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Calvino, 500
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI ANALISA A OBRA
DO REFORMADOR FRANCÊS, NASCIDO HÁ CINCO SÉCULOS, QUE LEVOU A TEOLOGIA CRISTÃ A
SEUS LIMITES LÓGICOS E TERMINOU POR SACRIFICAR
A IDEIA DE UM DEUS AMOROSO E CLEMENTE
James Burke/Time Life/Getty Images
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Estátua de Calvino (reclinado) no Muro dos Reformadores, durante comemoração de 400 anos da Universidade de Genebra
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA
No Brasil, regra geral, pouco sabemos de [João] Calvino. Menos até
que o pouquinho
que sabemos de Lutero. O suficiente para ligar seus nomes à
revolução cultural da primeira
metade do século 16, a Reforma
protestante, um dos motores
de arranque da modernidade.
Foi a primeira das revoluções burguesas da lista de três
elaborada por Engels. Pôs em
marcha um processo de emancipação humana em três níveis,
num ataque simultâneo à tradição religiosa, às autoridades
tradicionais, ao tradicionalismo econômico.
Calvino e Lutero foram, um
em seguida do outro, as grandes lideranças intelectuais daquele vasto movimento de liberação criadora que varreu a Europa por mais de um século, do
início do 16 ao fim do 17.
Teólogos criativos ambos,
sacadores de novas ideias
quanto à salvação da alma e à
concepção de Deus, formadores de novas igrejas com novíssimas eclesialidades, inventores de formas outras, menos ritualistas, de praticar a religião
cristã. Ambos escreveram muito e pregaram mais ainda, não
necessariamente nessa ordem.
Contemporâneos um do outro? A precedência de Lutero
em relação a Calvino foi ligeiramente temporal, sendo antes
de mais nada intelectual. Foi
Lutero quem lançou o principal fundamento da grande virada teológica: a doutrina da
salvação "sola fide" (em latim:
só pela fé).
Noutras palavras, a salvação
da alma como iniciativa totalmente divina, sem qualquer
participação ou ajuda, seja dos
méritos do interessado, seja de
méritos alheios acumulados,
segundo uma tese católica repudiada nominalmente por
Lutero nas 95 teses, num fundo
comum de graça salvífica denominado "thesaurus ecclesiae"
[o tesouro da igreja].
Muitos brasileiros conhecem tais generalidades sobre os
dois reformadores, mas poucos
são os que sabem que Calvino,
ao repisar as pegadas de Lutero
na crítica teórica e prática do
catolicismo romano, procurou,
de cabeça feita, levar às últimas
consequências lógicas as premissas teológicas -de caráter
"teocêntrico"- fincadas pelo
promotor da grande dissidência religiosa perante o "eclesiocentrismo" católico e sua soteriologia inerentemente sacramentalista.
Desígnios inapeláveis
O foco do pensamento de
Calvino é a soberania absoluta
do Deus único, sua irresistível
onipotência e inatingível transcendência em relação ao mundo -este mundo- que criou do
nada apenas para Sua maior
glória. Seus desígnios em relação a nós são misteriosos, ocultos, insondáveis e, existindo
desde toda a eternidade, são
imutáveis, inegociáveis, inapeláveis. Definitivos.
Ocorre que o maior problema teórico da concepção monoteísta da divindade, que
pressupõe como irrenunciáveis
a onipotência e a infinita bondade de Deus, reside na dificuldade de achar nela uma explicação coerente para a existência do mal.
Donde vem o mal? O dualismo (seja o de Zoroastro, seja o
de Maniqueu) presta bons serviços nesse sentido. Como?
Justapondo duas potências de
igual grandeza e em perpétua
oposição: a potência do bem
(isto é, da bondade, da pureza,
da verdade, do belo, da luz) e a
potência do mal (da malignidade, da impureza, da mentira, do
horrendo, das trevas).
Com isso, sistematiza-se de
modo racional a primitiva
crença, cuja vigência mergulha
na noite dos tempos, de que
existem espíritos bons, concebidos como favoráveis e úteis
ao ser humano, e espíritos
maus, entendidos como desfavoráveis e nocivos a nós. Ora, o
dualismo racionalizado de tipo
zoroastriano implica uma renúncia à onipotência de Deus,
já que Este tem pela frente um
Antideus de igual poder, que o
limita.
Quando vem o monoteísmo,
dá a vitória à potência do bem
sobre o espírito das trevas. Mas
isso não extirpa a dúvida metafísica diante da realidade do sofrimento humano, sobretudo
se for imerecido e, portanto, injusto. O melhor exemplo é o sofrimento dos inocentes neste
mundo. Se o Deus todo-poderoso é infinitamente bom, como explicar que sofra quem
não merece sofrer?
Tanto o judaísmo como o
cristianismo se defrontaram
por séculos a fio com a exigência intelectual de desatar esse
nó racionalmente, vale dizer,
coerentemente. Sem muito sucesso no quesito consistência
lógica, pelo menos até o início
do século 16, com a entrada de
Calvino no debate.
Proeza racional
Foi preciso o destemor conceitual de um teólogo exigente
feito ele (que, segundo biógrafos, ensinava como se fosse refém de uma inclinação pessoal
obsessivo-compulsiva a pensar
com lógica a teologia) para dar
o passo racional necessário.
Ousou: para salvar a onipotência de Deus, não dá para não sacrificar pelo menos um quê da
bondade divina.
Se pretende consistência, o
"ensino da religião cristã" (título de sua obra maior) tem que
renunciar à figura do Deus
amoroso e clemente. Foi o que
sua teologia procurou objetivar
numa versão mais explícita e
completa, o mais possível consequente, da tese agostiniana
da predestinação à salvação
eterna. Nessa proeza de racionalização, o conhecimento minucioso que tinha da Bíblia o
ajudou pra valer.
Dou três exemplos, tirados
por ele dos profetas: "Para que
saibam os que procedem do
Oriente e os que vêm do Ocidente que além de mim não há
outro. Eu, Deus, formo a luz e
crio as trevas, faço a paz e crio o
mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas." Pode parecer incrível, mas isso está lá, na Bíblia.
Javé afirma isso pela boca do
profeta Isaías (Is. 45, 6-7).
E indaga pela boca de Amós
(Am. 3, 6): "Tocar-se-á a trombeta na cidade sem que o povo
estremeça? Sucederá algum
mal à cidade sem que o Senhor
o tenha feito?" E nas "Lamentações" de Jeremias (Lm. 3,
38): "Acaso não procede do Altíssimo assim o mal como o
bem?"
Foi com essa mesma e incondicional devoção ao "mistério"
de uma soberania divina acima do bem e do mal, num
"mix" muito particular, só seu,
de lógica sistemática e senso de
mistério, que o jovem jurista
convertido ao protestantismo
completou, também por necessidade lógica, a tese luterana de
que não jaz nas obras meritórias o fundamento da salvação.
Seu raciocínio corre assim:
do mesmo modo que não está
nas obras do ser humano o fundamento de sua eterna salvação, também nelas não pode estar o fundamento de sua eterna
perdição. Nós, criaturas humanas, "não merecemos" nem
aquela nem esta, eis o lado ironicamente humilde da ousadia
teológica de Calvino. Perante a
infinita justiça divina, não somos capazes de merecer nada,
nada, coisa alguma.
Na explicação paciente que
faz da doutrina da dupla predestinação, é notória a intenção de nos instruir nesta humildade a um só tempo mínima
e máxima: a de colocar na vontade do "Deus absconditus"
(Deus oculto) a causa da nossa
eterna salvação, tanto quanto a
da nossa eterna danação.
Daí por que, entre as consequências dedutíveis do princípio básico da soteriologia luterana, quem leu Weber sabe disto, na versão completa que Calvino ensina da doutrina da predestinação o que mais impressiona e choca a leitores e seguidores é a predestinação dos
condenados ao inferno. Vale dizer, a predestinação como duplo decreto. Sua definição:
"Chamamos predestinação o
desígnio eterno de Deus, pelo
qual ele determinou o que queria fazer de cada ser humano.
(...) Por seu desígnio eterno e
imutável, decretou Deus quais
eram os que ele queria tomar
em salvação, e quais os que
queria mandar à perdição."
Decreto apavorante
A predestinação eterna só
dos salvos (dos "happy few", diria Shakespeare) é uma antiga
tese cristã, já presente em
Agostinho e aceita expressamente por Lutero. O que surpreendeu em Calvino foi ele ter
aberto o jogo no que tange à
predestinação dos réprobos,
ter exposto que a causa do seu
malfadado destino pós-morte
não está nos pecados deles, como normalmente se crê, mas
no outro braço que completa o
decreto salvífico do Senhor. Está no "decretum horribile".
Comentário do próprio Calvino: "Confesso que esse decreto deve nos apavorar". Comentário do grande poeta do protestantismo, John Milton
[1608-1674]: "Posso ir para o
inferno, mas um Deus como esse jamais terá o meu respeito".
Quase dantesco, soando às
vezes satírico, Calvino deixou
de lado todo prurido "bela alma" e saiu rasgando o véu da
compaixão católica e luterana
pelo "pobre pecador", dando
espaço em suas obras à crueza
catastrofista do monoteísmo
vingador dos profetas bíblicos.
Só nos profetas de Israel podem-se ler peças declaratórias
de um monoteísmo predestinacionista cabal e incondicional como o dele, isto é, para o
bem e para o mal, para o céu e
para o inferno.
Calvino foi a eles. Mas foi
também a Paulo, aos "Salmos",
ao "Livro de Jó", para dali glosar as frases que deixariam em
sobressalto seus seguidores e
indignados seus opositores.
Contam que ele achava desnecessário, além de impróprio e
pecaminoso, ir além do que diz
a Bíblia sobre a questão.
Seus biógrafos apresentam-no tão convicto do abismo intransponível que depois da
Queda separa a humanidade da
transcendência absoluta de
Deus que ele, na vida privada,
reagia a esses terrores com um
domínio de si de tal forma rígido, e aparentemente tão sereno, que não deixava pista alguma sobre as provações por que
certamente passou e passava,
coibindo com o mesmo freio as
intempéries da própria dor:
"Calei e emudeci, porque Tu,
Jeová, o fizeste" (Sl 39, 9). Calvino sofria de úlcera crônica.
Catecismo foi um gênero literário de sucesso no século 16,
século que, na avaliação do historiador francês Lucien Febvre, sobressai como o mais religioso da história ocidental. A
começar de Lutero, cada líder
reformador queria publicar
um. A Contrarreforma católica
também criou o seu.
Calvino tinha lá seus 25 anos
quando começou a escrever o
dele, esse que acabaria virando
sua obra principal -"Institutio
Religionis Christianae"- agora
lançada pela Editora Unesp em
nova tradução ["A Instituição
da Religião Cristã", vários tradutores, tomo 1, 512 págs., R$
83; tomo 2, 904 págs., R$ 110].
Uma elegância de edição, por
sinal, com capa dura em cores
asceticamente sóbrias, um belo
objeto.
Com essa beleza de lançamento, o Brasil livreiro comemora em grande estilo o quinto
centenário do nascimento desse mentor intelectual da Reforma pontiagudo e contundente,
seu promotor mais extremado,
cujo carisma pessoal parece revelar-se ao leitor no modo muito seu de repensar teocentricamente (repito) a fé cristã com
uma consequencialidade lógica
de deixar Lutero comendo
poeira.
Arrojado, é irresistível no
convite que faz a um estudioso
não religioso da religião a
aprender a pensar uma verdade religiosa "jusqu'au bout"
(até o fim) para ver no que pode dar.
Passou a maior parte da vida
adulta escrevendo e reescrevendo seu catecismo, de início
um pequeno livro de estrutura
simples e apenas seis capítulos
(a primeira edição é de 1536),
até torná-lo essa espécie de
"summa theologica" que conhecemos das edições definitivas de 1559 (em latim) e 1560
(em francês). São oitenta capítulos dispostos em quatro livros divididos em dois tomos.
A nova tradução brasileira,
de iniciativa de uma editora
universitária declaradamente
não religiosa, teve por base o
texto em latim de 1559, a última versão latina. A última versão em francês é de 1560. O
texto se constrói numa prosa
maravilhosamente lógica e incisiva, e nisto me parece que a
nova tradução convence, a saber: no empenho de fabricar
boa prosa vernácula.
Devo confessar que, muito
antes do convite feito pelo
Mais! para comentar o livro
neste décimo jubileu do autor,
e conhecendo de antemão a
tradução alemã, cujo título diz
"Unterricht in der Christlichen
Religion", ou seja, "Instrução
na Religião Cristã", eu já desconfiava que no latim o nome
"Institutio" trouxesse à baila o
significado de "instrução", "ensino", "escola". Mas não sabia
que o mesmo significado ocorresse também em francês.
Curioso, corri ao dicionário
de francês "Petit Robert" e acabei descobrindo que, também
na língua materna de Calvino, o
termo "institution" abriga
igualmente a acepção de "ação
de instruir e de formar pela
educação". Esse devir semântico passou a ocorrer, segundo o
"Petit Robert", no início do século 16. "Tudo a ver com a obra
de Calvino", comemorei sozinho a descoberta.
Comecei então a me perguntar, e é uma pergunta que não
quer calar, se na nova tradução
brasileira a obra de Calvino não
ficaria melhor representada, e
mais adequadamente apresentada, com um título de significado mais direto e menos polissêmico do tipo "Ensino da Religião Cristã".
Porque, afinal de
contas, é disso mesmo que se
trata, de ensino. E a leitura do
tomo 1 só fez me convencer, inconformado, de que agora é tarde. Estamos diante de mais
uma oportunidade perdida de
fazer o melhor para o leitor.
Seja como for, com exceção
da discutível tradução do título,
a atual edição faz jus ao compromisso de clareza indispensável a uma argumentação religiosa que se pretende rigorosamente pública. Quer dizer, sem
os resvalos em eflúvios e plangências de intimidade cripto-nupcial com o Divino encontradiços em santo Agostinho,
são Bernardo, Lutero, Spener,
Wesley e tantos mais, sempre
cheios de amor para dar.
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI, chefe do departamento de sociologia da USP, é autor de "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34).
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