São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O exótico homem das cidades


A interação entre natureza e povos indígenas é um mito racista criado pelo Ocidente
BRUNO LATOUR
especial para a Folha

Para os moradores das grandes cidades, para a maioria dos cientistas, para o senso comum dos ocidentais, a natureza desde há muito constitui o quadro material de sua existência humana. A natureza era una e, sobre esse fundo universal e envolvente, destacavam-se as culturas particulares, costumes, hábitos, línguas, sistemas de parentesco, ordens simbólicas. Se a ciência -no singular- era universal, isso ocorria porque ela estudava a natureza -no singular-, esta também universal.
Mas assistimos, neste fim de século, a uma completa reviravolta desse arranjo, dessa divisão das tarefas entre a universalidade da natureza -reino da necessidade- e das culturas -reinos da diversidade e, portanto, da liberdade.
De início ocorreu, é certo, a crise ou, melhor dito, as crises ecológicas. Os ocidentais foram pouco a pouco percebendo, a cada um dos inumeráveis casos de poluição ou de catástrofes, que a natureza não formava aquela reserva inesgotável de onde se podia tomar por antecipação os recursos e descartar os dejetos. A natureza não mais formava um ambiente estranho ao mundo industrial e social. Ela se tornou pouco a pouco uma parte de nossa existência legal, política e moral. Sem temer o paradoxo, pode-se dizer que a natureza deixou de compor "o ambiente" de nossas ações. Ela passou do exterior ao interior do mundo social. Para falar como os economistas, em lugar de uma "externalidade" (aquilo que se deixa de fora do cálculo), ela se tornou parte integral do cálculo econômico.
Assim, as consequências filosóficas e antropológicas dessa reviravolta começam a se fazer sentir. Em um importante livro, dois antropólogos, Philippe Descola e Gisli Paisson, tiram a primeira conclusão (1). Os ocidentais, ao abandonarem sua antiga idéia de uma natureza exterior a seu universo social, começam a compreender esse fenômeno maciço que a antropologia tenta há muito integrar: nunca um povo não-ocidental usou a noção de natureza para compreender a repartição entre os diferentes seres que compõem o universo. Ao alterar nossa concepção da natureza, nós não mais nos afastamos dos povos pré-modernos: nós enfim nos juntamos a eles. Nós começamos a compreendê-los.
Contrariamente aos preconceitos dos moradores das grandes cidades, nem os agricultores, nem os índios da Amazônia, nem os esquimós, nem os caçadores-coletores do Kalahari vivem em "estreito contato com a natureza", menos ainda "em simbiose" com ela. A idéia dos selvagens "filhos da natureza" é um mito racista, retomado em certas formas de ecologia profunda que pretendem criticar a sociedade industrial para nos fazer viver uma vida mais "natural". O livro de Descola e Paisson mostra, por meio de um grande número de exemplos tomados em todo o mundo, que apenas uma cultura utiliza a noção de natureza -e essa cultura é a ocidental. Todas as outras ignoram completamente a noção de uma natureza que formaria o ambiente de sua existência simbólica e humana.
Essa descoberta modifica completamente nossa definição das culturas tradicionais. As duas grandes formas de classificação dos seres, o animismo e o totemismo, sempre parecerem estranhas para os etnólogos e para os colonos: não é algo bizarro tentar procurar nas descontinuidades do mundo natural os meios de compreender as diferenças do mundo social -o totemismo? Não é ainda mais estranho tentar, com o animismo, procurar nas distinções do mundo humano formas de compreender as comunidades que formam os animais, as plantas ou as estrelas? Aos olhos ocidentais, as culturas tradicionais "misturavam" os elementos da natureza e da cultura, os quais era necessário tentar distinguir. Tais comportamentos mereciam estudo, mas permaneciam exóticos. Eles deixam de parecer exóticos se é o naturalismo -como o chama Descola (pág. 88)- que introduz uma distinção entre natureza e cultura, que ninguém mantém. Naturalismo, totemismo e animismo aparecem como três formas diferentes de classificar os seres.
Dir-se-á que um exotismo ainda permanece: o dos ocidentais, os únicos a fazer uma distinção que nenhum outro povo parece compreender. É justamente aí que a crise ecológica modifica a antropologia e a política das relações entre culturas: neste fim de século, os próprios ocidentais começam a duvidar dessa característica que os mantinha à parte de todos os outros. Eles também percebem que a natureza não é o exterior da cultura. Eles também começam a compreender que essa venerável distinção já não tem qualquer pertinência. Eles novamente se tornam semelhantes à humanidade comum. Em lugar de romper com a natureza -como no período moderno da industrialização- eles rompem com "a idéia" de natureza. Uma nova fraternidade se estabelece entre os povos tradicionais e aqueles que começam a perceber que jamais foram modernos.
Disso, pode-se ir ainda mais longe: é o que faz um antropólogo brasileiro em um artigo capital do livro sobre o filósofo Gilles Deleuze, que Eric Alliez compilou a partir de um colóquio ocorrido em São Paulo, em 1996 (2). Segundo esse antropólogo, os índios da Amazônia nos oferecem uma espantosa lição de filosofia cruzada: longe de considerarem uma natureza sobre a qual cada uma das diferentes culturas teria um ponto de vista distinto e incomensurável, é preciso, para compreendê-las, considerar o contrário: que existe uma só cultura -humana- sobre a qual cada ser, cada animal, cada planta possui um ponto de vista "natural" diferente, ligado à perspectiva própria de seu corpo. Longe de pensar o multiculturalismo, os índios nos convidam a pensar o "multinaturalismo"!
Longe de viverem em contato estreito com a natureza, longe de representarem o arcaísmo do qual seria preciso nos subtrairmos, esses pensamentos indígenas, segundo Viveiros de Castro, nos convidam a entrar no século 21 com uma idéia mais refinada e profunda sobre a multiplicidade das naturezas.

Nota: 1. P. Descola e G. Paisson (org.), "Nature and Society - Anthropological Perspectives", Londres, Routledge, 1995;
2. E. Viveiros de Castro (1998), "Les Pronoms Cosmologiques et le Perspectivisme Amérindién". "Gilles Deleuze - Une Vie Philosophique", Eric Alliez (org.). "Les Empêcheurs de Penser en Rond", Paris, 1998, págs. 429-462.


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34). Tradução de Jesus de Paula Assis.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.