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A FACE NOVA DA ÉTICA
OPERAÇÃO DE TROCA DE ROSTO SINTETIZA
UMA ERA QUE PASSA POR BRUSCAS
MUDANÇAS DOS PADRÕES
DE RECONHECIMENTO E IDENTIDADE
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma mulher tem seu rosto
mais que desfigurado, praticamente destruído. Tradicionalmente, um cirurgião plástico iria recompô-lo. Mas,
sem nariz, sem orelhas, se torna possível esculpir qualquer face. Sim, o
médico poderia tentar reconstituir o
original, como os arquitetos europeus fizeram com as cidades arrasadas durante a Segunda Guerra Mundial, erigindo uma Frankfurt, uma
Roterdã "fakes". Qual a diferença
então entre refazer o que sumiu e desenhar algo novo? E se, como agora
aconteceu na França, o rosto novo
da mulher for o rosto bem preservado de alguém que morreu?
Adianto que não vejo grandes problemas éticos nessa história. Fez-se
mal a alguém, com a viva herdando
o rosto da morta? Temos uma tradição já bem consolidada de transplantes. Transplantar um coração,
quase 40 anos atrás, tornou célebre o
cirurgião sul-africano Christian Barnard e causou um choque, tal o simbolismo ligado àquele órgão. Depois
disso, transplantou-se quase de tudo. Mas transferir um rosto tem algumas conotações distintas, que vale a pena salientar.
Outra história pessoal
Os transplantes que vemos com
bons olhos são aqueles necessários,
os que atendem a demandas de saúde. Sem coração, sem rim, sem medula, morre-se. Mas o rosto, não.
Embora esse caso de cirurgia plástica não fosse estético, mas de plena
necessidade, fica a idéia de algo exagerado. Não se podia, apenas, corrigir? Exagero, essa é a palavra.
O rosto porta nossa identidade como poucas outras coisas. José Dirceu, perseguido político, passou por
uma operação, que modificou seu
nariz. A voz dele é inconfundível,
mas a face a desmentia. O episódio
francês nos choca, porque mexe no
que é mais fundo na identidade de
alguém.
Se a moda pega, isso propicia que
uma pessoa tome o lugar de outra.
Lembra o filme "O Segundo Rosto",
de John Frankenheimer. Há o perigo
de que criminosos se beneficiem disso. Mas, ao mesmo tempo, as técnicas convencionais de cirurgia já permitem um mascaramento bastante
eficaz. Então, qual a novidade nisso?
A novidade está em assumir uma
identidade alheia, pronta. Vêm fantasias à mente: e se um familiar da
morta encontra a sua sucessora? Ou
mesmo, como as pessoas próximas
da mulher viva vão sentir o fato de
que ela assumiu um rosto que tinha
dona, história, documentos? As
fronteiras se perdem, assim, entre o
habitual e o assustado.
Mas, mesmo assim, há problema
ético nisso? Melhor dizendo, o mero
fato de uma pessoa assumir as feições de outra é, por si só, problemático eticamente? Será condenável,
concordo, se ela roubar o rosto de
outra; se usar desse recurso para fugir à lei; mas notem que nesses casos
o que é condenável não é ter um novo-velho rosto, e sim aquilo para
que se mudou o rosto. Em outras palavras, o que torna uma ação condenável não é a mudança de identidade
aparente, que não passa de um meio;
é o fim para o qual essa modificação
está sendo utilizada.
Porque mudar o rosto, apenas, não
causa mal a outrem. Pode causar
choque, mas não mal. Ora, um dos
aspectos mais significativos de nosso
tempo é esse: muita coisa nos choca,
sem que necessariamente seja má.
Piercing, tatuagem, roupas esquisitas, isso causa mal-estar a muita
gente, mas não lhes causa mal. Mal-estar não é mal. Mas nossa reação
automática, assustados com um filho que usa brinco, com uma filha
que se tatua, é entender que nosso
mal-estar é um mal praticado pelo
outro. Não há, porém, razão nenhuma para adotar essa postura.
Crise de um modelo
As identidades estão mudando.
Um século atrás, a média de idade
girava em torno dos 30 ou 35 anos.
Dobrou, de lá para cá. Isso significa
que passamos a ter tempo de sobra.
No entanto não tiramos todas as
conseqüências disso. Somente a discussão da contribuição previdenciária trata dessa questão e trata mal,
apenas avaliando custos e ganhos.
Na verdade, o que se desfaz é um
modelo de vida, pelo qual se casava
ao redor dos 20 anos, tinha-se filhos,
dos quais se cuidava, trabalhava-se,
chegava-se à aposentadoria e, após
mais alguns anos, se morria.
Esse modelo não funciona mais.
Depois da aposentadoria, é possível
viver 40 anos. Aí vem a grita: aposentemos mais tarde. Mas não é essa a
questão, e sim que, depois de criar os
filhos, de curtir os netos, ainda há vida inteligente. É possível viver muito
tempo (o que dizem os calculadores
da Previdência Social), mas com
qualidade (o que pouco se discute).
Isso significa que podemos mudar
de vida, várias vezes.
Casamentos se desfazem, que duraram 20 ou 30 anos: valeram mais
tempo do que muito matrimônio de
1900, em que o marido ou a mulher
morriam antes dos 40 anos de idade.
Não é um fracasso um casamento
que foi terno enquanto durou.
Empregos desaparecem, o que nos
assusta, mas profissões surgem também, e com elas novas oportunidades. Uma pessoa pode ter várias
identidades profissionais ao longo
da vida; pode ter algumas parcerias
amorosas duradouras e preciosas;
pode até, no quadro da União Européia (e espero, um dia, no Mercosul),
mudar de nacionalidade. Serei italiano por 20 anos, inglês por 15, alemão
nos dez seguintes, espanhol até o fim
da vida.
Mudar de rosto não é mudar de
identidade? Depois da operação
francesa, ouvi receios, mas quase todos eles baseados na idéia do que o
outro acharia da pessoa com nova
face. E ela mesma, o que achará? O
que sentirá, ao ver-se no espelho,
não com um rosto reconstituído,
mas com feições prontas, completas,
que ela sabe terem tido uma história? Este poderia ser o começo de um
conto, que pelo menos aqui não escreverei.
Mas é um sinal a mais de um mundo que nos coloca oportunidades
novas, algumas delas assustadoras,
das quais porém não nos desvencilhamos condenando-as em nome de
uma ética apressada. A ética é importante demais para se confundir
com o medo diante do novo.
Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia da USP e diretor de avaliação da Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do MEC).
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