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No centenário do seu nascimento, o sociólogo que formulou uma das mais vigorosas interpretações do Brasil permanece um problema para os pesquisadores devido a sua atitude política conservadora, que o levou a colaborar com o regime militar de 64
Céu & inferno de Gilberto Freyre
Fundação Gilberto Freyre
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O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), que faria cem anos na próxima quarta-feira, em Caió, na Guiné |
por Mario Cesar Carvalho
Esta é uma história de intolerância do homem que
criou a mais mitológica imagem de um Brasil tolerante.
Três meses depois do movimento militar de
1964, Luiz Costa Lima, professor de literatura brasileira
da então Universidade do Recife, foi preso e levado ao
quartel-general do Exército na cidade. Para que o interrogatório a que foi submetido fosse transcrito de maneira precisa, Costa Lima sentou-se ao lado do sargento
que datilografava as respostas para corrigir eventuais
imprecisões. Numa dessas correções, diz ter ouvido do
major Manoel Moreira Paes um pito que só decidiu revelar agora, 35 anos depois:
"Não tem nada de ficar corrigindo o que está sendo
escrito porque o seu caso já está resolvido: você foi denunciado como marxista por Gilberto Freyre e será
aposentado", teria dito o major, segundo as recordações de Costa Lima, hoje professor-visitante da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, ao ser indagado pela
Folha a respeito do episódio.
Costa Lima ficou preso por dois meses, foi aposentado e não pôde sair do país até a Lei da Anistia, em 1979.
O major Paes, que passou para a reserva em 1974 como
coronel, diz que o diálogo "jamais aconteceu": "O Gilberto tinha muito contato com os militares, mas só com
a cúpula. Nunca colhi nenhum resíduo de informação
com ele".
Fato ou ficção, não seria a primeira delação de Gilberto Freyre. Em 3 de maio de 1964, ele iniciou uma série de
oito artigos no "Jornal do Commercio" e no "Diário de
Pernambuco", nos quais acusa o reitor da Universidade
do Recife, João Alfredo da Costa Lima (sem parentesco
com o crítico Luiz Costa Lima) de ser conivente com a
"gritante propaganda de caráter, senão comunista, paracomunista".
Da opinião, Freyre salta na jugular: "Não se pretende
que lhe sejam cassados direitos políticos; nem que sua
Magnificiência seja detido, mesmo em sua casa; e sim
convidado -apenas isto- a afastar-se do cargo que
continua a ocupar", escreve em 3 de maio daquele ano.
Freyre pediu a cabeça do reitor da Universidade de Recife, depois rebatizada Universidade Federal de Pernambuco, por achar que "comunistas" ou "paracomunistas" haviam tomado conta da rádio universitária, do
serviço de extensão e das campanhas de alfabetização,
encabeçadas por Paulo Freire. Em 1963, ele já havia pedido o afastamento de supostos comunistas da Sudene
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).
Proscrito pela esquerda
Que Gilberto Freyre era
conservador já se sabia desde os anos 60. Naquela década e na seguinte, "Casa-Grande & Senzala" foi praticamente proscrito por setores da esquerda e por sociólogos da Universidade de São Paulo porque teria uma visão idílica do passado colonial e da escravatura, que culminaria com a idéia de que o Brasil vive uma "democracia racial", sem conflitos entre negros e brancos.
A novidade é o porte do conservadorismo, a intolerância, os interesses comezinhos -atacava o reitor
porque ele se recusava a nomear um indicado seu para a
direção de um instituto. Reabilitado nos anos 80, Freyre, cujo centenário de nascimento será comemorado no
próximo dia 15, continua um enigma político.
Como o "soviético" dos anos 30 e 40, a forma como os
usineiros nordestinos usavam para chamá-lo de comunista, vira o arquiconservador dos anos 60? Como um
reacionário produz a mais desconcertante interpretação do Brasil, distribuída na trilogia "Casa-Grande &
Senzala" (1933), "Sobrados e Mucambos" (1936) e "Ordem e Progresso" (1959)? É esse cipoal de contradições
que engendrou o enigma.
"A trajetória política do meu avô é a parte mais obscura de sua vida", diz Gilberto Freyre Neto, superintendente-geral da Fundação Gilberto Freyre.
O enigma resulta do modo festivo como Freyre foi
reabilitado, segundo Enrique Larreta, professor da Universidade Cândido Mendes que está escrevendo uma
biografia em três volumes sobre Freyre com Guilhermo
Giucci, ambos uruguaios -o primeiro volume será
lançado neste mês.
"Gilberto Freyre está sendo reabilitado de forma acrítica porque não existe pesquisa documental sobre ele,
só interpretações de sua obra. O que os intelectuais escrevem é derivado do que o próprio Gilberto escreveu.
Isso resulta numa visão monumental. É preciso desmonumentalizar Gilberto Freyre", propõe Larreta.
Se houvesse mais pesquisas, se descobriria que a fúria
de Gilberto Freyre contra comunistas em 1964 não era
desinteressada. Amigo do marechal Castelo Branco
(1886-1967), que ocupou a Presidência de 1964 a 1967,
Freyre queria ser governador de Pernambuco. Nilo
Coelho foi o escolhido em eleição indireta -os militares consideravam Freyre excessivamente vaidoso e politicamente inábil, segundo um general que prefere não
ter a sua identidade revelada.
Convites políticos
Castelo Branco, que frequentou
os seminários de tropicologia coordenados por Freyre
no início dos anos 60, convidou o sociólogo para ser seu
ministro da Educação -e aí foi Freyre quem recusou.
Não foi a primeira vez que se recusou a ocupar um ministério. Antes, já havia dito não a convites feitos por
Getúlio Vargas em 1954, pouco antes do suicídio, para
ocupar o Ministério da Reforma Agrária, e de Jânio
Quadros, em quem Freyre votara para a Presidência.
A participação de Freyre no regime militar não foi como mero espectador. Em 1972, ele chegou a escrever
uma sugestão de programa para a Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido de apoio aos militares.
Encomendado pelo então deputado Marco Maciel, hoje
vice-presidente da República, o documento aprofunda
os paradoxos de Freyre. Estão lá a sua desconfiança
com a democracia clássica ("não são mais as eleições a
forma definitiva de fazer valer o sistema democrático"),
a sua pregação de que o país precisa de "soluções brasileiras para situações brasileiras", mas há pelo menos
dois pontos desconcertantes para quem veste o figurino
de conservador acabado em Freyre: ele defende uma
melhor distribuição de renda e a reforma agrária.
Freyre tornou-se também uma espécie de ideólogo
informal do regime pós-64, segundo Elide Rugai Bastos, professora da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas) e autora de duas teses sobre Freyre, de doutorado e de livre docência.
"O pensamento de Gilberto Freyre, a idéia de que o
Brasil tem uma história em que os conflitos se harmonizam, vira cultura política e transforma-se em senso comum", diz Elide. O exemplo mais extremo dessa absorção acontece com a defesa que Freyre fazia da "democracia racial" brasileira. "Com o oba-oba na recuperação de Gilberto Freyre, perde-se a dimensão política da
obra", acredita Elide.
Freyre nem sempre foi conservador, segundo o usineiro Odilon Ribeiro Coutinho, 76, amigo do sociólogo
de 1944 até a sua morte, em 1987. Ribeiro Coutinho integrou com Freyre a ala estudantil da UDN (União Democrática Nacional). "Gilberto era de uma facção chamada Esquerda Democrática, composta por socialistas.
O maior pecado de Gilberto foi ter agido de maneira implacável em 1964. Ele pediu a cabeça de pessoas que
considerava nocivas ao processo político", diz o amigo.
Foi pela UDN que Gilberto seria eleito deputado para
a Constituinte de 1946. Sua votação foi impulsionada
por um ato de coragem. Em 1945, numa manifestação
contra a ditadura de Vargas, o estudante de direito Demócrito de Souza Filho foi assassinado por pistoleiros
contratados por políticos, e Freyre não se calou diante
da brutalidade -assumiu a liderança da passeata. "Os
usineiros diziam que nós tínhamos escolhido um soviético para disputar a eleição: era Gilberto", diz Ribeiro
Coutinho.
"Socialista experimental"
Não era a primeira
vez que Freyre era chamado de "soviético". Em 1935,
quando fazia as pesquisas para escrever o livro "Nordeste", propôs aos usineiros de Pernambuco uma pesquisa sociológica para investigar as condições de vida
dos trabalhadores nas usinas de cana. Também foi tachado de comunista e preso pela polícia de Vargas. Em
1942, seria detido novamente por apontar o que considerava atividades "nazistas" de um padre alemão no
Recife. O próprio Freyre definiu-se como "socialista experimental" em discurso que fez na Câmara dos Deputados em 1950.
O ziguezague do conservadorismo à generosidade
não foi exclusivo ao período pré-64, segundo sua filha,
Sonia Maria Freyre Pimentel, presidente da Fundação
Gilberto Freyre: "Ele soltou muita gente da cadeia após
64. Ia lá e dizia que o sujeito era comunista, mas não era
perigoso. Ele nunca perseguiu ninguém por motivos
ideológicos".
O desconcertante em Freyre é que o conservador político não soterra o inovador teórico, principalmente nos
métodos de pesquisa pouco ortodoxos, segundo Elide
Rugai Bastos, da Unicamp.
Para entender essa inovação, é melhor deixar em suspenso as loas dos reabilitadores de Freyre, segundo as
quais ele seria um dos criadores da história do cotidiano, um dos precursores da história das mentalidades,
um dos primeiros sociólogos a usar o conceito de pós-modernidade e pioneiro em valorizar a infância como
chave para se entender o adulto. Loas servem para envaidecer, mas ofuscam a compreensão.
A visão tradicional sobre Freyre aponta a passagem
do sociólogo pelos Estados Unidos -onde estudou entre 1917 e 1922, primeiro na Universidade Baylor (Texas) e depois na Columbia (Nova York)- como a chave para se entender essas inovações. É uma meia verdade, diz Elide. Na década de 20, a sociologia brasileira alimentava-se de autores franceses, principalmente. Freyre abriu uma frente nova -a sociologia norte-americana, ou de europeus radicados nos EUA.
Na Universidade Columbia, ele foi aluno do antropólogo de origem alemã Franz Boas (1858-1942), um dos
pioneiros a rechaçar o conceito de que a raça determinaria comportamentos, idéia do século 19 que atravessou o início do século 20. Boas substituiu o conceito de
raça pelo de cultura.
Valorização da mistura
Até 1933, ano de publicação de "Casa-Grande & Senzala" e da chegada de Hitler
ao poder na Alemanha, era senso comum dizer que o
Brasil estava condenado ao atraso por causa da mistura
de brancos, negros e índios. Freyre inverte essa noção,
ao valorizar a mistura de etnias. Era uma inovação no
Brasil, mas não nos EUA, segundo Enrique Larreta. Lá,
Randoph Pourne, um ensaísta do círculo da Columbia,
havia escrito em 1919 "Transnacional America", no
qual defende que os EUA são superiores à Europa por
causa da mistura cultural.
Freyre chegou a um dos conceitos mais polêmicos de
"Casa-Grande & Senzala", o de que os negros acabaram
impondo sua cultura aos brancos, por meio de técnicas
da história do cotidiano e das mentalidades. Ele vasculha o dia-a-dia do período colonial para mostrar como
os negros influenciaram os brancos na comida, na educação informal e até na malemolência da fala.
Amaciando a língua
Uma das passagens mais deliciosas de "Casa-Grande & Senzala" é a descrição de
como os negros amoleceram a língua portuguesa. O
deslocamento da colocação pronominal do modo imperativo ilustra a influência dos negros na cultura e, ao
mesmo tempo, a forma como os antagonismos se equilibram no Brasil: "Faça-me, é o senhor falando, o pai, o
patriarca; me dê, é o escravo, a mulher, o menino, a mucama".
Aí, suas fontes são mais complexas. História do cotidiano era um método que estava em voga nos anos 10 e
20 entre antropólogos nos EUA, segundo Elide. Um dos
marcos dessa onda são os cinco volumes de "The Polish
Peasant in Europe and America", de Florian Znaniecki
e William Thomas, publicados entre 1918 e 1920, que
Freyre estudou e hoje é um clássico sociológico sobre
imigração.
Ele, porém, não fica só nas fontes sociológicas e avança na literatura. A idéia de que a verdadeira história é a
história da intimidade, o olho clínico para os detalhes,
vem de Balzac, de Proust e dos irmãos Goncourt. De
Balzac, por exemplo, ele toma emprestado a idéia de
que a vida de uma madame importa mais para a história do que uma batalha de Napoleão.
"A leitura que Freyre faz da história em "Casa-Grande"
é materialista", defende Larreta. Foi por isso, segundo
ele, que a esquerda dos anos 30, inclusive o historiador
Caio Prado Junior, festejou o lançamento do livro.
Nos anos 60, o cenário inverteu-se e "Casa-Grande"
foi jogado numa espécie de limbo ideológico e tratado
como a história da escravidão vista do alpendre da casa-grande. Três razões explicam o limbo, segundo Larreta:
o conservadorismo de Freyre, a interpretação, difundida por sociólogos da USP, de que "Casa-Grande" seria
uma visão histórica da elite e a idéia de que o próprio escritor era um aristocrata. Na USP, Florestan Fernandes
liderava o grupo que fazia oposição à tese de democracia racial, do qual faziam parte o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.
Legado perverso
"Florestan Fernandes é o maior
responsável pela imagem de reacionário de Gilberto. A
USP não entendeu que Gilberto era pós-marxista. Ele
dizia que Marx ficou datado após a automação", diz Edson Nery da Fonseca, que conheceu Freyre em 1941 e foi
seu secretário.
A oposição de Florestan a Freyre tinha razões políticas
acadêmicas. As razões políticas são óbvias -o conservadorismo de Freyre. As acadêmicas são mais complexas. Enquanto Freyre via uma herança positiva da escravidão, visão consolidada na tese de que os negros
acabaram colonizando os brancos, Florestan preferia
frisar o legado perverso: as desigualdades sociais, políticas e econômicas.
As relações entre Freyre e Florestan são mais complexas, porém, do que supõe o esquematismo dual. Nas
cartas enviadas por Florestan a Freyre em 1961, nas
quais convida o sociólogo pernambucano a integrar a
banca de doutoramento de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, o professor da USP derrama-se em
elogios: "Não tenho palavras para agradecer à generosa
hospitalidade que me dispensou e a grata oportunidade
de um franco entendimento", escreve Florestan, referindo-se a sua passagem por Recife no mesmo ano.
Após fazer o convite para a banca, diz: "Acredito não
ter razão de ser o isolamento em que se tem mantido em
relação aos centros universitários, especialmente o de
São Paulo". A impressão é que Florestan estava tentando reatar relações com Freyre. Mesmo com toda os elogios, Freyre recusou o convite.
Florestan nota na carta um detalhe que explica em
parte a recepção que a obra de Freyre receberia nos
anos 60 e 70. Isolado de um dos principais centros de inteligência do país, a USP, ele só dialogava com aduladores. "Faltou polemizar sobre a obra de Gilberto Freyre
porque as discussões até agora envolveram quase sempre posições dogmáticas, seja para elogiá-la ou criticá-la", diz Elide.
No vaivém do pêndulo entre o reacionário político e o
escritor desconcertante, parece haver um Gilberto Freyre que só agora começa a ser revelado.
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