São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

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Escritores fantasmas

A FICCIONISTA NORTE-AMERICANA CYNTHIA OZICK FALA SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE FAMA E RECONHECIMENTO NO MEIO LITERÁRIO


"Se você fizer tudo o que meu lápis vermelho sugere, aceitaremos publicar seu romance", disse o editor


Peter Sorel/Associated Press/Showtime
Cena do filme "Lolita" (1997, de Adrian Lyne), adaptação cinematográfica do romance homônimo do escritor russo Vladimir Nabokov

CYNTHIA OZICK

A invisibilidade dos escritores tem pouco ou nada a ver com a fama, assim como a fama tem pouco ou nada a ver com a literatura. Atores, celebridades e políticos, cuja sede de aclamação pública interminável, boa parte dela forjada, ultrapassa qualquer medida normal, podem alimentar-se intensamente da fama, mas esta sempre é produto da cultura atual: tópica e variável, portanto efêmera.
Os escritores são constituídos de maneira diferente. O que os escritores prezam é mais simples, mais quieto e duradouro que a ruidosa fama: é o reconhecimento. A fama, de modo geral, é uma categoria própria dos contadores, sendo contabilizada em vendas.
Já o reconhecimento, calado e inerente ao silêncio da página, é uma categoria pertencente aos leitores: sua invisibilidade é sua riqueza. E o próprio reconhecimento pode ser frágil, uma luz muito facilmente obscurecida. Recorde-se o lamento de Henry James sobre sua "New York Edition" [coletânea de sua obra elaborada e apresentada pelo próprio autor, entre 1907 e 1909], com suas revisões refletidas e seus prefácios inestimáveis: o trabalho gigantesco de toda uma vida não saudado, não lido, não vendido.
Nada é mais prejudicial ao reconhecimento constante que a morte: com que frequência um escritor -laureado, festejado- é mergulhado no esquecimento não mais que um ano ou dois após sua partida final?

Invisibilidade dos vivos
No entanto os silêncios póstumos devem ser classificados como algo à parte em relação ao mutismo forçado de escritores vivos que trabalham em línguas minoritárias, longe dos holofotes da língua franca, e cujas obras com demasiada frequência não são traduzidas. Mas o que dizer de uma invisibilidade privada intrínseca, delicada e muito mais onipresente? Vladimir Nabokov [1899-1977] chegou a ser um escritor invisível que sofreu três condições lamentáveis: a pública, a privada e a linguística.
Como emigrado fugindo da turbulência bolchevique e, mais tarde, como refugiado do nazismo, escapou das duas grandes tiranias do século 20. E, como emigrado que escrevia em russo em Berlim e Paris, permaneceu invisível a quase todos, menos a seus compatriotas exilados. Só após sua chegada aos EUA o termo marginalizador "emigrado" começou a desaparecer, sendo substituído primeiramente por "cidadão" e, ao final, por "escritor norte-americano".

Nabokov em Nova York
Foi a de outro modo audaciosa "New Yorker" dos anos 1950 que rejeitou um capítulo de "Pnin", o romance que faz a crônica do encantador e autoparódico alter ego de Nabokov. A razão foi que, segundo seu biógrafo, Brian Boyd, "Nabokov se recusou a remover referências -todas historicamente precisas- ao regime de Lênin e Stálin" (as frases em questão incluíam "torturas medievais numa prisão soviética", "ditadura bolchevique" e "injustiça incorrigível", caracterizações que os editores aparentemente viram como excessivas ou como falsidades totais).
Quanto a "Lolita", décadas após seu triunfo eletrizante e duradouro, o livro explodiu novamente, de maneira deslumbrante, no título da amplamente admirada autobiografia de Azar Nafisi ["Lendo "Lolita" em Teerã"] ligando o destino de "Lolita" aos implacáveis mulás de Teerã.
E aqui, finalmente, encontramos o xis da questão: os escritores são seres escondidos. No conto de Henry James "A Vida Privada", Clare Vawdrey, escritor que carrega o peso de um daqueles nomes peculiarmente jamesianos (que, possivelmente não por acaso, rima com "tawdry" -espalhafatoso, de mau gosto), é visível por toda parte, em todas as situações sociais concebíveis.
Vawdrey está sempre disponível para um bate-papo ou um passeio, sempre acessível, sempre agradavelmente anedótico, nunca distante ou preocupado. Possui uma afabilidade burguesa leve: "Ele conversa, ele circula", nos informa o narrador de James, "é tremendamente popular, ele flerta com você".
Seu trabalho, por outro lado, é o verdadeiro oposto de sua personalidade visível: é imbuído de grandeza não diluída. Em uma noite, enquanto Vawdrey está fazendo hora num terraço, trocando banalidades com um companheiro, o narrador entra furtivamente em seu quarto -e o descobre sentado diante de sua mesa de trabalho, no escuro, escrevendo febrilmente.

Fantasmagoria
Como é fisicamente impossível um corpo material estar em dois lugares simultaneamente, o narrador conclui que o Vawdrey social é um fantasma, enquanto o escritor que trabalha no escuro é o Vawdrey verdadeiro. "Um deles é o gênio", ele explica, "o outro é o burguês, e é apenas o burguês que conhecemos pessoalmente."
E, para não incorrermos no erro de fazer pouco-caso disto, vendo-o como apenas mais uma das histórias de fantasmas de Henry James ou como uma simples parábola cômica, faremos bem em recordar o célebre credo jamesiano: "Trabalhamos no escuro, fazemos o que podemos, damos o que temos. Nossa dúvida é nossa paixão, e nossa paixão é nossa tarefa."
A declaração termina em tom memorável: "O resto é a loucura da arte". A loucura da arte? Talvez. Mas é mais provável que seja a lógica da invisibilidade. Henry James inverteu a coisa. Os escritores são o que são genuinamente somente quando estão trabalhando na cela silenciosa e instintiva da solidão fantasmagórica -nunca quando estão ali fora, diligentemente batendo papo no terraço.

Fraude
Qual é o verdadeiro significado da "loucura da arte"? Arremedo, impostura, falsificação, faz-de-conta -mas não o verdadeiro arremedo, impostura, falsificação ou faz-de-conta do contador de histórias inventivo, que transporta seu leitor. Não: a arte, em lugar disso, enlouquece quando busca o rosto falso da distração desejosa. O escritor fraudulento é aquele que é visível, que busca a multidão, que fala para a multidão, aquele que sai para jantar com você com um objetivo em vista ou que fica parado conversando com você ou que discute hábitos mútuos de escritor com você ou que troca fofocas com você sobre outros romancistas e sua boa sorte invejável ou seu azar gratificante.
Se tudo isso é fato -e é fato-, então como poderia um jovem candidato a escritor aspirar entrar para as fileiras dos invisíveis apaixonadamente fantasmagóricos? Como conservar uma cobiçada invisibilidade clandestina e autêntica? "Imploro a você", diz [Rainer Maria] Rilke, dirigindo-se a um jovem escritor desse tipo, "imploro a você que desista de tudo isso. Você está olhando para fora, e, de todas as coisas, é essa que você não deve fazer agora.
Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Só existe um meio. Vá para dentro de você mesmo. Descubra o motivo que lhe pede que escreva; examine se suas raízes estão nas partes mais profundas de seu coração, confesse a você mesmo se morreria se escrever lhe fosse negado. Isto, antes de qualquer outra coisa: pergunte a si mesmo, na calada da noite: "Sou obrigado a escrever?". Escave fundo dentro de você mesmo para encontrar uma resposta profunda. E, se for afirmativa, se você puder responder a essa indagação solene com um forte e simples "tenho que fazê-lo", então construa sua vida de acordo com essa necessidade".
São as palavras do poeta Rilke ["Cartas a um Jovem Poeta"], pedindo aos jovens inexperientes que abram mão de qualquer recompensa mundana, incluindo o incentivo -e às vezes a ilusão romântica- da fama, para sucumbirem a uma carreira no ectoplasma.

Escritora invisível
A loucura da arte -e, mais uma vez, contradigo Henry James de bom grado- não está na arte, mas na multidão insensata e alucinante, em que toda espécie de visibilidades se acotovelam, enquanto os fantasmas se sentam sozinhos diante de suas mesas e escrevem e escrevem e escrevem -como se disso dependesse a necessária transparência de suas almas. Se você detecta nestes parágrafos um tom de autoridade confiante, é porque eu mesma sou uma invisível de longa data.
Se você já leu até aqui, é possível que já lhe tenha ocorrido a ideia de que você nunca antes viu nada desta escritora e a pergunta: "Por quê?". Apresento como evidência uma carta recebida hoje de meu prezado agente literário em Londres -um relatório de royalties, sem cheque anexado, todos os adiantamentos não ganhos, balanço zero. Tenho a sorte de ser tolerada: nenhum agente ou editor decidiu, até agora, me abandonar, como merece qualquer persistente escoadouro de lucros.
Talvez, contrariando a opinião corrente, ainda resista entre os especialistas editoriais algum traço benevolente que os leve, em raras ocasiões, a elevar-se a um grau de magnanimidade apenas ligeiramente inferior ao dos anjos. Como esse não é o destino reservado à maioria dos invisíveis, relato uma história confessional de muito tempo atrás. Como o astuto, mas infeliz Jacó, na Bíblia, eu primeiro cortejei Lia enquanto desejava Raquel. O cortejo de Lia levou sete anos, o cortejo de Raquel, outros sete. Lia foi meu primeiro romance. Ambicioso em excesso, foi abandonado depois de 300 mil palavras.
Raquel foi meu segundo primeiro romance, ainda mais contaminado pela ambição e, completo, tinha mais de 800 páginas. A paga da gula frenética: 14 anos que passaram voando. Certa tarde, no próprio dia em que terminei de digitar a última oração, eu enviei meu segundo primeiro romance ["Trust"] a um editor que exercia sua profissão num arranha-céu de Nova York.
Meu manuscrito me foi devolvido pelo correio com cem páginas marcadas a lápis vermelho -e um bilhete. O bilhete dizia: "Se você fizer tudo o que meu lápis vermelho sugere, e é claro que haverá mais nesse mesmo veio, aceitaremos publicar seu romance. Mas, se recusar o conselho indispensável de meu lápis vermelho, nós nos recusaremos a publicá-lo".
Catorze anos passados! Ao editor, escrevi: "Sete anos labutei por essas palavras, e outros sete anos ainda; portanto, digo a ti "não, nem um ponto ou uma vírgula irei alterar ou desfazer'". Ao que o bendito editor respondeu: "OK, publicaremos assim mesmo".
Ele morreu repentinamente, aos 42 anos -eu sobrevivo a ele há décadas-, e antes disso eu já o elogiara mil vezes. E mil vezes me admoestou: "Você me acha um grande editor apenas porque nunca a editei". E foi assim que uma escritora acanhada, obsequiosa, discreta se tornou ferrenhamente invisível, em casa entre os fantasmas. E assim ela permanece.

CYNTHIA OZICK (1928) é autora de "Vagalumes e Parasitas" e "O Xale" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu na "Standpoint".
Tradução de Clara Allain.



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