São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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LABORATÓRIOS MISTERIOSOS

Montagem de Adolfo Celi para "Entre Quatro Paredes", em 1950, foi decisiva para a profissionalização do teatro em SP

"Chiquita Bacana lá da Martinica se veste com uma casca de banana nanica Não usa vestido, não usa calção Inverno pra ela é pleno verão Existencialista com toda razão Só faz o que manda o seu coração."
(Alberto Ribeiro e João de Barro)

"Como é vazio um espelho em que eu não estou!" (Estelle, personagem de Sartre em
"Entre Quatro Paredes")

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Bons tempos mesmo foram os de Chiquita Bacana. Surgida no Carnaval de 1949, armada contra o inverno com uma paradisíaca casca de banana, que bastava para lhe proteger o pudor, Chiquita se tornou a embaixadora dos novos tempos ao fazer valer a lei do seu desejo: era existencialista. Chiquita surgia como uma irmã de Josephine Baker, exilada entre os intelectuais da "rive gauche", vinda de uma Martinica que povoava a imaginação dos franceses desde a "Chanson Nègre", de Henri Christiné, de 1912: "À la Mâtiniqu", Mâtiniqu", Mâtiniqu'/ C'i ça qu'est chic (bis)/ Les p'tites femmes se mettent simplement/ Un "feuill" de bananier par devant" [Na Martinica é que é chique, as garotas usam apenas uma folha de bananeira na frente].
Espelho refletindo um espelho, Chiquita foi um símbolo da ânsia de fugir ao provincianismo para se enturmar com o primeiro mundo, tendo como passaporte a caricatura colonialista. Do lado de lá, enquanto isso, Jean-Paul Sartre apostava em suas peças para a disseminação de suas idéias pelo mundo.
O que sabia ele sobre o Brasil, dez anos antes de sua visita? Não mais do que Christiné sobre a Martinica. Nesse mesmo ano de 1949, Guilherme de Almeida, traduzindo "Huis Clos" ["Entre Quatro Paredes"] para o Teatro Brasileiro de Comédia, em notas de rodapé, se divertia em apontar que, nessa peça, Garcin, jornalista carioca, via nevar de sua janela e fugia de trem para a fronteira com o México pouco antes de ser fuzilado por pacifismo.
Sartre no TBC: a insolência já não parece tão clara, mas é preciso lembrar que menos de um ano antes, para a inauguração do teatro, Nydia Lícia recusava um papel na "Mulher do Próximo", de Abílio Pereira, para não ter que beijar nem dizer "amante" em cena, o que lhe valeria ser despedida das lojas Clipper.

Uísque falsificado
Cacilda Becker, que a substituiu, exigiu ser contratada como profissional, acabando com o velho preconceito de que artista sério deveria ser diletante. E agora, para a profissionalização definitiva do teatro de arte paulista, sob o comando de Adolfo Celi, Cacilda seduziria Nydia em "Entre Quatro Paredes".
Lembra Nydia em suas memórias ("Ninguém Se Livra de Seus Fantasmas", ed. Perspectiva): "Dentro de mim, travava-se uma luta entre os preconceitos burgueses e uma nova mentalidade em formação, sem a qual não sobreviveria no mundo do teatro profissional".
E quem deu a idéia de tamanho desafio para o jovem diretor italiano? Talvez a própria Nydia.
Celi, logo ao chegar, mostrou muito interesse em conhecer o Carnaval -justamente o Carnaval de Chiquita. Os jovens atores alugaram o salão de festas do Golf Club Anastácio, de Pirituba, e convocou-se a imprensa para prestigiar o evento. Infelizmente, devido a um uísque falsificado, no dia seguinte o "Diário da Noite" ostentava fotos da "jeunesse dorée" vomitando e largada no chão.
Sob o título "Pagodeira Existencialista", eram tratados de "discípulos de Sartre", e o escândalo foi tal que em breve chegaria à secretaria do TBC uma intimação para que o tal Sartre fosse depor na delegacia. Quanto a Celi, ao acordar na manhã seguinte na calçada da Major Diogo, vestido de pirata, já sabia o que iria chocar os burgueses.
No ensaio geral para a censura, em janeiro de 1950, Cacilda e o mais novo galã do TBC, Sérgio Cardoso, que fazia Garcin, acharam melhor declarar solenemente ao Gabinete de Investigações que eram católicos praticantes e estavam agindo com o acordo de seus confessores. Aplaudidos ao final, primeiro pelos censores, depois por público e crítica, e talvez embalados pelos misteriosos "laboratórios" que reuniam dois casais fechados entre quatro paredes, em breve Sérgio e Nydia comemorariam solenemente seu noivado no Nick Bar, o mítico bar anexo que, segundo a própria musa sartriana Juliette Greco, era mais existencialista que o "Tabou", de Paris.
Corte brusco. Dez anos depois, Sartre faz sua aparição em Araraquara (SP). Segundo recorda Antonio Candido, vinha em busca de um contato com uma colônia anarquista da região, garantido por Fausto Castilho. Talvez imaginasse poder testemunhar outro "furacão", como o que vira em Cuba, mas naquele dia não havia nada além do que uns poucos lavradores reunidos sob uma faixa, no Teatro Municipal.
Fez então sua mítica conferência, tão densa que em pouco tempo um atordoado intérprete oficial teve que convocar na platéia o próprio Candido para ajudá-lo, além de Fernando Henrique Cardoso. Candido logo desistiu, Fernando Henrique se enturmou tão bem que depois preveniria o seu professor que não adiantaria se aproximar muito, já que "Sartre só queria falar com os mais jovens". E foram todos comemorar no bar do Pernambuco, que já estava lotado, já que na mesma noite o Ferroviária de Araraquara jogava com o Santos de Pelé. Olívio Alves Bezerra, orgulhoso proprietário, conserva até hoje, como lembrança desse dia duplamente histórico, uma nota de peso chileno, com a qual Sartre quis pagar a conta.

"As Moscas" de José Celso
Nada confirma, portanto, o esnobismo de Sartre, que teria dito que os brasileiros "deveriam resolver primeiro os seus problemas políticos para depois discutir filosofia com ele". O próprio Fernando Henrique Cardoso, que não tinha na ocasião nenhum "Raízes do Brasil" para oferecer, conseguiu impressionar bem o mestre com uma célebre sopa de mandioquinha de dona Ruth.
Mas quem impressionou mesmo Sartre foi José Celso Martinez Corrêa, que, aos 23 anos, acabara de dirigir sua peça "As Moscas" no Oficina, provando assim ao pessoal do Arena que era bem mais que um burguês em crise. Ganhando a estima de Augusto Boal, adaptou juntamente com ele um roteiro cinematográfico de Sartre, "A Engrenagem", para um quase "happening" junto de operários em greve.
Há pouquíssima apreciação crítica sobre essa montagem, mas o próprio Sartre, presente na apresentação, guardou dela uma lembrança forte o bastante para que, em 1974, quando José Celso "desapareceu" por uns dias, organizasse um abaixo-assinado internacional que ajudou muito a livrá-lo do pau-de-arara. Sartre, enfim, depunha na delegacia e encontrava o seu Garcin, muito além da caricatura e da mistificação mútua.
Desde então, o Brasil, espelho da França, ainda não provou que é um país sério, para citar outro visitante francês ilustre. Mas, mantendo o bom humor em meio ao inverno, como Chiquita Bacana, seguimos existencialistas, com toda razão.


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