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+Livros
Espetáculo da depressão
Maria Rita
Kehl analisa
os imperativos
do consumo,
que negam
ao sujeito
o tempo necessário
para se
constituir
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Tempo e o Cão - A
Atualidade das
Depressões", de
Maria Rita Kehl, é
um livro empolgante. A leitura do trabalho é
extremamente agradável, dada
a qualidade literária da escrita
da autora. Não se engane, entretanto, o leitor. A leveza do
que é escrito é inversamente
proporcional à densidade do
que é dito.
As numerosas referências
conceituais mobilizadas e as
hipóteses sustentadas exigem
atenção e tempo para compreender. Portanto, qualquer
resenha -inclusive esta- pode
apenas fazer reverberar alguns
aspectos da riqueza do tema
abordado. É pouco, mas é o
possível.
Maria Rita retomou o problema da depressão contemporânea pelo viés mais árduo: fazer [Jacques] Lacan dialogar
com [Donald] Winnicott -dois
herdeiros de Freud supostamente avessos um ao outro- e
trazer a cultura para o interior
da subjetividade.
Como instrumento de análise, uma distinção nosológica e
três grandes noções operativas:
a distinção entre melancolia e
depressão e as noções de gozo,
tempo e vazio.
A descrição da melancolia,
diz ela, permanece marcada
pela tese freudiana da perda do
objeto e do ataque ao próprio
Eu, identificado em parte com
o objeto perdido amado e odiado. Os sintomas melancólicos
seriam, de um lado, a expressão
da agressão ao Outro internalizado e, de outro, a resposta sintomática ao desinteresse do
Outro pelo sujeito.
O fantasiado desinteresse é
interpretado como sinal da vacuidade ou nulidade libidinal
do indivíduo, donde a contrapartida do desinvestimento no
mundo. O correlato cultural
dessa organização psíquica seria o ethos da modernidade e
da civilização burguesa oitocentista. A partir dos ensaios
de Walter Benjamin sobre o
barroco e sobre o mundo oitocentista de [Charles] Baudelaire, Maria Rita busca mostrar
como a ordem socioeconômica
reduplica, no nível simbólico, a
vivência de superfluidade melancólica potencialmente inscrita em todos nós.
A depressão contemporânea
é outra coisa. O deprimido,
nesse caso, não sofre pela
omissão do Outro, mas por sua
intrusão. O protótipo desse tipo de trauma é a situação da
mãe ansiosa ou obsessiva, que
afoga o filho em cuidados constantes e excessivos.
Como consequência, a criança não pode experimentar a falta -desilusão, na terminologia
de Winnicott- que o leva a recriar na fantasia o objeto da carência, condição "sine qua
non" da existência de seu desejo. Assim, onde o desejo deveria advir, surge um arremedo
de resistência ao gozo do Outro
na forma passiva e reativa do
esvaziamento de si. Essa predisposição se repete na etapa
edipiana de rivalidade com o
pai e redunda no retraimento
do sujeito diante da vida pública ou privada.
A montagem depressiva, assim, tem como premissa a onipresença do gozo do Outro, que
sonega ao sujeito o tempo necessário à substituição metafórica ou metonímica do objeto
ausente.
Tempo angustiante
De forma breve, faltou desilusão no passado; sobra desesperança no presente. Sem tempo para desejar, o sujeito se
rende à louca injunção do supereu lacaniano: "Goza! Não goza!". Goza para não desejar; não
goza para que o Outro goze.
Essa é a alavanca que Maria
Rita aciona para passar do registro pessoal ao registro cultural, pois os filhos do Outro invasivo são a versão psicanalítica
do que [o pensador e cineasta
francês] Guy Debord chamou
de "filhos do espetáculo".
Na sociedade do espetáculo,
o Outro da publicidade também assedia o sujeito com imagens da felicidade do consumo,
sem deixar-lhe tempo para elaborar as perdas ou fruir os ganhos da vida.
Mães atribuladas, pais privados de autoridade simbólica,
sujeitos mesmerizados pelas
promessas do estilo de vida
drogado, todos vivem angustiadamente correndo contra o
tempo ou paralisados na atemporalidade da depressão.
Em suma e em bom português, o tempo depressivo do espetáculo é, verdadeiramente,
um tempo de cão. Como o tempo do filme "Corra, Lola, Corra" ou o de Jack Bauer [herói de
série televisiva americana] e
suas 24 horas.
Contra isso, lembra Maria
Rita, tempo é memória; memória é desejo e desejo é sujeito.
Nem derrotista, nem ufanista,
ela afirma que recobrar o direito ao tempo é restaurar a dignidade do desejo e a alegria de
sentir que a vida vale a pena ser
vivida. Pode-se pedir mais de
uma psicanalista?
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da Psiquiatria no Brasil" (ed. Garamond), entre outros livros.
O TEMPO E O CÃO
Autora: Maria Rita Kehl
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/3875-7250)
Quanto: R$ 39 (304 págs.)
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