Duane Allman, George Harrison (e seu clássico "affair" com Patty, mulher de George, mais tarde senhora Clapton).
O Cream se formando no meio da Copa do Mundo de 66, Blind Faith como o primeiro "supergrupo", a paixão por Delaney, Bonnie and Friends quando comete seu primeiro álbum, a lenda do Derek and the Dominos, o relato da feitura de praticamente todas as canções mais importantes, como "Wonderful Tonight", "Bell Bottom Blues", "Presence of the Lord", "Layla" e "Tears in Heaven", entre outras.

Sem culpa no cartório
O livro prossegue com sua narrativa cativante e confessional sem nunca descambar para o maniqueísmo ou a culpa, muito menos para a autoglorificação. É muito bem-escrito e mostra uma pessoa completamente autoconsciente do que representa para si e o mundo.
A maneira como relata suas perdas é comovente, e não há como não se emocionar quando conta como conseguiu sobreviver a elas. E também perceber que, sem a música, ele seria uma pessoa bem mais vulnerável e possivelmente seu destino fosse algo terrível.
Com a trágica perda do seu filho, sua abstinência de drogas e álcool desde 1987, a criação da clínica de reabilitação Crossroads, nas Antilhas, para, aos 51 anos, casar-se com a sua atual mulher, vinte e tantos anos mais nova. Vemos um novo Clapton, desfrutando das coisas simples da vida doméstica: suas manias com a internet, suas filhas, seu barco de 150 pés, caçadas, assistir a um bom campeonato de críquete, seus shows beneficentes...
Enfim, uma pessoa que se fez sábia, já não tão a fim de tanta estrada, mas sempre pronta para fazer um som com um músico interessante, com emoções verdadeiras. Sim... Se eu tivesse que sintetizar, diria que essa é a história de um homem que perseguiu sua essência em todos os seus momentos. Mesmo naqueles de grande confusão, egolatria e desencontros.
Mesmo em todos os vexames, porres e caminhos malfadados e nas perdas trágicas. Temos diante de nós um homem com enorme sabedoria, com a profundidade dos sobreviventes e com a beleza de quem com tudo isso apreendeu. Considero esse livro uma leitura obrigatória para quem quiser entender a música do século 20, uma cultura alienígena a se tornar cultura adquirida e genuína, o comportamento de uma geração que estaria por mudar o mundo com sua maneira de viver e seus compromissos ingênuos ou não com a liberdade.
E, o mais importante, a história comovente de um homem cujos talento, sensibilidade e sofrimento o conduziram ao palácio da sabedoria.

LOBÃO é músico e compositor.


ERIC CLAPTON - A AUTOBIOGRAFIA
Autor:
Eric Clapton
Tradução: Lúcia Brito
Editora: Planeta (tel. 0/xx/11/ 3087-8888)
Quanto: R$ 44,90 (400 págs.)



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