São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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LOBOS EM PELE DE CORDEIRO

EM "A OUTRA FACE", DE 1997, JOHN WOO TEMATIZOU O TRANSPLANTE DE ROSTOS E A TROCA DE IDENTIDADES

CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A ciência não costuma perdoar a autonomia assombrosa que a cultura gosta de manter em relação a ela. Corre atrás, descabelada, como se não fosse permitido à ficção inventar suas próprias regras e, pior, poder brincar com elas.
As indagações que estão sendo feitas por psicólogos e antropólogos sobre os efeitos desse transplante de face já são tema recorrente em filmes feitos há décadas. Em vez, porém, de apenas fazer avançar hipóteses, artistas conseguem ir mais longe e construir cenários fantásticos em todos os sentidos.
Aos assíduos freqüentadores de cinema não surpreende uma situação como a relatada na manchete "Médicos fazem primeiro transplante de rosto do mundo". Algo semelhante serviu de base à ação do filme "A Outra Face" ("Face/Off"), dirigido pelo cineasta chinês John Woo, nos EUA, em 1997.
Naquele filme, o transplante é uma invenção que permite ao diretor explorar outras possibilidades que lhe interessam, como o tema do duplo (recorrente nos seus filmes da fase Hong Kong).
Em "A Outra Face", para frustrar um plano terrorista um policial (Sean Archer) é submetido a um transplante e recebe o rosto de seu principal inimigo, agora mergulhado num coma -o supercriminoso Castor Troy. Para garantir o máximo de peripécias, o criminoso acaba por acordar do coma, obriga os médicos a devolver-lhe a outra face e assume o lugar de Archer.
O que resulta daí é um delicioso thriller montado a partir de um princípio habilidoso: o gato que persegue o rato passa ser perseguido quando o rato se transforma em gato. Num momento de criatividade, Hollywood não se contentou aqui apenas em opor bonzinhos e mauzinhos. Transplantou, literalmente, um na pele do outro.
Assim fez o espectador experimentar o fantasma prazeroso que persegue qualquer um quando senta no escuro do cinema. De uma hora para outra, é permitido se colocar na pele de outras pessoas, viver provisoriamente aventuras e dramas "como se" não fôssemos mais nós mesmos. Pois é jogando com a perda de identidade por intermédio da identificação que o cinema (e tantas outras formas narrativas anteriores a ele) captura nossa atenção e obtém nossa entrega.
Conscientes do encanto dessa fantasmagoria, outros diretores passam a obra a fazer avançar ainda mais essa hipótese. É o caso do canadense David Cronenberg, que desde seus primeiros filmes cria variações da fórmula poética de Arthur Rimbaud: "Eu é um outro".
Numa primeira fase, Cronenberg aproveitou as possibilidades do gênero fantástico e praticou as conseqüências de transformações para a identidade, recorrendo, para efeito narrativo, a possibilidades sugeridas por uma ciência imaginada.
Naquela fase, suas mutações originavam-se de experiências físicas ou médicas. É o que se vê, por exemplo, em "A Mosca", de 1986, em que um cientista, ao testar um aparelho de teletransporte, acaba por fundir seu DNA ao de um inseto e se transformar num incrível monstro.
Mais próxima da realidade da ciência hoje e por isso mesmo ainda mais assustadora é a fantasia proposta em "Rabid", de 1976, no qual uma garota recebe um implante após um acidente grave e se transforma numa perigosa predadora sexual, que mata suas vítimas transmitindo-lhes raiva.
Depois dessa fase, em que a estrutura de sua ficção se resumia a experimentos físicos, seguidos de mutações, que desembocavam em trágicas dissoluções da identidade, Cronenberg adotou outro rumo, fixando-se mais nas possibilidades oferecidas pelas transformações mentais (a paixão em "M. Butterfly", a perversão em "Crash", o vício em "eXistenZ", a esquizofrenia em "Spider").
Essas variações em torno de um tema desembocam no recente "Marcas da Violência", em que Cronenberg deixa de lado até mesmo os desvios de comportamento. Aqui, a origem da transformação é a própria normalidade. O outro de seu personagem Tom Stall é ele mesmo, sua transformação não é mais metafórica. Já era assim nos filmes anteriores, mas o fantástico muitas vezes turvava essa compreensão.
Com "Marcas da Violência", Cronenberg abandona a metáfora e vai direto ao ponto ao colocar no tempo o fator da transformação. O mesmo tempo que o espectador reconhece como sendo aquilo que o transforma a cada minuto que passa e que impede que ele seja o mesmo antes, durante e após a sessão.
Ou alguém acha que bastaria receber o transplante do rosto que teve quando criança ou quando jovem para voltar a ser aquele que foi?


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