|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LOBOS EM PELE DE CORDEIRO
EM "A OUTRA FACE", DE 1997, JOHN WOO TEMATIZOU O TRANSPLANTE DE ROSTOS E A TROCA DE IDENTIDADES
CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A
ciência não costuma perdoar a autonomia assombrosa que a cultura gosta de
manter em relação a ela.
Corre atrás, descabelada, como se
não fosse permitido à ficção inventar suas próprias regras e, pior, poder brincar com elas.
As indagações que estão sendo feitas por psicólogos e antropólogos
sobre os efeitos desse transplante de
face já são tema recorrente em filmes
feitos há décadas. Em vez, porém, de
apenas fazer avançar hipóteses, artistas conseguem ir mais longe e
construir cenários fantásticos em todos os sentidos.
Aos assíduos freqüentadores de cinema não surpreende uma situação
como a relatada na manchete "Médicos fazem primeiro transplante de
rosto do mundo". Algo semelhante
serviu de base à ação do filme "A
Outra Face" ("Face/Off"), dirigido
pelo cineasta chinês John Woo, nos
EUA, em 1997.
Naquele filme, o transplante é uma
invenção que permite ao diretor explorar outras possibilidades que lhe
interessam, como o tema do duplo
(recorrente nos seus filmes da fase
Hong Kong).
Em "A Outra Face", para frustrar
um plano terrorista um policial
(Sean Archer) é submetido a um
transplante e recebe o rosto de seu
principal inimigo, agora mergulhado num coma -o supercriminoso
Castor Troy. Para garantir o máximo de peripécias, o criminoso acaba
por acordar do coma, obriga os médicos a devolver-lhe a outra face e assume o lugar de Archer.
O que resulta daí é um delicioso
thriller montado a partir de um
princípio habilidoso: o gato que persegue o rato passa ser perseguido
quando o rato se transforma em gato. Num momento de criatividade,
Hollywood não se contentou aqui
apenas em opor bonzinhos e mauzinhos. Transplantou, literalmente,
um na pele do outro.
Assim fez o espectador experimentar o fantasma prazeroso que
persegue qualquer um quando senta
no escuro do cinema. De uma hora
para outra, é permitido se colocar na
pele de outras pessoas, viver provisoriamente aventuras e dramas "como se" não fôssemos mais nós mesmos. Pois é jogando com a perda de
identidade por intermédio da identificação que o cinema (e tantas outras formas narrativas anteriores a
ele) captura nossa atenção e obtém
nossa entrega.
Conscientes do encanto dessa fantasmagoria, outros diretores passam
a obra a fazer avançar ainda mais essa hipótese. É o caso do canadense
David Cronenberg, que desde seus
primeiros filmes cria variações da
fórmula poética de Arthur Rimbaud: "Eu é um outro".
Numa primeira fase, Cronenberg
aproveitou as possibilidades do gênero fantástico e praticou as conseqüências de transformações para a
identidade, recorrendo, para efeito
narrativo, a possibilidades sugeridas
por uma ciência imaginada.
Naquela fase, suas mutações originavam-se de experiências físicas ou
médicas. É o que se vê, por exemplo,
em "A Mosca", de 1986, em que um
cientista, ao testar um aparelho de
teletransporte, acaba por fundir seu
DNA ao de um inseto e se transformar num incrível monstro.
Mais próxima da realidade da
ciência hoje e por isso mesmo ainda
mais assustadora é a fantasia proposta em "Rabid", de 1976, no qual
uma garota recebe um implante
após um acidente grave e se transforma numa perigosa predadora sexual, que mata suas vítimas transmitindo-lhes raiva.
Depois dessa fase, em que a estrutura de sua ficção se resumia a experimentos físicos, seguidos de mutações, que desembocavam em trágicas dissoluções da identidade, Cronenberg adotou outro rumo, fixando-se mais nas possibilidades oferecidas pelas transformações mentais
(a paixão em "M. Butterfly", a perversão em "Crash", o vício em "eXistenZ", a esquizofrenia em "Spider").
Essas variações em torno de um tema desembocam no recente "Marcas da Violência", em que Cronenberg deixa de lado até mesmo os
desvios de comportamento. Aqui, a
origem da transformação é a própria
normalidade. O outro de seu personagem Tom Stall é ele mesmo, sua
transformação não é mais metafórica. Já era assim nos filmes anteriores, mas o fantástico muitas vezes
turvava essa compreensão.
Com "Marcas da Violência", Cronenberg abandona a metáfora e vai
direto ao ponto ao colocar no tempo
o fator da transformação. O mesmo
tempo que o espectador reconhece
como sendo aquilo que o transforma a cada minuto que passa e que
impede que ele seja o mesmo antes,
durante e após a sessão.
Ou alguém acha que bastaria receber o transplante do rosto que teve
quando criança ou quando jovem
para voltar a ser aquele que foi?
Texto Anterior: + entenda o caso Próximo Texto: + conto: Libertação Índice
|