São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Em entrevista inédita, o autor de "Casa-Grande & Senzala" fala sobre a importância do brincar na constituição da cultura brasileira
Extrovertidamente felizes

Betty Milan
especial para a Folha

Foi em julho de 1984. Eu andava às voltas com o projeto de me aprofundar no que Joãosinho Trinta chamava de "cultura do brincar". Para saber qual a origem do nosso brincar, ocorreu-me consultar Gilberto Freyre. Telefonei de São Paulo para a Fundação Joaquim Nabuco e consegui ser recebida por ele. Como, além das minhas questões escritas, eu tivesse um gravadorzinho, o encontro se configurou como uma entrevista.
Lembro da pontualidade e da elegância de Freyre que, apesar do calor, estava vestido de terno. Lembro também da nossa seriedade extrema -decorrente da surpresa dele e do meu receio. Joãosinho Trinta era meu guia espiritual, e eu temia que suas idéias fossem desconsideradas pelo sociólogo. Por não o conhecer.
Foi um dos intelectuais brasileiros mais abertos que encontrei. Sempre disposto a reconsiderar as suas posições. Respondeu a todas as minhas perguntas, me questionando às vezes sobre o que eu pensava da sua resposta e me dando assim a possibilidade de ter com ele uma conversa de igual para igual -malgrado a diferença de idade e de estatura intelectual. No fim, teve a gentileza de me oferecer um livro com uma conferência sobre Camões, em que pôs uma dedicatória inesquecível: "Pelas afinidades do pensar e do sentir".
No dia seguinte recebi um telefonema da Fundação me informando que, por sugestão de Gilberto Freyre, fora colocado um carro à minha disposição para que eu conhecesse Recife.
Não vou dizer que ficamos amigos, mas isso poderia ter acontecido, pois um tempo depois eu o convidei para um Congresso de Psicanálise no Rio de Janeiro e, apesar das dificuldades de saúde, ele tomou um avião e foi, prestigiando a minha causa de então.
Segue o texto de uma entrevista que, não tendo sido programada, ficou inédita, e cujo tema é o brincar na formação da cultura brasileira. Salvador de Madariaga diz, em "Ingleses, Franceses, Españoles", que os franceses privilegiam o "droit", os ingleses o "fair play" e os espanhóis o "honor". Pode-se dizer que a cultura brasileira privilegia o brincar? Sim. O brincar veio, sobretudo, do negro, que é um extrovertido. O negro é mais do que o euro-português, mais do que o ameríndio de origem asiática e não tropical, o verdadeiro filho do trópico. De modo que no Brasil ele não veio para um meio estranho, veio para um meio ao qual ele estava predisposto por vários motivos, a começar por um motivo biológico, pela sua transpiração. O negro transpira pelo corpo inteiro. Isso é uma vantagem enorme na sua acomodação ao clima tropical. Transpirando pelo corpo inteiro, ele é extrovertidamente feliz no seu modo de respirar o trópico. Mas o índio também brincava. Você está, sem dúvida, informada de uma grande contribuição dada por uma colega da Universidade Columbia, chamada Ruth Benedict, que dividiu os seres humanos em dionisíacos e apolíneos. O ameríndio foi, principalmente, um antidionisíaco, ele foi um apolíneo, o que se explica pelo fato, geralmente esquecido, de que o ameríndio não é um filho do trópico, onde ele viveu com saudade da Ásia. O negro é um filho completo do trópico, encontrou-se, no Brasil, em terra dele, deparou-se com estranhos no trópico, como eram os portugueses e os ameríndios. Deve ter se sentido como o verdadeiro homem do trópico do Brasil, portanto com uma capacidade de brincar superior à dos outros. No que diz respeito ao português, fala-se muito da saudade como tristeza, e nós geralmente encontramos evidências de um homem triste, não é? Sim, mas em "Casa-Grande & Senzala", o senhor nos fala do cristianismo muito pouco ortodoxo do português, que chegava a namorar nas igrejas, e uma das características do brincar é justamente a não-aceitação da ortodoxia. No modo de ser cristão, o português brincou. Onde ele não brincou foi na saudade. A saudade é o antibrincar.
O negro adorava o seu orixá, cultuando um santo católico. O senhor acha que essa dissimulação tinha algo a ver com o brincar ou ela deve ser explicada só em termos das relações de força? Isso nos leva, confesso, para um campo em que nunca pensei. É uma pergunta interessantíssima, mas eu não estou preparado para responder. É bem possível que tenha havido dissimulação por parte do negro. A base do brincar é a máscara, a criança brinca de ser outra, o carnavalesco também, e eu penso que, se não fosse o privilégio do brincar, a aculturação das religiões no Brasil teria se feito de outra maneira. O africano adora Iansã, cultuando santa Bárbara; o jesuíta catequizava, transformando a liturgia em função do índio. Sim, mas eu não posso deixar de lado a saudade portuguesa como uma maneira de não-brincar. Foi uma coisa de tal modo preponderante que deu a tristeza pela saudade. Mas o senhor acha que prevalece aqui o desejo de brincar ou a saudade? Hoje prevalece o brincar, sim, mas aí você tem que tomar em consideração outras influências. Quais? Você já não pode dar ao Brasil uma configuração de europeidade inteiramente ibérica, nem sequer portuguesa, porque em certa fase da formação brasileiratemos uma influência francesa. O francês brinca? Com o corpo, não. Brinca com a palavra. Acrobaticamente com a palavra. O nosso brincar está muito ligado ao corpo. Sem dúvida nenhuma. Como o brincar da criança. Sim. Mas eu peço permissão para voltar aos franceses. O brasileiro da classe altamente burguesa brincou muito com a mulher francesa, a coquete, a prostituta fina que veio para o Brasil e, à certa altura, foi até mais apreciada do que a mulata. Não lhe parece que o brincar com a francesa deva ser tomado em consideração? Jamais teria me ocorrido isso, mas eu já pensei numa equivalência entre o nosso brincar e a libertinagem do século 18, que desculpabilizava o gozo, existiu na França e não na cultura inglesa ou na ibérica. Na alemã também não. Você já prestou atenção à grande influência da boneca francesa sobre a formação brasileira? Creio que foi uma influência enorme e que não foi ainda estudada. A boneca começou ter influência sobre a criança e, por intermédio desta, sobre a mãe e o pai da criança, todos sensibilizados pela boneca loura, ariana. O carnavalesco Joãosinho Trinta mostrou, num dos seus muitos desfiles, uma Cinderela negra. Trata-se, aliás, de um exemplo de como o brincar subverte os valores da burguesia, quer dizer, aceita a Cinderela que faz parte do nosso imaginário, mas dá a sua versão brincalhona, ladina e negra. Sem dúvida é um ponto a ser considerado. Como é que você aplica a teoria psicanalítica? Durante três anos eu me coloquei à escuta dos carnavalescos no intuito de esclarecer melhor a questão da identidade cultural, uma questão aliás sintomática da nossa intelligentsia, que duvida da própria identidade. Isso não diz respeito ao senhor enquanto autor. O senhor está certo do seu lugar subjetivo e da sua identidade, não a vive de maneira angustiada como os outros autores citados por Dante Moreira Leite em "O Caráter Nacional"? A senhora acha que Mário de Andrade foi um angustiado? Acho que sim, porque, na verdade, ele nunca assumiu a negritude. No entanto, foi ele quem escreveu "Macunaíma". Mas aí houve uma transferência, foi uma obra-prima de transferência. É verdade, porque há uma ruptura muito grande entre o Mário crítico, ensaísta, e o autor de "Macunaíma". São dois Mários.
Um era branco e o outro era mestiço, pertencia à cultura do brincar, através da qual nós damos a nossa versão da cultura européia. Trata-se de uma cultura mestiça porque ela não é nem do negro nem do branco. Pena que seja tão desvalorizada pela nossa cultura oficial. O senhor vê que até hoje a tendência é tratar o Carnaval como um fato exclusivamente folclórico. Sem dúvida. Realmente, a tendência oficial é fazer do Carnaval uma simples expressão pitoresca, folclórica. Roberto da Matta está rompendo com isso e também outro antropólogo do Museu Nacional, o Gilberto Velho, que eu considero tão importante quanto o Roberto da Matta.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Século" (Record), entre outros.

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