São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997.

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A IDADE DA RAZÃO


Bobbio reflete sobre a vida, a morte e a velhice em ``De Senectute''

Os nervos da idéia

RAUL MOREIRA
especial para a Folha, de Turim (Itália)


Perdido, como reconhece, em meio às avassaladoras transformações pelas quais passou o mundo nos últimos anos, o filósofo e jurista Norberto Bobbio, 87, lançou na Itália "De Senectute" (Sobre a Velhice), o seu primeiro livro autobiográfico. Trata-se de uma incursão ao mundo da memória e de uma reflexão sobre a velhice e os acontecimentos ligados a sua vida.
"Da vida fica somente um leve traço na memória e uma minúscula lápide no cemitério. Quando também estiver morto, ninguém se lembrará de mim", escreve Bobbio no livro. Ele se diz "velho-velho" e revela que aguarda a morte com um pouco de angústia e ceticismo.
Bobbio afirma ter percebido a chegada da velhice em 1989, depois da queda do Muro de Berlim, o principal de uma série de acontecimentos que fariam desmoronar os regimes comunistas do Leste europeu. O filósofo viveu boa parte da sua vida imaginando que a Guerra Fria poderia acabar em um holocausto nuclear.
O equívoco o fez sentir, pela primeira vez, um homem do passado. "Vivemos dentro de uma história que se supera continuamente. As nossas análises, as nossas reflexões, quase sempre resultam em grandes erros."
O fim da chamada Primeira República italiana -num escândalo que, no início dos anos 90, acabou dissolvendo os partidos políticos do país- também ajudou a levar Bobbio ao "limbo". O filósofo havia apoiado aquele sistema político que surgiu na Itália depois da Segunda Guerra Mundial.
"Ninguém adivinhou, nenhum profeta poderia supor. Havia anos que imaginávamos que pudesse haver alguma mudança, mas não o fim da Primeira República em poucos meses", costuma falar.
Há poucos meses, Bobbio resolveu sair da cena da vida política. Sem fazer barulho, interrompeu a sua mítica coluna no jornal "La Stampa", decretando o primeiro estado de silêncio da sua vida.
A atitude gerou estranheza nos meios políticos e intelectuais, já que Bobbio resolveu silenciar justamente no momento em que a esquerda tomava o poder na Itália. Às indagações sobre a decisão, o filósofo responde "que certas vezes tem a impressão de não ter nada a dizer".
O socialista Bobbio sempre foi conhecido como um intelectual mediador. Nos anos 50, negociou com os comunistas italianos, e, no final das décadas de 60, com os jovens contestadores. Daí veio também a sua fama de maior consciência crítica da Itália, uma espécie de pai ideológico da esquerda. Em 1984 foi nomeado, por serviços prestados à cultura e à política, senador vitalício da Itália pelo então presidente Sandro Pertini.
A atual crise da política italiana intensificou a sua descrença. Hoje ele se diz um homem mais marcado pelo pessimismo do humor do que do conceito: "O pessimismo não é uma filosofia, mas um estado de espírito".
"De Senectute'' é uma referência ao clássico homônimo de Cícero. Mas, como reconhece Bobbio, a velhice de que fala o pensador latino é a da sabedoria, a do exemplo a se imitar, de uma época em que ser velho era sinal de respeito. A sua, ao contrário, "é a dos pobres, dos aflitos, dos que procuram ajuda e não encontram".
Em seu novo livro -desde o lançamento (no final de 96) um dos mais vendidos da Itália-, Bobbio se declara ateu e afirma não ter medo da morte, mas sim do previsível sofrimento que a acompanha. O filósofo diz também ser uma pessoa insegura, que não consegue ficar em paz consigo mesmo: "Não possuo uma filosofia, mas somente nervos".
Na sua casa em Turim, com vista para o Piemonte, o filósofo falou à Folha a respeito da relação entre a vida e a morte, abordou a questão da velhice e a incerteza em um mundo dominado conhecimento técnico e científico.

Folha - Professor, por muito tempo as pessoas se acostumaram sobretudo às suas reflexões políticas. Em "De Senectute", no entanto, o senhor reflete sobre o significado da vida. A idade madura pode oferecer pelo menos esse prazer?
Norberto Bobbio -
Não se trata apenas da idade madura. Vivo a velhice. Mas não é somente devido a ela o meu desinteresse pela política. É resultado das grandes mudanças que aconteceram nos últimos anos, as quais me fizeram sentir um homem do passado. Você sabe que na Itália, agora, estamos vivendo uma experiência que vem sendo definida como transição da Primeira para a Segunda República. Eu sou um sobrevivente dos que participaram da criação da Primeira República e, por isso, me sinto mais preso ao passado do que ligado a um futuro incerto.
Folha - E a questão existencial?
Bobbio -
Não excluo que neste meu distanciamento exista também um aspecto existencial. O velho vive mais de "ruminar" o seu passado do que propriamente de fazer projetos para o futuro. A velhice é a idade do balanço final.
Folha - O sr. diz, em "De Senectute", temer pelo que a morte -um pensamento que inexoravelmente acompanha a vida- possa impedi-lo de fazer. O que o sr. gostaria de realizar e não realizou?
Bobbio -
Você tem razão ao falar que o pensamento da morte acompanha a vida. Sobretudo quando se fica próximo à hora do fim. No livro, falo de uma relação que eu poderia chamar de interdependência entre a vida e a morte, dois aspectos essenciais da condição humana. Não há o primeiro termo sem o segundo. Melhor: o primeiro dá sentido ao segundo, e vice-versa. Como se pode pensar na vida sem pensar em seu caráter essencial, que é a sua limitação? O limite é exatamente a morte. Insisto sobre o fato de que a indivisibilidade entre a vida e morte é de tal forma, que somente quem leva a sério a morte consegue levar a sério a vida. Acho um dever moral do homem que tem consciência do limite da vida levar a sério a morte. E levá-la a sério significa que a morte é a morte -e não um prolongamento da vida.
Folha - O sr. teme a morte?
Bobbio -
Não é a morte como tal que faz medo. Sobretudo para alguém como eu, que, acho, viveu o suficiente. O que faz medo, ainda mais do que o sentido da angústia, é o eventual sofrimento possível que acompanha o último caminho até a morte. Como você pode imaginar, vivo num mundo povoado por velhos. Sei o que significa a longa espera da morte. Às vezes, é um sentimento terrível. Esses são os casos em que faz medo, e considero que não só para quem está morrendo, mas também para os que nos amam. Quem assistiu à lenta agonia de uma pessoa amada, como assisti à do meu pai, não precisa de outras palavras.
Folha - A situação da velhice mudou, o senhor mesmo reconhece. O que era tomado como um tempo de sabedoria, que deveria ser respeitado, transformou-se agora num estigma social. Como é ser velho, hoje?
Bobbio -
Eu confronto a velhice de hoje com a do passado porque nas sociedades tradicionais e mais estáticas o velho podia ser considerado o dono da sabedoria da comunidade. Agora não mais. Devido ao progresso científico e técnico, as sociedades atuais, sobretudo as mais avançadas, estão em contínua transformação. O velho não é mais aquela pessoa a quem os mais jovens se dirigem para apanhar os primeiros fundamentos do conhecimento essencial que servirão para prosseguir na vida. Meus filhos e netos, por exemplo, a cada dia, tornam-se cada vez mais aptos no manejo daqueles instrumentos cada vez mais perfeitos que permitem ao indivíduo entrar em contato com as pessoas em lugares muito longínquos. O velho, por seu lado, é cada vez menos capaz de entender as transformações que estão acontecendo. Por isso, talvez seja natural que fique marginalizado.
Folha - Por que o sr. optou para o seu livro por um título que recorda o clássico de Cícero?
Bobbio -
Talvez este título, que lembra o célebre livro de Cícero, possa causar confusão entre os leitores. Mas a velhice de que fala Cícero, imaginando falar em nome de Catão, o velho, é a do sábio, proposta como exemplo a se imitar e que, com isso, alcança um significado pedagógico. A velhice de que eu falo é a dos pobres, dos aflitos, dos que precisam de ajuda e não acham. E não acham porque a velhice acabou se transformando em um problema social cada vez mais difícil de se resolver, porque aumentou consideravelmente o número de velhos em relação aos jovens, assim como o tempo da velhice.
Folha - Em que medida a queda do Muro de Berlim fez com que o senhor se sentisse velho?
Bobbio -
Não há dúvidas de que não somente a crise italiana, mas também a crise internacional, e talvez esta mais ainda, me afetaram. A idéia de uma sociedade comunista fundada na eliminação total da propriedade privada, tida como a principal causa dos conflitos sociais, remonta a Platão. Nunca foi abandonada e ressurge sempre, nas mais diversas épocas, mesmo sob a forma de utopia, nos momentos das grandes crises históricas. O fato de que a primeira tentativa histórica de criação desta sociedade -que, ao surgir, fez milhares de pessoas se apaixonarem por ela- tenha falhado tragicamente criou problemas, problemas sobre os quais qualquer homem de pensamento precisa se interrogar.
Folha - Por que ninguém se arrisca a estabelecer um novo paradigma depois deste terremoto histórico?
Bobbio -
É curioso. A pergunta do paradigma me foi feita por um jornalista do ``Corriere delle Sera'' sobre a questão italiana. Não sei se é correto comparar a história da política com a história da ciência, para a qual o conceito de paradigma foi proposto. O problema do futuro da humanidade, que, com uma certa simplificação, tem sido definido como sendo o da globalização, já suscitou infinitas perguntas, mas até agora todas elas ficaram sem respostas, apesar da série de congressos internacionais que são realizados com os mais importantes cientistas do mundo.
Folha - Neste mundo de tantas transformações o sr. não se sente perdido?
Bobbio -
Eu me acho completamente perdido. O importante seria que existisse no mundo alguém que não se achasse perdido e continuasse com a esperança de encontrar uma solução. Pessoalmente, sou um pessimista. De resto, se outros milhões e milhões de homens não fossem pessimistas como eu, não teria sentido o surgimento de qualquer visão religiosa no mundo. O homem precisa esperar. A orgulhosa ciência, cujo nascimento e crescimento caracterizaram o surgimento da Idade Moderna, não ajuda a esperar. Ou melhor, ela só criou ilusões.

Onde encomendar:
"De Senectute", de Norberto Bobbio (Einaudi, US$ 18), pode ser encomendado à Livraria Italiana (av. São Luiz, 192, loja 18, tel. 011/259-8915, São Paulo).

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