São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+Autores

A fênix Stálin

Imagem do líder soviético oscilou entre o guia genial, o provinciano e o ditador, mas hoje retoma popularidade na Rússia


O stalinismo está aí vivo e não se restringe a velhos aposentados


BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Stálin e Hitler -os dois maiores tiranos do século 20- não podem queixar-se de terem sido esquecidos, se estiverem em algum lugar, no além-túmulo.
Hitler foi objeto de várias biografias, que culminaram com dois extraordinários volumes do historiador inglês Ian Kershaw ["Hitler - Um Perfil do Poder" foi lançado no Brasil pela ed. Zahar].
Stálin teve em vida um punhado de biografias e, mais recentemente, a de Simon Sebag Montefiore, em dois livros: "Stálin - A Corte do Czar Vermelho" (2006) e "O Jovem Stálin" (2008), na edição brasileira [Companhia das Letras]. Lidar com ambos, em dose dupla, seria demais.
Fico com Stálin, cuja influência mundial e responsabilidade por vítimas inocentes superou Hitler, mesmo porque esteve à frente da União Soviética por 36 anos, enquanto o ditador nazista foi um tsunami particularmente maléfico, mas cuja duração foi de 12 anos.
Ressalve-se de passagem que a duração do tsunami foi abreviada graças, entre outros fatores, ao papel da União Soviética na Segunda Guerra Mundial.
Do ponto de vista historiográfico, há três versões básicas de Stálin: a hagiográfica ou, se quiserem, a altamente laudatória; a elaborada por sua vítima Leon Trótski e autores por ele influenciados; e, finalmente, a que ganhou força em tempos mais recentes, com a abertura dos arquivos soviéticos.
A primeira versão define Stálin como genial guia dos povos e encarnação da pátria do socialismo. Ela teria hoje pouca importância se estivesse reduzida apenas a alguns empedernidos admiradores ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Mas vai além desses parcos limites, como veremos mais adiante.
A segunda versão nasceu com os livros admiráveis de Trótski, notadamente, "Stálin" e a "História da Revolução Russa". Neles, a figura de Stálin aparece como a de um indivíduo rude, implacável, provinciano e que, por força das circunstâncias e da personalidade, o refluxo da revolução mundial e a ausência de qualquer escrúpulo, acabou construindo um "Estado operário degenerado" do porte da União Soviética.

Homem metódico
A interpretação mais recente tem em Montefiore seu nome mais significativo. Ele constrói a figura de Stálin de uma forma diversa da elaborada por Trótski, polemizando diretamente com este ao criticá-lo pela simplificação negativa da figura do ditador.
Embora a adjetivação de Montefiore me pareça excessiva, e criticável o acúmulo de fatos, em detrimento da análise, não há duvida de que sua obra, apoiada em centenas de fontes -dos diários pessoais aos depoimentos orais-, traz à tona um retrato revisto e mais adequado do personagem. Não se trata de uma revisão de cabo a rabo nem de que Stálin saia melhor na fotografia. Ele aí surge como um infatigável e metódico bolchevique que, nos bastidores, galgou postos no Partido Social-Democrata russo e ganhou a confiança de Lênin, muito antes da revolução de outubro de 1917.
Surge também com os traços de um homem culto, a partir do aprendizado no seminário de Tbilisi (Geórgia). Stálin admirava autores como Zola, Maupassant, Balzac, Gógol, Tchekhov, entre outros, e escrevia versos, publicados na juventude em jornais da Geórgia. Ao mesmo tempo, Montefiore detalha a carreira de Stálin como gângster revolucionário, organizador de assaltos a bancos e sequestros em nome da revolução, pela qual, combinada com a sede de poder, praticou horrores contra o povo russo, seus companheiros e familiares.
Porém, Trótski tem razão quando pinta Stálin como um provinciano avesso ao cosmopolitismo e ressentido com os intelectuais do partido. Seu comportamento em Londres, durante o 5º Congresso do Partido Social-Democrata russo (1907), narrado em minúcias por Montefiore, é um eloquente exemplo disso.
Só que esse provincianismo, de início georgiano e depois transformado em nacionalismo russo, foi muito adequado a Stálin para vestir a casaca do "socialismo num só país", depois do fracasso das revoluções ou golpes de esquerda, na Europa Ocidental, logo após a Primeira Guerra Mundial.

Admiração
Volto agora ao culto a Stálin, em um contexto atual: o da Rússia dos nossos dias. O stalinismo está aí vivo e não se restringe a velhos aposentados, saudosos de um mundo em que "tudo estava no seu devido lugar".
Muitos jovens são também admiradores de Stálin. Um estudo feito em 2007 indicou que 54% dos jovens russos acreditam que Stálin fez mais bem do que mal e 46% dos entrevistados discordam da ideia de que o ditador era cruel, como lembra matéria publicada no "Estado de S. Paulo" de 22/3.
Essa espantosa sobrevivência tem muito a ver com o caminho percorrido pela Alemanha e pela ex-União Soviética, nos anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial. Os governantes alemães empenharam-se na democratização do país e fizeram o possível para indenizar as vítimas do nazismo e lembrá-las em suas maiores cidades, especialmente no caso dos judeus.
Enquanto isso, após a morte de Stálin (1953), pela mão de Nikita Kruschev, a União Soviética tratou de restringir a desestalinização ao "culto da personalidade" do líder, sem nunca ter feito uma verdadeira revisão de um passado sombrio. Foi a partir da ocultação desse passado que a Rússia passou ao capitalismo selvagem, em cujo comando estão figuras provenientes do stalinismo, como é o caso eloquente de Vladimir Putin, antigo líder da KGB -a polícia política soviética.
Como se vê, em terreno tão mal desbastado, não é fortuito que as ervas daninhas voltem a crescer, para desespero dos democratas russos.

BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Biblioteca Básica: Memorial de Aires
Próximo Texto: +Sociedade: Debate aquecido
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.