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LABORATÓRIOS MISTERIOSOS
Montagem de Adolfo Celi para "Entre Quatro Paredes", em 1950, foi decisiva para a profissionalização do teatro em SP
"Chiquita Bacana lá da Martinica
se veste com uma casca de banana
nanica
Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração."
(Alberto Ribeiro e João de Barro)
"Como é vazio um espelho em que eu
não estou!"
(Estelle, personagem de Sartre em
"Entre Quatro Paredes")
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Bons tempos mesmo foram os
de Chiquita Bacana. Surgida
no Carnaval de 1949, armada
contra o inverno com uma
paradisíaca casca de banana, que
bastava para lhe proteger o pudor,
Chiquita se tornou a embaixadora
dos novos tempos ao fazer valer a lei
do seu desejo: era existencialista.
Chiquita surgia como uma irmã de
Josephine Baker, exilada entre os intelectuais da "rive gauche", vinda de
uma Martinica que povoava a imaginação dos franceses desde a
"Chanson Nègre", de Henri Christiné, de 1912: "À la Mâtiniqu", Mâtiniqu", Mâtiniqu'/ C'i ça qu'est chic
(bis)/ Les p'tites femmes se mettent
simplement/ Un "feuill" de bananier
par devant" [Na Martinica é que é
chique, as garotas usam apenas uma
folha de bananeira na frente].
Espelho refletindo um espelho,
Chiquita foi um símbolo da ânsia de
fugir ao provincianismo para se enturmar com o primeiro mundo, tendo como passaporte a caricatura colonialista. Do lado de lá, enquanto isso, Jean-Paul Sartre apostava em
suas peças para a disseminação de
suas idéias pelo mundo.
O que sabia ele sobre o Brasil, dez
anos antes de sua visita? Não mais
do que Christiné sobre a Martinica.
Nesse mesmo ano de 1949, Guilherme de Almeida, traduzindo "Huis
Clos" ["Entre Quatro Paredes"] para
o Teatro Brasileiro de Comédia, em
notas de rodapé, se divertia em
apontar que, nessa peça, Garcin, jornalista carioca, via nevar de sua janela e fugia de trem para a fronteira
com o México pouco antes de ser fuzilado por pacifismo.
Sartre no TBC: a insolência já não
parece tão clara, mas é preciso lembrar que menos de um ano antes,
para a inauguração do teatro, Nydia
Lícia recusava um papel na "Mulher
do Próximo", de Abílio Pereira, para
não ter que beijar nem dizer "amante" em cena, o que lhe valeria ser despedida das lojas Clipper.
Uísque falsificado
Cacilda Becker, que a substituiu,
exigiu ser contratada como profissional, acabando com o velho preconceito de que artista sério deveria
ser diletante. E agora, para a profissionalização definitiva do teatro de
arte paulista, sob o comando de
Adolfo Celi, Cacilda seduziria Nydia
em "Entre Quatro Paredes".
Lembra Nydia em suas memórias
("Ninguém Se Livra de Seus Fantasmas", ed. Perspectiva): "Dentro de
mim, travava-se uma luta entre os
preconceitos burgueses e uma nova
mentalidade em formação, sem a
qual não sobreviveria no mundo do
teatro profissional".
E quem deu a idéia de tamanho
desafio para o jovem diretor italiano? Talvez a própria Nydia.
Celi, logo ao chegar, mostrou muito interesse em conhecer o Carnaval
-justamente o Carnaval de Chiquita. Os jovens atores alugaram o salão
de festas do Golf Club Anastácio, de
Pirituba, e convocou-se a imprensa
para prestigiar o evento. Infelizmente, devido a um uísque falsificado,
no dia seguinte o "Diário da Noite"
ostentava fotos da "jeunesse dorée"
vomitando e largada no chão.
Sob o título "Pagodeira Existencialista", eram tratados de "discípulos
de Sartre", e o escândalo foi tal que
em breve chegaria à secretaria do
TBC uma intimação para que o tal
Sartre fosse depor na delegacia.
Quanto a Celi, ao acordar na manhã
seguinte na calçada da Major Diogo,
vestido de pirata, já sabia o que iria
chocar os burgueses.
No ensaio geral para a censura, em
janeiro de 1950, Cacilda e o mais novo galã do TBC, Sérgio Cardoso, que
fazia Garcin, acharam melhor declarar solenemente ao Gabinete de Investigações que eram católicos praticantes e estavam agindo com o acordo de seus confessores. Aplaudidos
ao final, primeiro pelos censores, depois por público e crítica, e talvez
embalados pelos misteriosos "laboratórios" que reuniam dois casais fechados entre quatro paredes, em
breve Sérgio e Nydia comemorariam solenemente seu noivado no
Nick Bar, o mítico bar anexo que, segundo a própria musa sartriana Juliette Greco, era mais existencialista
que o "Tabou", de Paris.
Corte brusco. Dez anos depois,
Sartre faz sua aparição em Araraquara (SP). Segundo recorda Antonio Candido, vinha em busca de um
contato com uma colônia anarquista da região, garantido por Fausto
Castilho. Talvez imaginasse poder
testemunhar outro "furacão", como
o que vira em Cuba, mas naquele dia
não havia nada além do que uns
poucos lavradores reunidos sob
uma faixa, no Teatro Municipal.
Fez então sua mítica conferência,
tão densa que em pouco tempo um
atordoado intérprete oficial teve que
convocar na platéia o próprio Candido para ajudá-lo, além de Fernando Henrique Cardoso. Candido logo
desistiu, Fernando Henrique se enturmou tão bem que depois preveniria o seu professor que não adiantaria se aproximar muito, já que "Sartre só queria falar com os mais jovens". E foram todos comemorar no
bar do Pernambuco, que já estava lotado, já que na mesma noite o Ferroviária de Araraquara jogava com o
Santos de Pelé. Olívio Alves Bezerra,
orgulhoso proprietário, conserva até
hoje, como lembrança desse dia duplamente histórico, uma nota de peso chileno, com a qual Sartre quis
pagar a conta.
"As Moscas" de José Celso
Nada confirma, portanto, o esnobismo de Sartre, que teria dito que os
brasileiros "deveriam resolver primeiro os seus problemas políticos
para depois discutir filosofia com
ele". O próprio Fernando Henrique
Cardoso, que não tinha na ocasião
nenhum "Raízes do Brasil" para oferecer, conseguiu impressionar bem
o mestre com uma célebre sopa de
mandioquinha de dona Ruth.
Mas quem impressionou mesmo
Sartre foi José Celso Martinez Corrêa, que, aos 23 anos, acabara de dirigir sua peça "As Moscas" no Oficina,
provando assim ao pessoal do Arena
que era bem mais que um burguês
em crise. Ganhando a estima de Augusto Boal, adaptou juntamente
com ele um roteiro cinematográfico
de Sartre, "A Engrenagem", para um
quase "happening" junto de operários em greve.
Há pouquíssima apreciação crítica
sobre essa montagem, mas o próprio Sartre, presente na apresentação, guardou dela uma lembrança
forte o bastante para que, em 1974,
quando José Celso "desapareceu"
por uns dias, organizasse um abaixo-assinado internacional que ajudou muito a livrá-lo do pau-de-arara. Sartre, enfim, depunha na delegacia e encontrava o seu Garcin, muito
além da caricatura e da mistificação
mútua.
Desde então, o Brasil, espelho da
França, ainda não provou que é um
país sério, para citar outro visitante
francês ilustre. Mas, mantendo o
bom humor em meio ao inverno,
como Chiquita Bacana, seguimos
existencialistas, com toda razão.
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