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"Eric é Deus"
Em "Eric Clapton - A Autobiografia", o roqueiro inglês que influenciou a música pop desde
os anos 60 fala de blues e do consumo de drogas
LOBÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando recebi a incumbência de fazer a resenha deste livro pensei:
Clapton na primeira pessoa!
Deve ser muito interessante
ouvir as histórias de um homem que ajudou a escrever
uma parte significativa da história do blues e do rock and roll
e também de uma das maiores
lendas vivas que revolucionaram a música e o comportamento de uma geração na última metade do século 20.
E percebi, ao iniciar a leitura,
que seria bem mais do que boas
histórias. A narrativa é muito
direta e muito honesta. E eu,
em pleno caos aéreo, pude ter
um excelente parceiro para me
acompanhar em três dias de espera, rolando por cadeiras
apertadíssimas, lanchinhos
impostos e labirintos de "fingers" em aeroportos colapsados. Afinal, são 400 páginas relatando uma vida cheia de
aventuras, glórias, procuras e
muitos eventos trágicos...
O livro aborda todos os aspectos pessoais que começam
em sua infância, em Ripley, no
interior da Inglaterra, sua família, sua angústia em se perceber um bastardo (o vazio de
um pai que perseguiu por toda
a vida e de uma mãe que nunca
se assumiu como tal). A origem
humilde, suas primeiras impressões num mundo devastado pelo pós-guerra.
Ao contrário do que muitos
podem pensar, o livro não é um
workshop de guitarras, mas
mostra com nitidez toda sua
trajetória pela música, desde
que ganhou um prêmio na escola tocando "Greensleeves"
na flauta doce, passando por
suas primeiras guitarras, como
acabou por inventar seu próprio som (como colocava a posição dos microfones em seu
amplificador) até as escolhas
dos modelos de guitarra que foram marcos fronteiriços em
seu som. No início, as Gibson.
Depois, as Fender Strat.
Sempre autodidata e amante
do blues de raiz, foi um purista
que levou tempo para enfrentar uma carreira solo.
Em meio a uma trajetória
musical que desvenda as entranhas do que seria a cena seminal do rock inglês -bandas
nascendo por todos os lados,
Rolling Stones, os Beatles, a cena de blues inglesa, The Who,
Yardbirds, Jonh Mayall-, é interessante perceber que praticamente todos os caras passavam por uma escola de artes.
O próprio Clapton sempre
adorou literatura inglesa e pintura. Ronnie Wood, Mick Jagger... A cena estava cheia de
mods e beatniks, todo mundo
influenciado pelo jazz, a "beat
generation", o blues e o recém-nascido rock and roll.
Encontros notáveis
O que é bastante notório nessa fase é que, pelo fato de bandas e artistas americanos excursionarem com freqüência
pela Inglaterra, surgiram possibilidades de encontros dessa
rapaziada com seus maiores
ídolos. E, como a maior parte
deles precisava de bandas de
apoio, o destino se arranjou de
colocá-los lado a lado, fato que
acabou legitimando e dando
nova dinâmica àquilo tudo.
Afinal de contas, os bluseiros
de Chicago, como Muddy Waters, Howlin" Wolf, B.B. King e
principalmente Buddy Guy, levantaram o moral daqueles
branquelas metidos a tocar o
blues, pois eles realmente tocavam... E bem!
Dá para se entender a compatibilidade que o jovem Clapton teve com o blues, sendo esse um estilo com normas e leis
próprias, com um humor muito
sutil e um extravasamento despudorado da dor e da falta... Tudo isso mantendo uma cadência forte e, como se diz na gíria,
"para trás" ("laid back").
Ou seja, você pode explodir
de emoção, desde que continue
no balanço cadenciado da levada (esse tipo lento e pesado de
tocar é um dos grandes desafios
do blues).
Com essa paixão e com a obsessão da frase perfeita, testemunhamos sua breve e atribulada passagem pelos Yardbirds,
pelo grupo do John Mayall e
sua precoce aclamação nos grafites das paredes de toda Londres: "Eric is God".
Eric fala sobre seus amores e
desamores, sua timidez endêmica, seu medo das mulheres (a
mãe que nunca o assumira) e
sua tendência a amar desesperadamente as coisas impossíveis, como a mulher de seu melhor amigo, e a verdadeira obsessão pelo vício em si.
Mediante o buraco existencial deixado pela criação, somado a uma folclórica imagem de
grandes músicos -como Ray
Charles, Charlie Parker e Billie
Holyday, com seus eternos envolvimentos com drogas pesadas-, Clapton desencadeia
uma vida de alto consumo de
drogas pesadas, álcool e muita
loucura...
Muitas ferraris destruídas,
muitas viagens repentinas...
Estava na Inglaterra num dia e,
no outro, a bordo de um avião
com Lennon para um concerto
beneficente no Canadá (por sinal, o episódio é hilário).
Não precisa dizer que a plêiade de episódios caríssimos aos
amantes do rock é enorme.
Histórias com Jimi Hendrix,
Duane Allman, George Harrison (e seu clássico "affair" com
Patty, mulher de George, mais
tarde senhora Clapton).
O Cream se formando no
meio da Copa do Mundo de 66,
Blind Faith como o primeiro
"supergrupo", a paixão por Delaney, Bonnie and Friends
quando comete seu primeiro
álbum, a lenda do Derek and
the Dominos, o relato da feitura
de praticamente todas as canções mais importantes, como
"Wonderful Tonight", "Bell
Bottom Blues", "Presence of
the Lord", "Layla" e "Tears in
Heaven", entre outras.
Sem culpa no cartório
O livro prossegue com sua
narrativa cativante e confessional sem nunca descambar para
o maniqueísmo ou a culpa,
muito menos para a autoglorificação. É muito bem-escrito e
mostra uma pessoa completamente autoconsciente do que
representa para si e o mundo.
A maneira como relata suas
perdas é comovente, e não há
como não se emocionar quando conta como conseguiu sobreviver a elas. E também perceber que, sem a música, ele seria uma pessoa bem mais vulnerável e possivelmente seu
destino fosse algo terrível.
Com a trágica perda do seu filho, sua abstinência de drogas e
álcool desde 1987, a criação da
clínica de reabilitação Crossroads, nas Antilhas, para, aos 51
anos, casar-se com a sua atual
mulher, vinte e tantos anos
mais nova. Vemos um novo
Clapton, desfrutando das coisas simples da vida doméstica:
suas manias com a internet,
suas filhas, seu barco de 150
pés, caçadas, assistir a um bom
campeonato de críquete, seus
shows beneficentes...
Enfim, uma pessoa que se fez
sábia, já não tão a fim de tanta
estrada, mas sempre pronta para fazer um som com um músico interessante, com emoções
verdadeiras.
Sim... Se eu tivesse que sintetizar, diria que essa é a história
de um homem que perseguiu
sua essência em todos os seus
momentos. Mesmo naqueles
de grande confusão, egolatria e
desencontros.
Mesmo em todos os vexames, porres e caminhos malfadados e nas perdas trágicas. Temos diante de nós um homem
com enorme sabedoria, com a
profundidade dos sobreviventes e com a beleza de quem com
tudo isso apreendeu.
Considero esse livro uma leitura obrigatória para quem quiser entender a música do século 20, uma cultura alienígena a
se tornar cultura adquirida e
genuína, o comportamento de
uma geração que estaria por
mudar o mundo com sua maneira de viver e seus compromissos ingênuos ou não com a
liberdade.
E, o mais importante, a história comovente de um homem
cujos talento, sensibilidade e
sofrimento o conduziram ao
palácio da sabedoria.
LOBÃO é músico e compositor.
ERIC CLAPTON - A AUTOBIOGRAFIA
Autor: Eric Clapton
Tradução: Lúcia Brito
Editora: Planeta (tel. 0/xx/11/ 3087-8888)
Quanto: R$ 44,90 (400 págs.)
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