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HOMENS-TEATRO, SE QUISEREM
Ator deve praticar uma "ginástica intelectual" para
recuperar os sentidos histórico e social de uma peça
por Jean-Paul Sartre
Talvez se surpreendam que tenhamos pensado em fundar
uma escola, quando já existem tantas. Mas nos pareceu
que o ensino dramático, tal como é
concebido hoje, não responde mais
inteiramente a seu objetivo. O valor
individual dos professores -eles
próprios excelentes atores- não está em causa. O que parece ter-se perdido de vista é a natureza própria do
ator e suas funções.
Uma escola dramática -todos
concordarão- deve ser uma escola
de interpretação. Naturalmente, e
antes de tudo, são cursos de interpretação que estamos preocupados
em criar. Mas não os consideramos
como o único ensinamento a dar aos
atores. Eles nos parecem ser antes o
coroamento de toda uma vida de
disciplina. É que a interpretação teatral é de uma espécie muito particular: o ator é ao mesmo tempo o intérprete e o instrumento. Um violinista
deve servir-se de um instrumento
cujos recursos estão exatamente determinados. Ele conhece esses recursos, e o autor cujas obras executa os
conhecia também. O instrumento
do ator é ele mesmo: seu próprio
corpo, sua fisionomia, sua voz, seus
movimentos.
Ora, ninguém até aqui se preocupou em estabelecer um registro dos
recursos dramáticos do corpo humano. Eles permanecem indefinidos, e com freqüência o jovem ator
os ignora em sua maior parte. Mais
ainda: os próprios autores permanecem aquém do que poderiam exigir
de seus intérpretes, como um compositor que escrevesse uma melodia
para duas cordas de violino. Alguns
mesmo -e dos mais célebres-
crêem que o teatro é uma arte puramente vocal e não vêem que o ator
-o ator como uma totalidade psicofisiológica- é a substância mesma da peça, a matéria de que ela é
feita; eles não compreendem que
uma arte dramática que exigisse
mais dos atores seria profundamente renovada por esse fato mesmo.
Nossa escola gostaria de tentar restituir a essa matéria humana toda a
sua plasticidade, isto é, colocar o
ator de posse de todos os seus recursos espirituais e corporais.
Essa tarefa nos parece particularmente urgente hoje. Com efeito, basta um exame superficial para ver que
uma certa vivacidade clownesca e
quase louca se perdeu. O ator -o
das pantomimas, da "commedia dell'arte"- era no passado um saltimbanco, um malabarista. Talvez a interpretação propriamente dita sofresse com isso, mas o desempenho
dos intérpretes ganhava uma graça,
uma leveza cujo segredo não mais
conhecemos. Vejam os bufões de
Shakespeare: deveriam ser alados e
os calçamos com solas de chumbo.
Um curso de arte dramática deveria restituir ao corpo sua flexibilidade por um treinamento apropriado.
Uma ginástica cotidiana, a prática de
certos esportes, a mímica, os diversos meios que visam a dar ao homem o domínio de seu corpo, devem concorrer a esse objetivo. É inconcebível, por exemplo, que um
ator aprendiz creia desde o início
"saber respirar". Ele respira, é verdade, como Monsieur Jourdain escrevia prosa. Mas Monsieur Jourdain
não podia se tornar um grande prosador, pois ignorava a arte da prosa.
Assim também o jovem aprendiz
ignora tudo da "arte respiratória".
Não sabe que esse é o alfabeto do
ator, que uma boa respiração é como o pilar que sustentará sua voz,
seus gestos e mesmo sua postura. É o
que tentaremos ensinar-lhe.
Além disso é preciso reconhecer
que se torna cada vez mais difícil ser
ator. De fato, é costume dizer que se
deve abandonar a pretensão de ser
um cientista universal, porque a
quantidade absoluta dos conhecimentos científicos a adquirir aumenta a cada dia. Mas já se refletiu
que no teatro deparamos com dificuldades quase tão grandes porque a
quantidade absoluta dos papéis a
aprender aumentou nas mesmas
proporções?
Antigamente, algumas farsas, uma
ou duas grandes peças constituíam
uma bagagem suficiente. Hoje, porém, o ator se vê diante de uma produção dramática distribuída por vários séculos e ele deve adaptar-se, de
um dia para o outro, a exigências
profundamente diferentes. Desempenhará ele um ciumento de Molière no mesmo estilo que "Os Espectros", de Ibsen? "O Anúncio Feito a
Maria", de Claudel, como "A Galeria
do Palácio", de Corneille?
Na maior parte do tempo, o ator
elude a questão: permanece ele mesmo na imensa diversidade dos papéis que desempenha, nunca representa senão ele. É que lhe falta cultura. Certamente ele pôde ler todas as
peças do repertório. Mas acaso suspeita de que as peças emanavam de
um certo meio, que respondiam a
certas questões colocadas pela época, que correspondiam a uma certa
concepção do teatro, que foram representadas, escutadas e compreendidas numa atmosfera social bem
definida?
Sentido histórico da obra
É somente quando o ator tiver
compreendido o sentido histórico
de uma obra teatral, é somente então
que ele poderá realmente representar "um Marivaux" ou "um Shakespeare". Convém, portanto, flexibilizar seu espírito -assim como queremos tentar flexibilizar seu corpo- por uma ginástica intelectual.
Essa ginástica é a cultura -uma
cultura ao mesmo tempo geral e estritamente apropriada às necessidades do teatro-, não há atores sem
cultura; somente a cultura pode lhes
permitir sair de si mesmos, somente
ela lhes dará a compreensão do texto
e colocará à sua disposição os registros dramáticos os mais variados.
Assim nossa escola reservará a
maior parte do tempo ao ensino cultural. Parece, enfim, que o teatro deve, nos anos vindouros, estreitar
seus vínculos com a comunidade.
No último século o público vinha
simplesmente divertir-se no teatro, e
as representações reuniam espectadores de origens muito diversas, que
não tinham nem as mesmas paixões
nem os mesmos interesses.
Com isso, os atores eram levados a
dividir sua vida em duas partes bem
distintas: no palco, algumas horas
por dia, exerciam uma profissão; na
cidade, o resto do tempo, eram homens como os outros; de sua arte,
conservavam apenas, na maioria das
vezes, uma deformação profissional
bastante irritante. Se o teatro quiser
retomar a função social que teve nas
grandes épocas da arte dramática,
ele terá que exigir dos espectadores,
do autor e dos atores mais compreensão recíproca e mais disciplina. De nossa parte, gostaríamos de
contribuir a essa metamorfose formando, mais do que atores, homens, homens para quem o teatro
seria ao mesmo tempo uma concepção do mundo e o ponto de vista
pessoal que eles teriam sobre tudo:
homens-teatro, se quiserem.
Talvez considerem nossa ambição
muito pretensiosa. Não é preciso
tanto esforço, dirão, para formar um
ator. O essencial é que ele tenha um
temperamento, uma "natureza". O
resto virá espontaneamente, a arte
não se preocupa com pedagogia.
Mas, em primeiro lugar, se é verdade
que o ator de gênio não tem necessidade de ninguém, é preciso convir
que o teatro não é feito apenas pelos
atores de gênio. Há também os outros, todos os outros, os honestos artesãos do teatro, inteligentes e conscienciosos. Uma escola como a nossa se preocupará primeiramente
com esses: trata-se de elevar seu nível, de revelar-lhes todas as suas possibilidades, de levá-los ao melhor de
si mesmos. Conseguir elevar, ainda
que só um pouco, o nível médio dos
atores seria um tempo perdido?
Quanto aos outros, aos artistas de
exceção, certamente não pretendemos ensinar-lhes seu gênio. Mas, se
as vicissitudes de nascimento e as dificuldades materiais os privaram, na
origem, de cultura e de alguns meios
físicos, eles buscarão por muito tempo, talvez a vida inteira, adquirir por
si próprios essa cultura e esses
meios. Não acreditaremos ter agido
mal se nossa escola lhes tornou essa
aquisição mais fácil.
Este texto, extraído dos arquivos de Charles
Dullin, é um provável projeto para uma nova orientação da escola de arte dramática
de Dullin, em que deu cursos durante a 2ª
Guerra, e foi publicado em "Sartre" (Bibiliothèque Nationale de France/Gallimard).
Tradução de Paulo Neves.
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