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A IDADE DA RAZÃO
Bobbio reflete sobre a vida, a morte e a velhice em ``De Senectute''
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Os nervos da idéia
RAUL MOREIRA
especial para a Folha, de Turim (Itália)
Perdido, como reconhece, em
meio às avassaladoras transformações pelas quais passou o mundo nos últimos anos, o filósofo e
jurista Norberto Bobbio, 87, lançou na Itália "De Senectute" (Sobre a Velhice), o seu primeiro livro
autobiográfico. Trata-se de uma
incursão ao mundo da memória e
de uma reflexão sobre a velhice e
os acontecimentos ligados a sua
vida.
"Da vida fica somente um leve
traço na memória e uma minúscula lápide no cemitério. Quando
também estiver morto, ninguém
se lembrará de mim", escreve
Bobbio no livro. Ele se diz "velho-velho" e revela que aguarda a
morte com um pouco de angústia
e ceticismo.
Bobbio afirma ter percebido a
chegada da velhice em 1989, depois da queda do Muro de Berlim,
o principal de uma série de acontecimentos que fariam desmoronar
os regimes comunistas do Leste
europeu. O filósofo viveu boa parte da sua vida imaginando que a
Guerra Fria poderia acabar em um
holocausto nuclear.
O equívoco o fez sentir, pela primeira vez, um homem do passado.
"Vivemos dentro de uma história
que se supera continuamente. As
nossas análises, as nossas reflexões, quase sempre resultam em
grandes erros."
O fim da chamada Primeira República italiana -num escândalo
que, no início dos anos 90, acabou
dissolvendo os partidos políticos
do país- também ajudou a levar
Bobbio ao "limbo". O filósofo
havia apoiado aquele sistema político que surgiu na Itália depois da
Segunda Guerra Mundial.
"Ninguém adivinhou, nenhum
profeta poderia supor. Havia anos
que imaginávamos que pudesse
haver alguma mudança, mas não o
fim da Primeira República em
poucos meses", costuma falar.
Há poucos meses, Bobbio resolveu sair da cena da vida política.
Sem fazer barulho, interrompeu a
sua mítica coluna no jornal "La
Stampa", decretando o primeiro
estado de silêncio da sua vida.
A atitude gerou estranheza nos
meios políticos e intelectuais, já
que Bobbio resolveu silenciar justamente no momento em que a esquerda tomava o poder na Itália.
Às indagações sobre a decisão, o
filósofo responde "que certas vezes tem a impressão de não ter nada a dizer".
O socialista Bobbio sempre foi
conhecido como um intelectual
mediador. Nos anos 50, negociou
com os comunistas italianos, e, no
final das décadas de 60, com os jovens contestadores. Daí veio também a sua fama de maior consciência crítica da Itália, uma espécie de pai ideológico da esquerda.
Em 1984 foi nomeado, por serviços prestados à cultura e à política,
senador vitalício da Itália pelo então presidente Sandro Pertini.
A atual crise da política italiana
intensificou a sua descrença. Hoje
ele se diz um homem mais marcado pelo pessimismo do humor do
que do conceito: "O pessimismo
não é uma filosofia, mas um estado de espírito".
"De Senectute'' é uma referência ao clássico homônimo de Cícero. Mas, como reconhece Bobbio,
a velhice de que fala o pensador latino é a da sabedoria, a do exemplo
a se imitar, de uma época em que
ser velho era sinal de respeito. A
sua, ao contrário, "é a dos pobres,
dos aflitos, dos que procuram ajuda e não encontram".
Em seu novo livro -desde o lançamento (no final de 96) um dos
mais vendidos da Itália-, Bobbio
se declara ateu e afirma não ter
medo da morte, mas sim do previsível sofrimento que a acompanha. O filósofo diz também ser
uma pessoa insegura, que não
consegue ficar em paz consigo
mesmo: "Não possuo uma filosofia, mas somente nervos".
Na sua casa em Turim, com vista
para o Piemonte, o filósofo falou à
Folha a respeito da relação entre a
vida e a morte, abordou a questão
da velhice e a incerteza em um
mundo dominado conhecimento
técnico e científico.
Folha - Professor, por muito tempo as pessoas se acostumaram sobretudo às suas reflexões políticas. Em "De Senectute", no entanto, o senhor reflete sobre o significado da vida. A idade madura pode oferecer pelo menos esse prazer?
Norberto Bobbio - Não se trata
apenas da idade madura. Vivo a
velhice. Mas não é somente devido
a ela o meu desinteresse pela política. É resultado das grandes mudanças que aconteceram nos últimos anos, as quais me fizeram
sentir um homem do passado. Você sabe que na Itália, agora, estamos vivendo uma experiência que
vem sendo definida como transição da Primeira para a Segunda
República. Eu sou um sobrevivente dos que participaram da criação
da Primeira República e, por isso,
me sinto mais preso ao passado do
que ligado a um futuro incerto.
Folha - E a questão existencial?
Bobbio - Não excluo que neste
meu distanciamento exista também um aspecto existencial. O velho vive mais de "ruminar" o seu
passado do que propriamente de
fazer projetos para o futuro. A velhice é a idade do balanço final.
Folha - O sr. diz, em "De Senectute", temer pelo que a morte
-um pensamento que inexoravelmente acompanha a vida-
possa impedi-lo de fazer. O que o
sr. gostaria de realizar e não realizou?
Bobbio - Você tem razão ao falar que o pensamento da morte
acompanha a vida. Sobretudo
quando se fica próximo à hora do
fim. No livro, falo de uma relação
que eu poderia chamar de interdependência entre a vida e a morte,
dois aspectos essenciais da condição humana. Não há o primeiro
termo sem o segundo. Melhor: o
primeiro dá sentido ao segundo, e
vice-versa. Como se pode pensar
na vida sem pensar em seu caráter
essencial, que é a sua limitação? O
limite é exatamente a morte. Insisto sobre o fato de que a indivisibilidade entre a vida e morte é de tal
forma, que somente quem leva a
sério a morte consegue levar a sério a vida. Acho um dever moral
do homem que tem consciência
do limite da vida levar a sério a
morte. E levá-la a sério significa
que a morte é a morte -e não um
prolongamento da vida.
Folha - O sr. teme a morte?
Bobbio - Não é a morte como
tal que faz medo. Sobretudo para
alguém como eu, que, acho, viveu
o suficiente. O que faz medo, ainda mais do que o sentido da angústia, é o eventual sofrimento possível que acompanha o último caminho até a morte. Como você pode
imaginar, vivo num mundo povoado por velhos. Sei o que significa a longa espera da morte. Às vezes, é um sentimento terrível. Esses são os casos em que faz medo, e
considero que não só para quem
está morrendo, mas também para
os que nos amam. Quem assistiu à
lenta agonia de uma pessoa amada, como assisti à do meu pai, não
precisa de outras palavras.
Folha - A situação da velhice mudou, o senhor mesmo reconhece.
O que era tomado como um tempo de sabedoria, que deveria ser
respeitado, transformou-se agora
num estigma social. Como é ser
velho, hoje?
Bobbio - Eu confronto a velhice de hoje com a do passado porque nas sociedades tradicionais e
mais estáticas o velho podia ser
considerado o dono da sabedoria
da comunidade. Agora não mais.
Devido ao progresso científico e
técnico, as sociedades atuais, sobretudo as mais avançadas, estão
em contínua transformação. O velho não é mais aquela pessoa a
quem os mais jovens se dirigem
para apanhar os primeiros fundamentos do conhecimento essencial que servirão para prosseguir
na vida. Meus filhos e netos, por
exemplo, a cada dia, tornam-se
cada vez mais aptos no manejo daqueles instrumentos cada vez mais
perfeitos que permitem ao indivíduo entrar em contato com as pessoas em lugares muito longínquos. O velho, por seu lado, é cada
vez menos capaz de entender as
transformações que estão acontecendo. Por isso, talvez seja natural
que fique marginalizado.
Folha - Por que o sr. optou para o
seu livro por um título que recorda
o clássico de Cícero?
Bobbio - Talvez este título, que
lembra o célebre livro de Cícero,
possa causar confusão entre os leitores. Mas a velhice de que fala Cícero, imaginando falar em nome
de Catão, o velho, é a do sábio,
proposta como exemplo a se imitar e que, com isso, alcança um
significado pedagógico. A velhice
de que eu falo é a dos pobres, dos
aflitos, dos que precisam de ajuda
e não acham. E não acham porque
a velhice acabou se transformando em um problema social cada
vez mais difícil de se resolver, porque aumentou consideravelmente
o número de velhos em relação
aos jovens, assim como o tempo
da velhice.
Folha - Em que medida a queda
do Muro de Berlim fez com que o
senhor se sentisse velho?
Bobbio - Não há dúvidas de
que não somente a crise italiana,
mas também a crise internacional,
e talvez esta mais ainda, me afetaram. A idéia de uma sociedade comunista fundada na eliminação
total da propriedade privada, tida
como a principal causa dos conflitos sociais, remonta a Platão.
Nunca foi abandonada e ressurge
sempre, nas mais diversas épocas,
mesmo sob a forma de utopia, nos
momentos das grandes crises históricas. O fato de que a primeira
tentativa histórica de criação desta
sociedade -que, ao surgir, fez
milhares de pessoas se apaixonarem por ela- tenha falhado tragicamente criou problemas, problemas sobre os quais qualquer homem de pensamento precisa se interrogar.
Folha - Por que ninguém se arrisca a estabelecer um novo paradigma depois deste terremoto histórico?
Bobbio - É curioso. A pergunta
do paradigma me foi feita por um
jornalista do ``Corriere delle Sera'' sobre a questão italiana. Não
sei se é correto comparar a história
da política com a história da ciência, para a qual o conceito de paradigma foi proposto. O problema
do futuro da humanidade, que,
com uma certa simplificação, tem
sido definido como sendo o da
globalização, já suscitou infinitas
perguntas, mas até agora todas
elas ficaram sem respostas, apesar
da série de congressos internacionais que são realizados com os
mais importantes cientistas do
mundo.
Folha - Neste mundo de tantas
transformações o sr. não se sente
perdido?
Bobbio - Eu me acho completamente perdido. O importante
seria que existisse no mundo alguém que não se achasse perdido e
continuasse com a esperança de
encontrar uma solução. Pessoalmente, sou um pessimista. De resto, se outros milhões e milhões de
homens não fossem pessimistas
como eu, não teria sentido o surgimento de qualquer visão religiosa no mundo. O homem precisa
esperar. A orgulhosa ciência, cujo
nascimento e crescimento caracterizaram o surgimento da Idade
Moderna, não ajuda a esperar. Ou
melhor, ela só criou ilusões.
Onde encomendar:
"De Senectute", de Norberto
Bobbio (Einaudi, US$ 18), pode
ser encomendado à Livraria Italiana (av. São Luiz, 192, loja 18, tel.
011/259-8915, São Paulo).
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