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A fênix Stálin
Imagem do líder soviético oscilou
entre o guia genial, o provinciano e o ditador,
mas hoje retoma popularidade na Rússia
O stalinismo está aí vivo e não se restringe a velhos aposentados
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Stálin e Hitler -os dois
maiores tiranos do século 20- não podem
queixar-se de terem
sido esquecidos, se estiverem em algum lugar, no
além-túmulo.
Hitler foi objeto de várias
biografias, que culminaram
com dois extraordinários volumes do historiador inglês Ian
Kershaw ["Hitler - Um Perfil
do Poder" foi lançado no Brasil
pela ed. Zahar].
Stálin teve em vida um punhado de biografias e, mais recentemente, a de Simon Sebag
Montefiore, em dois livros:
"Stálin - A Corte do Czar Vermelho" (2006) e "O Jovem Stálin" (2008), na edição brasileira [Companhia das Letras].
Lidar com ambos, em dose
dupla, seria demais.
Fico com Stálin, cuja influência mundial e responsabilidade por vítimas inocentes
superou Hitler, mesmo porque
esteve à frente da União Soviética por 36 anos, enquanto o ditador nazista foi um tsunami
particularmente maléfico, mas
cuja duração foi de 12 anos.
Ressalve-se de passagem que
a duração do tsunami foi abreviada graças, entre outros fatores, ao papel da União Soviética
na Segunda Guerra Mundial.
Do ponto de vista historiográfico, há três versões básicas
de Stálin: a hagiográfica ou, se
quiserem, a altamente laudatória; a elaborada por sua vítima
Leon Trótski e autores por ele
influenciados; e, finalmente, a
que ganhou força em tempos
mais recentes, com a abertura
dos arquivos soviéticos.
A primeira versão define Stálin como genial guia dos povos
e encarnação da pátria do socialismo. Ela teria hoje pouca
importância se estivesse reduzida apenas a alguns empedernidos admiradores ao redor do
mundo, inclusive no Brasil.
Mas vai além desses parcos
limites, como veremos mais
adiante.
A segunda versão nasceu
com os livros admiráveis de
Trótski, notadamente, "Stálin"
e a "História da Revolução Russa". Neles, a figura de Stálin
aparece como a de um indivíduo rude, implacável, provinciano e que, por força das circunstâncias e da personalidade, o refluxo da revolução
mundial e a ausência de qualquer escrúpulo, acabou construindo um "Estado operário
degenerado" do porte da União
Soviética.
Homem metódico
A interpretação mais recente
tem em Montefiore seu nome
mais significativo.
Ele constrói a figura de Stálin
de uma forma diversa da elaborada por Trótski, polemizando
diretamente com este ao criticá-lo pela simplificação negativa da figura do ditador.
Embora a adjetivação de
Montefiore me pareça excessiva, e criticável o acúmulo de fatos, em detrimento da análise,
não há duvida de que sua obra,
apoiada em centenas de fontes
-dos diários pessoais aos depoimentos orais-, traz à tona
um retrato revisto e mais adequado do personagem.
Não se trata de uma revisão
de cabo a rabo nem de que Stálin saia melhor na fotografia.
Ele aí surge como um infatigável e metódico bolchevique
que, nos bastidores, galgou postos no Partido Social-Democrata russo e ganhou a confiança de Lênin, muito antes da revolução de outubro de 1917.
Surge também com os traços
de um homem culto, a partir do
aprendizado no seminário de
Tbilisi (Geórgia). Stálin admirava autores como Zola, Maupassant, Balzac, Gógol, Tchekhov, entre outros, e escrevia
versos, publicados na juventude em jornais da Geórgia.
Ao mesmo tempo, Montefiore detalha a carreira de Stálin
como gângster revolucionário,
organizador de assaltos a bancos e sequestros em nome da
revolução, pela qual, combinada com a sede de poder, praticou horrores contra o povo russo, seus companheiros e familiares.
Porém, Trótski tem razão
quando pinta Stálin como um
provinciano avesso ao cosmopolitismo e ressentido com os
intelectuais do partido.
Seu comportamento em
Londres, durante o 5º Congresso do Partido Social-Democrata russo (1907), narrado em minúcias por Montefiore, é um
eloquente exemplo disso.
Só que esse provincianismo,
de início georgiano e depois
transformado em nacionalismo russo, foi muito adequado a
Stálin para vestir a casaca do
"socialismo num só país", depois do fracasso das revoluções
ou golpes de esquerda, na Europa Ocidental, logo após a Primeira Guerra Mundial.
Admiração
Volto agora ao culto a Stálin,
em um contexto atual: o da
Rússia dos nossos dias.
O stalinismo está aí vivo e
não se restringe a velhos aposentados, saudosos de um
mundo em que "tudo estava no
seu devido lugar".
Muitos jovens são também
admiradores de Stálin. Um estudo feito em 2007 indicou que
54% dos jovens russos acreditam que Stálin fez mais bem do
que mal e 46% dos entrevistados discordam da ideia de que o
ditador era cruel, como lembra
matéria publicada no "Estado
de S. Paulo" de 22/3.
Essa espantosa sobrevivência tem muito a ver com o caminho percorrido pela Alemanha
e pela ex-União Soviética, nos
anos subsequentes à Segunda
Guerra Mundial.
Os governantes alemães empenharam-se na democratização do país e fizeram o possível
para indenizar as vítimas do
nazismo e lembrá-las em suas
maiores cidades, especialmente no caso dos judeus.
Enquanto isso, após a morte
de Stálin (1953), pela mão de
Nikita Kruschev, a União Soviética tratou de restringir a desestalinização ao "culto da personalidade" do líder, sem nunca ter feito uma verdadeira revisão de um passado sombrio.
Foi a partir da ocultação desse passado que a Rússia passou
ao capitalismo selvagem, em
cujo comando estão figuras
provenientes do stalinismo, como é o caso eloquente de Vladimir Putin, antigo líder da KGB
-a polícia política soviética.
Como se vê, em terreno tão
mal desbastado, não é fortuito
que as ervas daninhas voltem a
crescer, para desespero dos democratas russos.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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