São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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MEMÓRIA
A psicanálise de feições humanas


Em 15 de março morreu Maud Mannoni, que inovou no tratamento da depressão
ELISABETH ROUDINESCO
especial para a Folha

Grande figura da psicanálise francesa, conhecida por sua coragem e por sua intervenção constante em favor dos marginalizados, loucos e excluídos, Maud Mannoni morreu no último dia 15 de março, em seu domicílio parisiense, em resultado de um ataque cardíaco. Desde a morte de Octave Mannoni, em 1989, ela vivia sozinha, e só na manhã do dia seguinte seus parentes a encontraram inanimada. Padecendo de uma grave hipertensão, ela consumia vários medicamentos e muitas vezes já pensara em pôr fim a seus dias, como Bruno Bettelheim, para evitar a velhice e a decadência. E, agora, a morte apanhou-a. Marcada a uma só vez pela escola inglesa, de Melanie Klein a Donalds Woods Winnicott, e pelo ensinamento de Jacques Lacan e de Françoise Dolto, ela foi também uma militante de esquerda, anticolonialista. Suas obras foram traduzidas em todo o mundo.
Nascida em Courtrai, na Bélgica, a 22 de outubro de 1923, Magdalena van der Spoel pertencia à terceira geração psicanalítica francesa. Ela passou a sua infância em Colombo, onde o seu pai exercia funções de cônsul-geral dos Países-Baixos, e foi educada por Aya, uma ama-de-leite cingalesa, de quem foi brutalmente separada aos seis anos de idade, quando os pais deixaram o Ceilão para retornar à Europa.
Mais tarde, ela se recordaria da mansão familiar como de um paraíso terrestre. A ruptura com Aya, porém, foi para ela um autêntico traumatismo, "que senti como um abandono tanto mais terrível por não ter sido acompanhado de nenhuma palavra". "Na angústia que se abateu sobre mim", ela escreveria em 1988, "não era mais capaz de reconhecer quem eu era, para onde iria. Eu não sabia o que se passava a meu redor".
Em Courtrai, junto de seu avô materno, ela recuperou em três meses a segurança perdida. Foi nessa época que aprendeu o francês, mas perdeu a fluência em sua língua materna, o inglês, e esqueceu as palavras hindi transmitidas por sua cara ama-de-leite. Não tardou que o abandono se repetisse, quando seus pais a levaram para Amsterdã, para uma nova fase em sua vida.
Sem saber mais comunicar-se em francês com um pai que só queria falar em inglês, ela se viu obrigada a aprender o holandês. "Em Amsterdã, a solidão foi total. Dos seis aos onze anos, faltou-me com quem conversar. Totalmente hostil a meu pai, encontrei-me dilacerada entre o mundo adulto, no qual as recepções perderam sua aura de festa, e o das crianças, que me fizeram pagar caro por não fazer parte de seu meio pequeno-burguês. Depois, a linguagem acadêmica a que me acostumara, o holandês, acabou por matar as palavras vivas . Desaprendi a falar. As palavras não tinham mais sentido."
Em Anvers, ela cursou o primário em uma escola religiosa das Senhoras do Sião, onde se "apaixonou à primeira vista" pela irmã Roberte. Sentindo-se marginalizada no seu meio e incapaz de adquirir as virtudes burguesas que lhe exigiam, ela decidiu inscrever-se na Universidade Livre de Bruxelas, onde obteve o diploma de criminologia. Nessa época, o contato que ela manteve, no serviço de psiquiatria, com os adolescentes psicóticos teve por efeito transformar radicalmente a sua vida. Foi com Maurice Dugautiez, fundador da Associação de Psicanalistas da Bélgica (futura Sociedade Belga de Psicanalistas, SBP), que ela fez sua análise didática. Ela se tornou membro da SBP em 1948, um ano antes de esta filiar-se à International Psychoanalitical Association (IPA).
A vida numa sociedade multicultural, o contato com um universo colonial e a experiência subjetiva dolorosa no seio de uma família na qual predominava a ausência de um amor verdadeiro levaram-na a se interessar por todas as situações de violência e ruptura: como reatar com a língua perdida da infância? Como superar os traumatismos inerentes a todas as formas de separação, a fim de libertar-se por meio da criação ou da integração? Estas eram as questões que ela se punha ao chegar a Paris, depois de viver algum tempo em Nova York.
O reencontro com Françoise Dolto foi decisivo, não só para sua formação de psicanalista de crianças, mas também por esta lhe ter apresentado Octave Mannoni, em quem ela reconheceu uma figura paternal, que lhe trouxe a lembrança do avô. O casamento se deu a 23 de dezembro de 1948. Nascido em 1899, ele conhecera, igualmente, em Madagascar, a situação colonial antes de começar a análise com Lacan. Ao lado desse intelectual de esquerda engajado, ela frequentou a equipe do "Temps Modernes", integrou-se à Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), na qual ela fez sua análise de controle com Jacques Lacan.
Em 1960, ela assinou o Manifesto dos 121 sobre o direito à insubmissão durante a guerra da Argélia. Falando novamente inglês, ela habituou-se a viagens periódicas a Londres, para aí ser formada pelo grande D. Winnicott, cujo renome era imenso. Cabeça do grupo dos Independentes, ele combatera o dogmatismo dos kleinianos e dos partidários de Anna Freud. Em um controle de caso, ele lhe transmitiu toda a complexidade de sua experiência da cura fundada numa concepção fenomenológica do ego (o "self"), enquanto ela procurava iniciá-lo nos conceitos lacanianos. Ele a fez entender como analisar as dificuldades do analista na contratransferência, como progredir rumo à cura e à busca da verdade por meio da dúvida, do erro. Em suma, lhe ele ensinou uma outra escuta clínica, diversa daquela praticada na França dessa época. Uma escuta em que a exploração das relações de objetos e de projeções fantasmáticas haviam adquirido um espaço considerável na compreensão do imaginário do paciente.
Ela manteve excelentes relações com Winnicott, e foi graças a ele que lhe foi possível ter acesso a Ronald Laing, o "enfant terrible" da British Psychoanalitical Society, que já nessa época contestava o saber psiquiátrico dominante. Ela visitou-o no Hospital Kinsley Hall, onde estavam recolhidos os esquizofrênicos. Por seu intermédio, ela reconheceu que a loucura é uma passagem, um estágio, uma viagem, e não uma doença mental, e que era preciso inventar uma nova maneira de abordá-la, fora dos muros do manicômio e das classificações da psiquiatria.
Contudo, muito ligada ao freudismo e às posições de Lacan, ela nunca adotará as teses da antipsiquiatria, mas preservará a idéia não de eliminar os manicômios ou negar a noção de doença mental, e sim de criar outros espaços para escutá-la -espaços que se furtariam ao encarceramento funesto. Ela sonhava com uma instituição "difusa", e este sonho, de fato, se realizaria alguns anos mais tarde.
Em 1964, sem deixar a IPA, de que ela continuará membro até a sua morte, ela contribuiu com Lacan na fundação da Escola Freudiana de Paris (EFP). Ela foi a primeira autora a inaugurar, nas edições Seuil, a coleção "Campo Freudiano", com um livro de grande repercussão: "L'Enfant Arriéré et Sa Mère" (A Criança Atrasada e Sua Mãe). Neste livro, ela fala da clínica psicanalítica inglesa, da qual é especialista, e sobretudo inaugura um novo estilo de intervenção freudiana, em que se mesclam a revolta e o rigor teóricos. As autoridades das instituições freudianas jamais lhe perdoarão a verve apaixonada.
Depois, mais oito obras foram publicadas pela Seuil e mais uma dezena pela Denoël, na qual ela criou em 1983, com Patrick Guyomard, a coleção "Espaço Analítico" (cerca de 50 títulos em 15 anos).
Em 1967, ela organizou em Paris um colóquio sobre psicoses, reunindo todos os grandes nomes ligados à história do freudismo lacaniano. Dele participaram os representantes ingleses da antipsiquiatria, Ronald Laing e David Cooper. O encontro pareceu um prelúdio à contestação dos estudantes e, no seu discurso de encerramento, Lacan anunciou que a sociedade ocidental entrava na era de uma segregação cada vez mais subliminar. Dois anos mais tarde, Maud Mannoni criou a escola experimental de Bonneuil-sur-Marne, um local de refúgio para crianças e adolescentes em depressão. Em boa parte, a experiência inspirava-se na antipsiquiatria anglo-saxã e numa tradição vinda a um só tempo de Makarenko e Célestin Freinet e adotava por referência principal a clínica psicanalítica.
Para os jovens psiquiatras da quarta geração e para todos os estrangeiros que estagiavam em Bonneuil, a experiência era emblemática de um lacanismo de feições humanas, amparado na contestação da ordem vigente e aberto à vida social e à pluralidade teórica, como o demonstrará "Vivre à Bonneuil", filme rodado por Guy Seligman no final da década de 70. "O princípio de Bonneuil", ressalta Claude Halmos, "era difundir a instituição ao criar uma circulação constante entre o interior e o exterior, ao inventar atividades realmente inspiradas na vida. Por exemplo, um verdadeiro pintor ou um verdadeiro diretor era convidado para ensinar as crianças a desenhar ou a fazer teatro. Na época, tratava-se de uma idéia nova".
Depois da morte de Lacan, ela criou com Octave Mannoni e Patrick Guyomard o Centro de Formação e de Pesquisas Psicanalíticas (CFRP), que, em 1994, como resultado de confrontos internos, seria cindido em dois grupos: Espaço Analítico e a Sociedade Psicanalítica Freudiana.
Maud Mannoni compareceu à Unesco, com a sua força e a sua vitalidade, por ocasião do colóquio de 8 de fevereiro de 1998, consagrado à obra de Octave Mannoni. Ela não suportara vê-lo perder progressivamente suas faculdades intelectuais e, num belo livro dedicado à morte e à velhice, ela confessou a sua admiração pela modo como Freud escolhera para abreviar seus sofrimentos: "Ele morreu como um patriarca", escreveu ela, "recusando toda manifestação de sentimentalismo e de piedade".


Elisabeth Roudinesco é historiadora francesa, autora, entre outros, de "Jacques Lacan - Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento" (Companhia das Letras) e "Théroigne de Méricourt" (Rocco).
Tradução de José Marcos Macedo.



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