São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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Hipnose populista


A TV pública deve desafiar a plataforma populista da TV aberta
JORGE DA CUNHA LIMA
especial para a Folha

A plataforma populista da televisão aberta não se deve apenas à enorme ampliação do mercado de aparelhos. Deve-se à crença de que não haverá muito espaço para tantas televisões abertas junto ao mercado publicitário com o advento das televisões pagas, e quem não estiver em primeiro lugar poderá não estar nem no último no limitado pasto das verbas.
Isso consolida um processo de definição do perfil da televisão aberta no Brasil, função direta do ritmo exigido pelo mercado e pela fantasia do telespectador, aguçada pelo desejo ilimitado de consumir bens inacessíveis. O único bem consumível é o desejo proposto pela própria televisão.
O percurso foi longo, desde que os irmãos Lumière deram movimento à luz e Bill Gates, um cérebro à máquina. É a história das três telas que se sucederam e imprimiram ao século 20 um ritmo fascinante: movimento, ação, luz e fantasia. Sempre se pensou que uma telinha engoliria a outra, a televisão o cinema, e o computador a televisão. Pelo contrário, vivem um indissolúvel casamento de interesses. Cinema é arte e ideologia, televisão é informação e consumo, computador é insumo.
Não sou dos que amaldiçoam os meios, mas enquanto não há uma ética consistente para os mesmos, vamos aos fatos.
Quanto mais se vêem, menos os homens se comunicam. Quanto mais notícias, menos informações. Quanto mais recursos, menos conteúdo Quanto mais desejos, menos conhecimento. É a sintaxe existencial das nossas baixas na grande luta da comunicação.
Os telejornais que constituem hoje o mais difundido meio de informação do mundo estão cada dia mais iguais. A pauta surge misteriosamente na manhã dos editores. Em geral não são as que mais interessam ao público. Servem, pelo contrário, aos interesses econômicos, políticos, ideológicos e mesmo religiosos. Mas se a pauta é a mesma, o conteúdo é análogo, exacerbando-se o negativo, o dramático e o consumível em função dos índices de audiência de cada emissora. Do telejornal, o público retém parca memória, em boa hipótese 20% das notícias. Então repetem-se compulsivamente as notícias que interessam ao meio, tranformando-se o fato repetido em idolatria e verdade absoluta.
É claro que o solitário telespectador é muito mais informado hoje do que antes da existência da televisão. Mas a televisão insiste em informar o que deseja informar, e não o que é preciso conferir. A dramatização do cotidiano do miserável é de tal despudor que deixaria Victor Hugo vexado de já o ter enfocado com grandeza.
Contudo, no vazio de outras inspirações, já que a escola pública debilitou-se como fator preponderante na formação dos jovens que a frequentam e a família substituiu a conversa e a mesa pelo altar da televisão, ela tornou-se, de cima para baixo, o mais importante emissor dos desejos e do gosto contemporâneo. E quem fala em desejo vai muito além do consumo, prenuncia rituais antropofágicos. Cria um tipo de gosto e de fome que inibe o antigo paladar das individualidades. De início, consumos conspícuos, de retro, objetos duráveis, por baixo, os perecíveis. Sexo, lazer, carros e heróis. Decibéis em vez de sons. Desejos muito acima de nossa capacidade de realizá-los. E a televisão é a grande praia desse desejo insaciável. Nesse jogo induzido o consumidor arrisca sempre, qualquer que seja a taxa de juros.
Depois do advento das TVs pagas com propostas segmentadas, a arena engordou o apetite dos leões e a luta ficou feroz. O tormento da audiência universal: ter todo o público, todo tempo, em toda a extensão da grade, não é tarefa de leão, mas de Faustão. As televisões abertas disputam a hegemonia da audiência, o avanço tecnológico e os negócios paralelos, pois não estão dispostas a perder um dos melhores negócios desta segunda metade do século 20. A presença das televisões pagas ainda é pequena no Brasil, mas a tendência é de enorme ampliação. O vetor das verbas publicitárias aponta nessa direção. Embora segmentadas, elas também deverão submeter-se ao ritmo das televisões comerciais.
Isso impõe ao negócio a popularização radical das programações diante da globalização dos desejos no encalço dos bens de consumo a qualquer custo, diante da onipotência desse instrumento que fala de cima para baixo e para todos, dessa sintaxe que inibe o raciocínio, desse gosto imposto que substitui as ideologias, desse caso de amor que se oferece em lugar da família e da escola.
Felizmente, há dois desafios consistentes: a qualidade e a individualidade, a televisão pública e a Internet. Explico-me.
A qualidade é uma obrigação da televisão pública, à revelia do Ibope e do mercado. Persegui-la é uma imposição de sua própria natureza. E esse é o desafio da televisão pública brasileira, também chamada educativa e cultural, de que a TV Cultura de São Paulo é a maior expressão. Como prestadora de serviço público, a Cultura há de ter o ritmo da reflexão e não o ritmo do mercado. Voltar-se para os interesses do cidadão e não do consumidor. Propor o conhecimento em lugar da hipnose. Desenvolver o gosto dos valores e não a submissão à moda. Formar todos os homens e o homem todo, pois deve instruir adultos e crianças nos conhecimentos da vida e da sociedade por meio da educação, da cultura e da informação. Uma televisão educativa sem didatismos e que educa através do entretenimento, da ética e da estética dos valores. Por isso mesmo, a programação cultural visa divulgar os valores criativos da sociedade e não apenas os valores artísticos consagrados no mercado comercial da arte. A Cultura fez uma opção especial pela criança, pois a dinâmica dos desejos é matéria do primeiro grau.
Que jornalismo seria adequado a uma televisão educativa de caráter público como a nossa?
Em primeiro lugar, nos libertarmos da pauta compulsória. E, como não temos nenhum compromisso com a pressa, com o furo ou com o sensacionalismo, fazer um jornalismo analítico em vez do jornalismo crítico, temático em vez de fatual. No mais, prosseguir na difícil prática de um jornalismo independente, responsável e pluralista. Adotar, sem medo nem inibições, as novas tecnologias de abordagem, com equipamentos leves, individuais, que funcionem como um lápis eletrônico nas mãos e no cérebro de um repórter. Um grande aparato assusta os fatos, um repórter hábil desvenda a sua essência.
Ninguém sabe onde está a Indonésia e muito menos a Bolsa de Valores da Indonésia. A TV pública deve ensinar o que é, onde está e por que aquela Bolsa de Valores tão distante sacrificou a poupança de tantas viúvas em toda a parte.
Um desafio emblemático seria mudar a mão do domingo. E, no espaço da popularização mais radical, inventar o "Domingo Melhor", segmento dos segmentos, para um público já desesperado dos cordeirinhos de Buñuel.
Estimulado pelo pensamento de Lippman, concluo que o caminho da individualidade está aberto com a Internet. Se é verdade que no ano 2005 teremos mais 500 opções de canais disponíveis, todos eles controlados por uma dezena de empresas e empresários, a Internet permite uma emissão pessoal individual a partir de cada homem, com uma perspectiva a curto prazo de milhões de emissores. Cada emissor sem qualquer compromisso que não seja a sua própria individualidade e a sua própria criatividade.
O antídoto da popularização proposta pelos grandes centros emissores não será apenas a qualidade proposta pelas televisões de caráter público, mas a individualidade possibilitada por esse átomo ideológico que é o site.


Jorge da Cunha Lima é jornalista e escritor, presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura.



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