São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Sociólogo ajudou a criar idéia de que a miscigenação era comum a outras ex-colônias
Uma retórica luso-tropical

por Omar Ribeiro Thomaz

É lugar comum entre os promotores políticos e intelectuais da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa a idéia de uma "particularidade" do colonialismo português, inscrita na realidade dos diferentes países que, em diferentes momentos, tiveram o estatuto político de "colônia" ou "província ultramarina" de Portugal. Tal "particularidade" poderia ser observada não apenas em países tão diferentes como Brasil e Moçambique, mas também em enclaves como Goa, Macau ou Timor. A presença portuguesa em algum momento da história parece ser a garantia de uma certa harmonia na relação entre diferentes grupos étnicos e culturais. As especificidades desses diferentes espaços, a sua imensa diversidade cultural, o fato de termos países com praticamente 100% de lusófonos e territórios onde a lusofonia é, pelo menos, questionável, se vêem nubladas diante de uma mesma "identidade" supranacional conferida por um denominador comum: o colonizador português. Institucionalidade nova e frouxa, cercada de muita retórica e pouca ação, a CPLP tem uma curta história. O debate em torno de um suposto "mundo português" é, contudo, antigo e marcou a história intelectual do Brasil e de Portugal para ter consequências bastante significativas nos países africanos de língua oficial portuguesa. Se não havia consenso entre intelectuais e políticos portugueses quanto ao lugar ocupado pelo Brasil no "mundo que o português criou", o fato é que a partir dos anos 30 e 40 o Brasil como "imagem" se faz presente em elaborações portuguesas em torno da identidade nacional e do passado, presente e futuro de um império que já apresentava sinais de morbidez. A partir de 1950, e de forma crescente, personalidades vinculadas ao regime autoritário e colonialista de Lisboa passam a assumir a idéia de que o Brasil seria a representação, no presente, de uma realidade promovida por Portugal nos quatro cantos do globo: protonações tropicais, multirraciais, propensas à miscigenação e ao sincretismo sem abrir mão da base lusitana, responsável última pela sua formação. O que era realidade no Brasil (sic) viria a ser promessa de futuro na África, em especial em Angola e Moçambique. Enfim, Portugal não teria "colônias" na África, mas "províncias ultramarinas", partes inalienáveis de uma nação que ia do Minho ao Timor. A universalização de processos inicialmente associados ao Brasil para todo o "mundo português" foi uma operação engenhosa para a qual colaborou sobremaneira Gilberto Freyre, já naquele momento autor consagrado no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos. E o sociólogo pernambucano não deixaria de ser citado por intelectuais e políticos portugueses como Adriano Moreira, Marcelo Caetano e o próprio ditador Oliveira Salazar. As reticências às interpretações de Freyre seriam pouco a pouco superadas, sobretudo após sua viagem a Portugal e às colônias no início da década de 50. Os dois volumes -resultado da visita de Freyre a Portugal, Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique e Goa- seriam citados "ad nausean" como "prova" do potencial transcontinental de suas teorias: em qualquer tempo e lugar, independentemente dos grupos e culturas locais, o colonizador português tenderia a reproduzir a experiência sul-americana. O resultado seriam "brasis" em gestação na África e na Ásia. Devemos, contudo, olhar com cautela a adoção do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre por parte de setores da "intelligentsia" e do poder portugueses. Suas teses não foram, inicialmente, bem recebidas e entre os anos 30 e 40 foram rejeitadas por importantes intelectuais e colonialistas, para quem o processo observado no Brasil pouco ou nada servia para interpretar a realidade das colônias africanas; quando muito era um sinal de alerta do que deveria ser evitado a todo custo pela administração colonial: a miscigenação, em contexto africano, não poderia ser celebrada, e o processo de assimilação cuidadosamente controlado pelo rigoroso regime do "indigenato", legislação que afirmava a nacionalidade portuguesa de todos os territórios e gentes sob jurisdição lusa, ao mesmo tempo em que fixava a desigualdade característica desses grupos, inscrita na própria diversidade de seus "usos e costumes".

Caricaturas de brancos
Ao Estado português caberia promover a ida de famílias metropolitanas às colônias, como forma de evitar relações interétnicas em larga escala, que poderiam comprometer a "essência" da grei; a assimilação à cultura portuguesa realizar-se-ia pouco a pouco, evitando caricaturas de brancos (os "calcinhas") e a perda de referências às culturas tradicionais que, no limite, seriam defendidas no processo de regulamentação dos "usos e costumes indígenas".
É nos anos 50 que, entre muitas controvérsias, se fixa uma interpretação luso-tropical para as colônias e enclaves portugueses; paradoxalmente, é nesse período que ganham vulto as pressões pela descolonização, ao tempo em que o estabelecimento de famílias brancas em Angola e Moçambique acirra uma realidade social segregacionista e temos, enfim, a estruturação dos modernos movimentos de libertação nacional e a acumulação de tensões que levariam a mais de uma década de guerra, por si só questionadora do modelo luso-tropical elaborado por Gilberto Freyre. Pela força das armas, angolanos, moçambicanos e guineenses afirmavam: "Nós não somos portugueses", e a crise do império viria a significar a crise da nação.
No entanto, num período pós-colonial que implicou profundas transformações em Portugal e nos novos países remanescentes do império, volta e meia vemos a retórica luso-tropical a todo vapor. Longe de ser um patrimônio apenas de saudosistas do império, traços do luso-tropicalismo reaparecem em debates sobre a "identidade portuguesa" (pertencentes a uma longa linhagem) que envolvem intelectuais e políticos progressistas como Boaventura de Souza Santos, Eduardo Lourenço e Mário Soares, num momento em que Portugal redefine sua história e suas fronteiras no contexto da União Européia.
Nos meios de comunicação de massa portugueses, o luso-tropicalismo reaparece na sua plenitude, travestido de paternalismo, envolto na retórica da lusofonia ou no debate sobre o suposto lugar a ser desempenhado por Portugal na cooperação internacional.
O fim trágico do colonialismo português, a violência da guerra de libertação e as guerras civis que se alastraram em Angola e Moçambique não deveriam colocar em xeque as teorias luso-tropicais de Gilberto Freyre? O êxodo dos antigos colonos, subitamente em terra estrangeira, não seria suficiente para questionarmos a idéia de uma possível "identidade" alargada às duas margens do Atlântico? A reação por vezes negativa da opinião pública portuguesa a uma suposta invasão de migrantes brasileiros e africanos não balança a idéia de uma "comunidade lusófona"?
E se Gilberto Freyre e sua obra se inseriram dinamicamente no debate colonial português, acredito que não devemos nos furtar a participar ativamente do debate pós-colonial em português. A língua aqui não seria pressuposto de uma identidade ou de qualquer tradutibilidade de experiências, mas um instrumento na criação de um novo diálogo, superadas agora a estrutura hierárquica do império e a proeminência de uma "essência" lusitana na formação nacional dos países que integram a CPLP: diálogo que poderia dinamizar a reflexão em diferentes países que, longe de compor um todo sistêmico, viram suas experiências se cruzarem mais de uma vez.
Entre as muitas lições que nos deixou o mestre de Apipucos, está a importância concedida aos processos violentos que caracterizam o Brasil desde os primórdios da colonização, violência nunca negada por Gilberto Freyre; outra, muito importante, é a riqueza de um olhar para outras terras e outras gentes, em português, mas despido dos preconceitos e da arrogância de muitos que acreditam viver num "grande país".


Omar Ribeiro Thomaz é doutor em antropologia social pela USP e editor da revista "Novos Estudos" (Cebrap).


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