São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Móveis, roupas e construções passam a valer como índices culturais do patriarcado
Uma história da intimidade

por Peter Burke

Um dos traços mais surpreendentes e originais da obra de Gilberto Freyre como historiador social é seu interesse por aquilo que, à maneira dos arqueólogos e antropólogos, chamamos de "cultura material": a história da alimentação, da vestimenta, da moradia e da mobília. É bem conhecido o interesse de Freyre pela culinária, com destaque para os doces de Pernambuco, e pela história e sociologia da alimentação. Seu interesse na história das roupas estendia-se dos trajes formais dos moleques oitocentistas aos turbantes das escravas negras. Seu tino para o papel da moradia e da mobília na história social era ainda mais pronunciado.

Ler a cidade
Esse interesse de Freyre já era visível em alguns dos artigos que escreveu para o "Diário de Pernambuco" na década de 20, quando vivia na Europa, e nos quais sugeria que um viajante como ele tinha que aprender a ler as construções de uma cidade estrangeira como pistas para sua cultura própria. "Há casas cujas fachadas indicam todo um gênero de vida nos seus mais íntimos pormenores", afirmou então, utilizando possivelmente pela primeira vez uma das idéias centrais de sua obra posterior, a de uma história íntima ou história da intimidade. Ou ainda, generalizando em escala grandiosa: "O século 19 criou o "grand-hotel" como o século 11 criou a catedral gótica". Após seu retorno ao Brasil, Freyre publicou guias históricos do Recife (1934) e de Olinda (1939). Sua ilustração mais famosa para a idéia de que construções são pistas culturais encontra-se, é claro, em "Casa-Grande & Senzala", na qual desenvolve uma sugestão do filósofo da cultura Oswald Spengler e analisa a casa grande como "representação" do sistema patriarcal nordestino, bem como adaptação ao ambiente local. "Sobrados e Mucambos" (1936) empregava abordagem semelhante, como sugere o título. "Ordem e Progresso" (1956) foi pioneiro em sua discussão da moda tardo-oitocentista do chalé, ao passo que em "A Casa Brasileira" (1971) Freyre ainda se ocupava em responder a seus críticos e mostrar que a moradia era "uma das mais significativas expressões da cultura brasileira", uma "expressão coletiva anônima". Os objetos domésticos brasileiros também foram estudados por Freyre como fontes para a história social de sua época. Em "Nordeste" (1937), por exemplo, Freyre refletiu sobre a história cultural da rede e da cadeira de balanço patriarcais, tratando-as como símbolos ou, mais exatamente, como materializações do ócio voluptuoso que os brasileiros, de modo geral, herdaram dos senhores de engenho pernambucanos. Em "Ingleses no Brasil" (1948), ele se pôs a discutir o uso de pianos, móveis, louça e talheres ingleses (incluindo aparelhos de chá). Fez notar o interesse, no Brasil de inícios do século 19, pelo estilo de decoração interior desenvolvido na Inglaterra por Robert Adams (1728-92) e seu irmão James, enfatizando que o estilo brasileiro acabava por ser um "Adams aportuguesado". De modo semelhante, afirmava que os dados sobre as posses das famílias brasileiras, atestadas pelos anúncios do "Jornal do Comércio" e documentos de leilões, mostravam que a louça e os talheres importados da Inglaterra eram "domesticados" ou adaptados para uso no ambiente do Novo Mundo. Noutras palavras, o notório interesse de Freyre pelos processos de hibridização ou mestiçagem estendiam-se ao campo da cultura material.

Ampliar as intuições
Hoje em dia, quando a história cultural ou social dos artefatos pequenos ou grandes, das catedrais aos garfos, já não parece excêntrica ou surpreendente, a ponto de vários museus dedicarem-se a enfatizar esse aspecto, seria fácil menosprezar a conquista de Freyre ao colocar a comida, as roupas, os móveis e as casas dentro do mapa da história. A história da vida cotidiana seria impossível sem os dados da cultura material, assim como a história da cultura material seria ininteligível fora do contexto da vida social cotidiana. Uma das tarefas importantes para os historiadores e sociólogos contemporâneos consiste em ampliar ainda mais as intuições de Freyre, isto é, preocupando-se menos com as descrições de objetos encontradas em textos (como diários de visitantes estrangeiros ou anúncios em jornais) e mais com os próprios objetos e sua representação em pinturas, desenhos, gravuras e fotografias. Como o jovem Gilberto Freyre veio a desenvolver seu interesse intenso pela história, sociologia e antropologia da cultura material? Essa é uma questão para seus biógrafos.

Aprendizado com Boas
Segundo minha hipótese provisória e pessoal, sua reação às construções e aos objetos domésticos foi originalmente de ordem estética, mas ele aprendeu a ver esses objetos como pistas para a natureza de culturas diferentes quando estudava antropologia com Franz Boas na Universidade Columbia, em Nova York, no começo dos anos 20.
Boas é famoso atualmente por sua crítica à noção de raça, mas sua contribuição ao campo da cultura material também foi de grande importância. Boas conduziu pesquisas de campo entre os Kwakiutl da costa ocidental do Canadá, em especial sobre o costume do "potlatch", festival em que chefes rivais destruíam objetos materiais como cobertores e chapas de cobre a fim de proclamar sua riqueza e seu poder diante dos competidores. Boas trabalhou em museus de antropologia na Alemanha e nos Estados Unidos, assim como em departamentos universitários. Foi um dos primeiros curadores a organizar suas exposições por "áreas culturais", justamente porque via os objetos como testemunhos da natureza da cultura que os havia produzido.
Por sua vez, a abordagem de Freyre não deixou de ter influência fora do Brasil. Na verdade, seu caráter modelar nem sempre foi devidamente reconhecido, ao menos não na Grã-Bretanha e na França.
Fernand Braudel, que descobrira o trabalho de Freyre durante sua temporada em São Paulo no final dos anos 30, voltou-se para o estudo do que chamou de "civilisation matérielle" em um livro publicado em 1963, no qual devotava um capítulo a casas, camas e cadeiras; ainda assim, a única referência "desfavorável" a Freyre em todo o livro. E o historiador britânico Asa Briggs, que convidou Freyre a dar conferências na Universidade de Sussex na década de 60, acabou por publicar um estudo importante sobre "Victorian Things" (Objetos Vitorianos, 1987), que incluía exatamente aqueles artefatos que os industriais britânicos exportavam para o Brasil.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros.
Tradução de Samuel Titan Jr.


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