São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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AUTORES

Uma tragédia tardia



Harold Bloom analisa a idéia de morte em "A Condição Humana", de André Malraux
HAROLD BLOOM
especial para a Folha

Escrito em 1933, "A Condição Humana" é reconhecido universalmente como o maior romance de André Malraux. Relê-lo hoje, 70 anos depois da insurreição de Xangai lembrada no livro, constitui uma experiência ambígua. Não é preciso ter medo de se deparar com um mero documento de época; chegamos aqui às dimensões reais da tragédia, com toda a dignidade estética exigida pelo gênero. O que nos causa um certo desapontamento é seu caráter excessivamente abstrato.
Malraux talvez tenha sofrido até de algum excesso de lucidez sobre o que estava fazendo. Reler um autor como Faulkner sempre provoca surpresa, porque nos deparamos, frequentemente, com qualidades que ficam para além do domínio da arte. A economia ficcional de Malraux é admirável, mas os resultados soam um tanto esquemáticos. A clareza pode ser uma virtude romanesca; já a transparência incomoda, quando dá a impressão de falta de volume.
A figura dos idealistas revolucionários é mais que convincente em "A Condição Humana"; chega a ser exemplar. Mas são personagens que se vêem diminuídas pelo senso de ter chegado depois de seus modelos. Não são precursores, mas imitadores tardios da revolução. Os protagonistas de Malraux buscam intencionalmente atingir sua maior força ao se confrontar com a morte, o que os leva a níveis diversos de companheirismo humano ou solidão.
Seus precursores na literatura são os indivíduos obstinados de Dostoievski e Conrad. Mas "A Condição Humana" não resiste a uma comparação com "Nostromo", muito menos com as narrativas angustiadas de Dostoievski. Não há uma personagem original em Malraux, nenhum "revolucionário forte", no sentido em que se pode falar de um "poeta forte" (um escritor que seja um novo início das coisas).
Defendendo a estatura de Malraux como escritor trágico, Geoffrey Hartman vê os heróis do romance como formas de compreender e humanizar o eterno retorno nietzschiano: "O sentimento trágico é evocado não pela multiplicação de vidas..., mas pela repetição das chances de morrer... No curso do romance, um herói como Tchen morre mais de uma vez" ("André Malraux", 1960). Mas será que é essa mesma a questão de Nietzsche, será esse o teste de força? Por acaso os heróis de Malraux assumem o que Richard Rorty, seguindo Nietzsche, define como a "contingência da identidade"? Eis o sumário de Rorty desse aspecto crucial:
"O perspectivismo de Nietzsche pode ser resumido à tese de que o universo não tem nenhuma escala de grandezas própria e conhecida. Sua esperança era a de que, uma vez aceito que o "mundo real' de Platão não passa de uma fábula, venha-se buscar consolo, na hora da morte, não na transcendência da condição animal, mas no fato de ser aquela espécie peculiar de animal moribundo que, ao se descrever em seus próprios termos, acaba se criando a si mesmo".
Nietzsche compreendia que os políticos revolucionários estão mais próximos dos filósofos do que dos poetas, já que também insistem na crença de que a condição humana só admite uma e apenas uma verdadeira análise. Os heróis de Malraux almejam escapar da contingência, ao contrário dos poetas fortes, que aceitam e se apropriam dela. Muito embora os personagens de "A Condição Humana" (e de todos os outros romances do autor) se entreguem a meditações sem fim sobre a morte, com o intuito que seja de adquirir algum sentido sobre a vida, jamais se mostram capazes de descrever a si mesmos inteiramente, segundo seus próprios termos.
Isto serve de pista para o que há de mais inadequado no Malraux romancista, aquilo que o impede de fazer companhia aos maiores mestres da ficção francesa -Stendhal, Balzac, Flaubert, Proust-, ou aos romancistas que ele mesmo mais admirava no resto do mundo: Dostoievski, Conrad, Faulkner. Quem poderia dizer dos protagonistas de Stendhal e Balzac que a morte que os toma "não é mais do que o símbolo de uma alienação última de si"? Esse comentário de Hartman permanece válido para os heróis de Malraux, mas não para os dos outros dois.


Os personagens de Malraux oscilam entre a vontade e a fatalidade


"Não creio que o romancista tenha de criar personagens; o que lhe cabe é criar um mundo, particular e coerente", escreveu Malraux, defendendo-se da acusação de incapacidade para inventar personagens com vozes próprias, não só a de seu autor. "A Condição Humana" está longe de nos oferecer um mundo dessa ordem, e a questão das vozes persiste. Quem acaba de ler "Nostromo" vê-se refletindo sobre o capataz; quem fecha "As I Lay Dying" (Enquanto Agonizo) sente-se perseguido pela voz individualíssima de Darl Brunden.
Mas Kyo e Katov não nos oferecem nada de equivalente; todos no livro falam com a mesma inflexão e o mesmo vocabulário. O destino, ou contingência, não se deixa apropriar pelos heróis de Malraux, nenhum dos quais tem força para desafiar ou se livrar de seu criador.
Mesmo levando em conta a posição de Malraux, a homogeneidade de suas personagens se constitui numa clara limitação estética. Uma coisa é criar indivíduos variados, com vozes pessoais, e depois mostrar que são incapazes de se comunicar. Outra, muito diferente, é representar um número "x" de facetas do autor por um número "x" de protagonistas, todos com a sua voz, e só então demonstrar o caráter mórbido dessa inabilidade de falar verdadeiramente uns com os outros. Malraux confunde morte e contingência, que é um erro de filósofo, mas não de um grande romancista.
Talvez seja por isso que as mulheres representem um fracasso tão grande da representação, em todos os romances de Malraux. Miguel de Unamuno costumava dizer, com ironia, que "todas as mulheres são uma só mulher" -exatamente como as coisas se passam na ficção do autor francês. Um romancista mais preocupado com o homem do que com os homens dificilmente será capaz de nos dar uma variedade infinita de mulheres.
O que compensa a frustração do leitor de "A Condição Humana", diante da mesmice das personagens, é a habilidade inquestionável do romance em capturar um sentido trágico da vida. A tragédia, em Malraux, não diz respeito ao indivíduo, mas à sociedade e à cultura (especialmente esta última). Seu marxismo foi sempre superficial; mas seu interesse estético, felizmente, profundo. A tragédia dos heróis de "A Condição Humana" é inevitavelmente uma tragédia tardia, como bem cabe a um grupo de idealistas, cujo lugar vem tão tarde na história da revolução. E é por isso mesmo que Gisors é visto ensinando a seus alunos que "o marxismo não é uma doutrina, mas uma expressão da vontade..., a vontade de conhecer a si mesmo..., uma conquista sem autotraição".
Assim como a imaginação torna-se indistinguível da vontade, à medida que uma tradição artística vai ficando maior e mais antiga, a ideologia também se confunde com a vontade quando uma tradição revolucionária chega a uma fase muito avançada. A tragédia é uma questão da vontade, não de doutrina; disso vem a dignidade trágica da morte de Kyo e Katov.
"O marxismo acabou dentro de mim (diz Gisors). Nos olhos de Kyo, era uma expressão da vontade, não era? Mas nos meus, é uma fatalidade, e eu só me sentia em harmonia com ele porque o medo da morte se harmonizava com isso. Mas quase não me resta mais medo; desde a morte de Kyo, eu me sinto indiferente à morte. Estou livre (livre!...) da morte como da vida. O que eu iria fazer em Moscou?"
"Mudar outra vez, quem sabe."
"Não tenho outro filho para perder."
A distinção entre vontade e fatalidade corresponde à diferença entre filho e pai, ativista e teórico, descendente e precursor. Para Malraux, trata-se de uma distinção estética, não psicológica ou espiritual. Enquanto romancista, ele não toma partido nessa dicotomia - imparcialidade que é sua maior virtude narrativa e sua maior fraqueza na representação. Malraux nos mostra eventos e forças, mas o que se espera é mais do que isso: o que se quer é acesso a outras consciências, diferentes da nossa, ou da dele.
O Malraux teórico da arte exibe uma compreensão rara da contingência, mas o Malraux romancista é uma de suas vítimas. Ele percebia que um criador está obrigado a gerar sua própria linguagem a partir da dos precursores, mas não era capaz de pôr em prática essa percepção. "A Condição Humana" é uma tragédia memorável, sem uma única personagem que fique na memória. Sobreviverá, quem sabe, como testamento da tragédia do próprio Malraux como criador.


Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York (EUA); é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "Poesia e Repressão" (Imago). O Mais! publica mensalmente seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.



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