São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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Um antropólogo bom de ouvido

"Antropologia Cultural" traz textos de Franz Boas, que foi decisivo para o pensamento de Gilberto Freyre

GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pela primeira vez vem a lume no Brasil o livro "Antropologia Cultural", de Franz Boas (1858-1942), coletânea organizada por Celso Castro, que escreveu uma límpida e inteligente apresentação sobre o simpático e progressista antropólogo alemão radicado nos EUA, professor de alunos brilhantes como Alfred Kroeber, Edward Sapir, Ruth Benedict, Margaret Mead e Meville Herskovitz.
No que nos concerne, em termos de uma história das ciências sociais no Brasil, sua influência (com a do historiador pernambucano Oliveira Lima) foi decisiva na mentalização da obra-prima "Casa-Grande & Senzala", de 1933. Gilberto Freyre foi seu aluno ou às vezes conversou com ele nas cantinas e corredores da Universidade Columbia, em Nova York, na década de 20. Foi Gilberto Freyre quem deu força midiática ao nome de Franz Boas pelo mundo acadêmico afora.


Alemão radicado nos EUA defendia em seu método que não há culturas inferiores nem culturas superiores


Eu posso testemunhar, em meados dos anos 80, em Recife, como o sociólogo pernambucano adorava perguntar acerca dos estudiosos e intérpretes do Brasil se eles haviam ou não feito a distinção entre raça e cultura, traço distintivo tão apreciado por Franz Boas em seu método que ganhou o nome famoso de "relativismo cultural", professando que não há culturas inferiores nem culturas superiores, enquanto que logo depois a maré nazista e racista estava avançando na Europa.

Culpa no cartório
Infelizmente, a Alemanha embarcou na piração etnocêntrica de Hitler, e não na antropologia ecumênica de Franz Boas, que era fã do método mouro da cópula sem distinção de raça.
Com culpa no cartório, os Estados Unidos deveriam ajoelhar no milho por atribuir causas raciais à posição social subalterna do negro, o qual veio trabalhar como escravo nas "plantations" do sul.
Não são poucos os brasileiros aparvalhados de elite que, ao contrário do que dizia o antropólogo alemão, acreditam em uma única linha de desenvolvimento que nos conduziria a um padrão cultural europeu ou norte-americano.
A tese de Franz Boas, concebida no limiar do século 20, de que a mistura tem um efeito favorável sobre a raça, significa que a miscigenação opera milagres. Não será de espantar se um dia desses surgir a notícia de um caboclo Franz Boas pintando por aí nos candomblés e catimbós.
O potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) prestou sempre homenagem aos conceitos do mestre alemão, lembrando-o como um dos patronos da "American Folclore Society", enquanto muitos badamecos proferem idiotices usando a palavra "folclore" em sentido pejorativo.

O folclore
Quanto a isso, o velho Cascudo foi peremptório: sem folclore não seria possível "The Mind of Primitive Man" (A Mente do Homem Primitivo), o grande livro de Boas publicado em 1938, ano em que morria Virgulino Lampião.
Quem sabe das coisas não sabe precisar no que o folclore difere da antropologia. Com o detalhe de que o lance do antropólogo é ouvir o povo, tal qual o médico que ausculta o paciente. Se não tivesse oiças apuradas e fina percepção acústica, certamente Boas não teria escrito textos notáveis sobre linguagem e etnologia, sendo que essa disciplina trata dos povos iletrados, como dizia o antropólogo Darcy Ribeiro, o inesquecível teórico do socialismo melanocróico.
Com certeza perdemos no que tange ao conhecimento dos trópicos úmidos e ensolarados pelo fato de Franz Boas nunca nos ter visitado. Se ele tivesse vindo para cá, é bem provável que a palavra "trópico" não tivesse ganho conotação pândega como ganhou no discurso das nossas ciências sociais. Quem veio ao Brasil foi o antropólogo francês Levi-Strauss -por sinal, estava almoçando na Universidade Columbia, sentado ao lado de Franz Boas, quando este morreu de um ataque cardíaco, aos 82 anos de idade.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela).

Antropologia Cultural
112 págs., R$ 19,90
de Franz Boas. Tradução de Celso Castro. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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