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Em entrevista inédita, o autor de "Casa-Grande & Senzala" fala
sobre a importância do brincar na constituição da cultura brasileira
Extrovertidamente felizes
Betty Milan
especial para a Folha
Foi em julho de 1984. Eu andava às
voltas com o projeto de me aprofundar no que Joãosinho Trinta chamava
de "cultura do brincar". Para saber
qual a origem do nosso brincar, ocorreu-me consultar Gilberto Freyre. Telefonei de São Paulo para a Fundação
Joaquim Nabuco e consegui ser recebida por ele. Como, além das minhas
questões escritas, eu tivesse um gravadorzinho, o encontro se configurou
como uma entrevista.
Lembro da pontualidade e da elegância de Freyre que, apesar do calor,
estava vestido de terno. Lembro também da nossa seriedade extrema
-decorrente da surpresa dele e do
meu receio. Joãosinho Trinta era meu
guia espiritual, e eu temia que suas
idéias fossem desconsideradas pelo
sociólogo. Por não o conhecer.
Foi um dos intelectuais brasileiros
mais abertos que encontrei. Sempre
disposto a reconsiderar as suas posições. Respondeu a todas as minhas
perguntas, me questionando às vezes
sobre o que eu pensava da sua resposta e me dando assim a possibilidade
de ter com ele uma conversa de igual
para igual -malgrado a diferença de
idade e de estatura intelectual. No fim,
teve a gentileza de me oferecer um livro com uma conferência sobre Camões, em que pôs uma dedicatória
inesquecível: "Pelas afinidades do
pensar e do sentir".
No dia seguinte recebi um telefonema da Fundação me informando que,
por sugestão de Gilberto Freyre, fora
colocado um carro à minha disposição para que eu conhecesse Recife.
Não vou dizer que ficamos amigos,
mas isso poderia ter acontecido, pois um tempo depois eu o convidei para um Congresso de Psicanálise
no Rio de Janeiro e, apesar das dificuldades de saúde,
ele tomou um avião e foi, prestigiando a minha causa de então.
Segue o texto de uma entrevista que, não tendo sido programada, ficou inédita, e cujo tema é o brincar
na formação da cultura brasileira.
Salvador de Madariaga diz, em "Ingleses, Franceses, Españoles", que os franceses privilegiam o "droit", os ingleses o "fair play" e os espanhóis o "honor". Pode-se dizer que a cultura brasileira privilegia o brincar?
Sim. O brincar veio, sobretudo, do negro, que é um extrovertido. O negro é
mais do que o euro-português, mais
do que o ameríndio de origem asiática e não tropical, o verdadeiro filho
do trópico. De modo que no Brasil ele
não veio para um meio estranho, veio
para um meio ao qual ele estava predisposto por vários motivos, a começar por um motivo biológico, pela sua
transpiração. O negro transpira pelo
corpo inteiro. Isso é uma vantagem
enorme na sua acomodação ao clima
tropical. Transpirando pelo corpo inteiro, ele é extrovertidamente feliz no
seu modo de respirar o trópico.
Mas o índio também brincava.
Você está, sem dúvida, informada de
uma grande contribuição dada por
uma colega da Universidade Columbia, chamada Ruth Benedict, que dividiu os seres humanos em dionisíacos e apolíneos. O ameríndio foi,
principalmente, um antidionisíaco,
ele foi um apolíneo, o que se explica
pelo fato, geralmente esquecido, de
que o ameríndio não é um filho do
trópico, onde ele viveu com saudade
da Ásia. O negro é um filho completo
do trópico, encontrou-se, no Brasil,
em terra dele, deparou-se com estranhos no trópico, como eram os portugueses e os ameríndios. Deve ter se
sentido como o verdadeiro homem
do trópico do Brasil, portanto com
uma capacidade de brincar superior à
dos outros. No que diz respeito ao
português, fala-se muito da saudade
como tristeza, e nós geralmente encontramos evidências de um homem
triste, não é?
Sim, mas em "Casa-Grande & Senzala", o
senhor nos fala do cristianismo muito
pouco ortodoxo do português, que chegava a namorar nas igrejas, e uma das características do brincar é justamente a não-aceitação da ortodoxia.
No modo de ser cristão, o português brincou. Onde
ele não brincou foi na saudade. A saudade é o antibrincar.
O negro adorava o seu orixá, cultuando um santo católico. O senhor acha que essa dissimulação tinha algo a ver
com o brincar ou ela deve ser explicada só em termos das
relações de força?
Isso nos leva, confesso, para um campo em que nunca pensei. É uma pergunta interessantíssima, mas eu
não estou preparado para responder. É bem possível
que tenha havido dissimulação por parte do negro.
A base do brincar é a máscara, a criança brinca de ser outra, o carnavalesco também, e eu penso que, se não fosse
o privilégio do brincar, a aculturação das religiões no
Brasil teria se feito de outra maneira. O africano adora
Iansã, cultuando santa Bárbara; o jesuíta catequizava,
transformando a liturgia em função do índio.
Sim, mas eu não posso deixar de lado a saudade portuguesa como uma maneira de não-brincar. Foi uma
coisa de tal modo preponderante que deu a tristeza
pela saudade.
Mas o senhor acha que prevalece aqui o desejo de brincar
ou a saudade?
Hoje prevalece o brincar, sim, mas aí você tem que
tomar em consideração outras influências.
Quais?
Você já não pode dar ao Brasil uma configuração de
europeidade inteiramente ibérica, nem sequer portuguesa, porque em certa fase da formação brasileiratemos uma influência francesa. O francês brinca?
Com o corpo, não. Brinca com a palavra.
Acrobaticamente com a palavra.
O nosso brincar está muito ligado ao corpo.
Sem dúvida nenhuma.
Como o brincar da criança.
Sim. Mas eu peço permissão para voltar aos franceses. O brasileiro da classe altamente burguesa brincou muito com a mulher francesa, a coquete, a prostituta fina que veio para o Brasil e, à certa altura, foi
até mais apreciada do que a mulata. Não lhe parece
que o brincar com a francesa deva ser tomado em
consideração?
Jamais teria me ocorrido isso, mas eu já pensei numa
equivalência entre o nosso brincar e a libertinagem do
século 18, que desculpabilizava o gozo, existiu na França
e não na cultura inglesa ou na ibérica.
Na alemã também não. Você já prestou atenção à
grande influência da boneca francesa sobre a formação brasileira? Creio que foi uma influência enorme
e que não foi ainda estudada. A boneca começou ter
influência sobre a criança e, por intermédio desta,
sobre a mãe e o pai da criança, todos sensibilizados
pela boneca loura, ariana.
O carnavalesco Joãosinho Trinta mostrou, num dos seus
muitos desfiles, uma Cinderela negra. Trata-se, aliás, de
um exemplo de como o brincar subverte os valores da
burguesia, quer dizer, aceita a Cinderela que faz parte do
nosso imaginário, mas dá a sua versão brincalhona, ladina e negra.
Sem dúvida é um ponto a ser considerado. Como é
que você aplica a teoria psicanalítica?
Durante três anos eu me coloquei à escuta dos carnavalescos no intuito de esclarecer melhor a questão da identidade cultural, uma questão aliás sintomática da nossa
intelligentsia, que duvida da própria identidade. Isso
não diz respeito ao senhor enquanto autor. O senhor está
certo do seu lugar subjetivo e da sua identidade, não a vive de maneira angustiada como os outros autores citados por Dante Moreira Leite em "O Caráter Nacional"?
A senhora acha que Mário de Andrade foi um angustiado? Acho que sim, porque, na verdade, ele
nunca assumiu a negritude.
No entanto, foi ele quem escreveu "Macunaíma".
Mas aí houve uma transferência, foi uma obra-prima de transferência.
É verdade, porque há uma ruptura muito grande entre o
Mário crítico, ensaísta, e o autor de "Macunaíma".
São dois Mários.
Um era branco e o outro era mestiço, pertencia à cultura do brincar, através da qual nós damos a nossa versão
da cultura européia. Trata-se de uma cultura mestiça
porque ela não é nem do negro nem do branco. Pena que
seja tão desvalorizada pela nossa cultura oficial. O senhor vê que até hoje a tendência é tratar o Carnaval como um fato exclusivamente folclórico.
Sem dúvida. Realmente, a tendência oficial é fazer do
Carnaval uma simples expressão pitoresca, folclórica. Roberto da Matta está rompendo com isso e também outro antropólogo do Museu Nacional, o Gilberto Velho, que eu considero tão importante quanto o Roberto da Matta.
Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Século" (Record), entre outros.
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