São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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NEOLIBERALISMO EM CHOQUE
Equilíbrio imprevisível



Leia prefácio do ministro da Saúde José Serra a "Como Será o Futuro Estado", livro do economista britânico Will Hutton que está sendo lançado no Brasil
JOSÉ SERRA
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A publicação no Brasil do livro de Will Hutton, "Como Será o Futuro Estado", é útil e oportuna. O autor oferece em 125 páginas uma avaliação crítica das chamadas políticas neoliberais, além de uma proposta de revisão do papel do Estado em uma economia avançada e no contexto da "globalização". Faz isso credenciado pela condição de analista da experiência de 18 anos de governo thatcherista e editor do "Observer", além do fato de ter contribuído, com este livro-programa, para a vitória do trabalhista Tony Blair nas últimas eleições britânicas.
O objetivo de Will Hutton é mostrar que a globalização econômica não implica um modelo único de economia de mercado a uma sociedade baseada na competição sem regras, nem muito menos o fim de qualquer papel positivo do Estado nacional na organização de políticas públicas, sejam elas destinadas a tornar a sociedade mais próspera, sejam para fazê-la mais justa.
O autor desenvolve seu argumento a partir de duas premissas, uma negativa e outra afirmativa. O Estado em que estamos (1) resulta da opção por um capitalismo que exacerba os efeitos perversos do mercado, criando ineficiências e aumentando a desigualdade: essa é a premissa negativa. A positiva consiste na possibilidade de o Estado adotar políticas capazes de incentivar uma economia mais comprometida com o investimento de longo prazo e com o dinamismo sustentável, além de permitirem, paralelamente, uma distribuição mais equitativa dos custos e benefícios sociais da prosperidade.
O thatcherismo alardeou uma história de sucessos políticos nos 18 anos em que o Reino Unido foi governado por Margaret Thatcher e John Major. Fora da oposição interna ao governo britânico, pouca gente sabe, porém, que esse sucesso não se deve apenas ao desempenho do governo, mas também a um sistema eleitoral de maioria simples (2), que pode transformar uma minoria de votos populares em maioria parlamentar.
Um sucesso inegável da maioria parlamentar conservadora inglesa foi observado no campo ideológico, que se desdobrou em dois aspectos. Primeiro, na fé cega no individualismo como única força viva da sociedade. Segundo, na profunda desconfiança que lançou sobre a capacidade do Estado em regular a competição e os mercados -sobretudo o mercado financeiro e o mercado de trabalho-, ou para administrar serviços coletivos (educação, saúde, transportes), ou, ainda, para adotar políticas de proteção social, tais como pensões e aposentadorias.
Entretanto, a queda de Margaret Thatcher e sua substituição por John Major na direção do Partido Conservador e do governo já indicava, se não um declínio, pelo menos um desgaste no apoio da sociedade britânica ao modelo neoliberal. Alguns dilemas e inconsistências, anteriores à derrota eleitoral dos conservadores, haviam ampliado esse desgaste, permitindo prever o resultado adverso para os "tories" (conservadores). Por exemplo, o thatcherismo, que sempre pregara o cosmopolitismo e a subserviência às forças do livre comércio, paralelamente, resistia à integração com a Europa, em nome da soberania nacional.
Embora muitos apostassem no suposto sucesso econômico do thatcherismo, mostrando o crescimento dos investimentos externos diretos, a resistência ao aprofundamento da União Européia divergia da agenda favorável à integração ao mercado e à moeda européia, apoiada pelas empresas multinacionais. Não foi por menos que, às vésperas das eleições, investidores estrangeiros fizeram notar seu desconforto com relação às políticas dos "tories".
O aumento da desigualdade -resultante de uma presumida liberdade das forças de mercado, estimulada para proporcionar melhor desempenho às empresas-, gerou fontes de instabilidade. Criou padrões heterogêneos de demanda e uma oferta desequilibrada de mão-de-obra qualificada e, paralelamente, trouxe custos sociais crescentes, em termos de desemprego e de atendimento à saúde pública.
Do mesmo modo, em uma parcela da população, produziu violência e perda de solidariedade familiar, além da ausência de hábitos de trabalho e convivência social. Isto reduziu em muito a contribuição desse setor para a sociedade, afora aumentar proporcionalmente o custo que representa para o Estado. No plano regional, a política de liberalização sem limites provocou efeitos análogos de instabilidade e desequilíbrio.
O argumento básico de Hutton para explicar a vulnerabilidade do modelo thatcherista é simples: o mercado não tem as poderosas propriedades de auto-regulação que os teóricos sugerem. Se tivesse, viveríamos em uma terra de leite e mel. Como isto não acontece, alguma coisa deve estar errada.
De fato, longe de hipotético equilíbrio resultante da total liberdade de contratação -cujo efeito seria o de distribuir, da melhor forma possível, a prosperidade entre todos os atores do mercado (empresários, investidores, consumidores, trabalhadores e dependentes)-, a liberdade exagerada das forças de mercado tende a produzir ineficiências e injustiça.
A resposta do autor, porém, não pende para o voluntarismo ou para o corporativismo, nem para uma intervenção governamental antagônica às leis do mercado. Hutton, assim como seu inspirador, o sociólogo Anthony Giddens, considera que o capital tem muitas fraquezas, mas uma coisa é certa: é sempre contemporâneo, ou, como diria Giddens, moderno.
Assim, procura investigar como construir uma estrutura capitalista que possa se auto-regular de forma mais adequada. Em suas próprias palavras, pretende descobrir "como a sociedade deveria responder pelos custos sociais das ações individuais, como os riscos que delas resultam poderiam ser distribuídos de forma mais justa e cobertos por algum tipo de seguro e como tais riscos deveriam ser pagos".
Hutton lembra que o mercado não é perfeitamente auto-regulado porque possui o que ele denomina de propriedades "reflexivas": os preços resultam do confronto entre oferta e demanda, mas, por sua vez, veiculam uma "valoração" que altera o equilíbrio dessas forças. "Os mercados não devem ser visualizados como meios que produzem sucessivos pontos de equilíbrio, mas como em estado constante de experimentação reflexiva, sem ponto de equilíbrio".
O exemplo melhor se situa nos mercados financeiros. Nesses mercados, são cumpridas as suposições para uma operação eficiente e bem-sucedida dos contratos. Os preços dos ativos financeiros refletem as decisões de muitos vendedores e compradores. As distorções monopolistas são raras. Entre vendedores e compradores, também predomina a informação ampla e instantânea, além do desejo de maximizar os lucros. Nenhum laço de amizade ou ética mais elevada elimina a injunção de ganhar dinheiro.
Apesar disso tudo, os mercados financeiros são instáveis. Há movimentos cumulativos (de fuga de hipotéticos pontos de equilíbrio) irresistíveis. Há preços excessivamente altos ou baixos que podem permanecer assim durante meses ou anos. Os preços não equilibram as forças em jogo, porque eles próprios são parte das decisões de compra e venda que supostamente deveriam coordenar.
Por trás dessa falha está a ilusão da idéia de Adam Smith e seus discípulos de que a vida econômica obedece a um equilíbrio newtoniano, como no mundo natural, com suas leis da gravidade e da inércia.
No mundo da economia, porém, as coisas não funcionam bem dessa maneira. A queda do preço das ações de uma empresa, por exemplo, não sinaliza necessariamente que ela deva ser comprada porque se tornou mais barata. Sugere, também, que o mercado considera que a empresa passou a valer menos. "Sem conhecimento perfeito, o receptor da informação não pode julgar se o mercado está certo: na realidade, é mais provável que a queda de preço (das ações) envie a mensagem reflexiva de que o valor da empresa em questão está sendo depreciado; seria, assim, tão sensato endossar o julgamento e vender as ações como seria dotar a visão contrária e comprar".
Na visão smithiana, a ordem natural (preços ancorados em valores naturais) tinha contrapartida em uma ordem natural na sociedade, ancorada em instintos e impulsos. A esse propósito, seguindo Giddens, o autor lembra que a vida contemporânea do final do século 20 é analiticamente diferente da vida no século 18 e começo do século 19. Naquela época, talvez, as suposições de teóricos como Smith e Burke sobre os mercados e a sociedade fossem plausíveis. Hoje não.
Primeiro, os mercados sofrem os fenômenos da reflexividade e dos chamados efeitos "spill over" -essencialmente as vantagens e desvantagens que as mudanças em uma atividade específica produzem sobre as outras e sobre a sociedade em geral. Segundo, não há patrões fixos de comportamento, mas escolhas sobre linhas de conduta, que envolvem uma dinâmica desestabilizadora e continuada para o indivíduo e para a sociedade.
Assim, "o que comemos não é mais determinado pelas estações climáticas; o sexo das pessoas não mais lhes prescreve um papel predeterminado nas famílias e carreiras; o nascimento não mais determina o status. As mudanças de posição das mulheres no mercado de trabalho e na maternidade puseram em movimento uma dinâmica sobre a estrutura da família, padrões de educação das crianças, e mesmo morais e sexuais, que não podem ser mantidos pela insistência em reinventar o passado. Não há volta atrás".
Para examinar as consequências de um capitalismo ilimitadamente submetido ao livre contrato e à ação individual, Hutton emprega o interessante exemplo dos transportes públicos (3). A privatização e a desregulamentação dos ônibus interurbanos britânicos resultaram em transporte mais lento e de pior qualidade. Isso, além de prejudicar os usuários, redundou em aumento substancial do transporte individual, que, por sua vez, aumentou o custo e piorou a qualidade e a rapidez dos transportes em geral. Os cortes de pessoal (começando pelos cobradores), a diminuição dos salários e da proteção aos trabalhadores, afora criarem desemprego, diminuíram a qualificação geral da mão-de-obra do setor e seu envolvimento com a profissão, afetando a qualidade e a segurança do serviço.
A consequente diminuição da demanda incentivou as empresas locais e regionais a efetuarem vendas e fusões que resultaram em um reduzido oligopólio, com consequências sobre preços, qualidade dos equipamentos, redução de horários e fluxos, mudanças inconvenientes de itinerários e assim por diante.
Assim, a privatização e a desregulamentação que, teoricamente, garantiriam maior eficiência e maiores benefícios para todos, em decorrência da maior flexibilidade assegurada pela livre contratação e do equilíbrio decorrente da livre competição, resultaram em menos competição, menos eficiência, maior iniquidade e mais prejuízo aos usuários. A qualidade dos transportes encareceu e piorou para todos -tanto usuários de ônibus como de automóveis-, os empregos diminuíram, a atividade econômica local se contraiu, caiu a demanda de equipamentos de transporte...

Se o mercado tivesse as propriedades de auto-regulação que os teóricos sugerem, viveríamos em uma terra de leite e mel


O exemplo evidencia duas importantes características das economias de mercado. A primeira (o "spill over") é que as ações econômicas produzem efeitos gerais, sobre a economia e a sociedade, que vão muito além das intenções individuais e dos objetivos das partes contratantes e impõem custos a terceiros e à sociedade em geral. Os indivíduos e as empresas, se não forem induzidos a tanto, não têm motivação para assumir esses custos.
A outra característica é a imprevisibilidade. Não é possível, em um contrato, prever o imprevisível. Por isso, Hutton propõe considerar a introdução de um elemento de confiança e de compromisso, algo que esteja embutido na cultura empresarial, na cultura profissional, que permita confiar que o imprevisível -por isso mesmo não previsto nos contratos- seja tratado de modo a preservar a eficiência e a equidade.
Nessa linha, o autor sugere duas tarefas complementares: "A primeira é elaborar um sistema de direitos de propriedade em que as obrigações com relação à sociedade como um todo sejam embutidas no cerne da idéia de propriedade"; a segunda, "criar sistemas de seguro coletivo contra riscos coletivos, definindo o seguro da forma mais ampla possível, de modo a incluir educação, saúde, habitação, juntamente com desemprego".
Alguns exemplos são usados para ilustrar essa necessidade e sugerir modos de organizar o mercado sem submetê-lo a uma camisa-de-força. Tenha-se em mente a respeito que o caráter "reflexivo" do capitalismo de livre contrato (4) produz desigualdades e a desigualdade crescente cria ineficiências.
Um exemplo refere-se aos elevados níveis salariais correspondentes aos mais altos desempenhos em determinadas atividades, tão díspares como futebol ou cirurgia do coração. Tais níveis acabam atraindo talentos que fazem falta em profissões socialmente indispensáveis -mas menos remuneradas-, como engenheiros, professores ou servidores públicos. Além da desigualdade, essa situação provoca uma divergência entre desempenho e remuneração que perturba a coesão institucional e exacerba o individualismo, não somente entre os mais bem remunerados, mas também entre os "perdedores", aqueles que despendem esforços desproporcionalmente maiores do que as remunerações que podem esperar.
Os conservadores chegaram a argumentar que o aumento das distâncias entre os mais ricos e os mais pobres -entre 1979 e 1997, os 10% mais pobres perderam 13% de sua renda em termos reais- não tem importância, pois, devido à mobilidade social, os pobres não seriam os mesmos. Mas essa mobilidade foi muito reduzida: embora, a cada ano, a metade dos 20% mais pobres migrasse para uma faixa de renda mais elevada, no ano seguinte, um terço caía de novo para o fundo do poço.
Além disso, entre 1991 e 1994 (período da pesquisa), um terço dos adultos britânicos caiu para a faixa de renda mais baixa por pelo menos um ano. E cerca de 7% da população esteve permanentemente nessa faixa mais pobre, um terço dos quais são casais com filhos e uma quarta parte é formada por mães solteiras.
Isso tudo aponta, na visão do autor, para uma sociedade em que os riscos dos ajustes do mercado de trabalho são inteiramente assumidos pelos empregados. O caráter "reflexivo" do mercado que, no outro extremo, comanda uma corrida para o alto, agora estimula uma verdadeira corrida para o abismo.
Em seu livro anterior, "O Estado em Que Estamos", o autor desenvolveu a idéia de uma sociedade 30/30/40, na qual três décimos dos adultos estariam desempregados ou economicamente inativos, três décimos estariam em empregos estáveis e os outros quatro décimos seriam autônomos e empregados em turno completo, com ocupação razoavelmente estável. Dados recentes confirmam a plausibilidade desses dados para a Grã-Bretanha.
A consequência, em um contex to de empregos instáveis, foi o au mento dos períodos de percepção de renda reduzida ou nula para um número crescente de empre gados, o que tornou ainda mais di fícil manter os dispendiosos siste mas de seguro individual, na falta da seguridade pública. A rede de proteção pública foi se tornando mais fraca e seus substitutos priva dos são dispendiosos e de cobertu ra limitada. No mercado financeiro, em que o conceito de "alta liquidez" é a pedra de toque do sistema, os in vestidores são estimulados a rom per rapidamente com qualquer compromisso com empreendi mentos e a liquidar ativos para fa zer caixa, enquanto os bancos ten dem a emprestar a curto prazo. Existe, no caso, uma interação en tre o padrão de propriedade acio nária, a estrutura de tributação, a liquidez dos mercados e a estrutu ra da regulamentação empresarial que, a despeito da ação racional dos indivíduos -e até de sua eventual boa-fé- tem o efeito perverso de produzir investimen to e produto agregado menores do que seria possível e desejável. Lembre-se, ainda, o caso da Pre vidência Social. As políticas neoli berais, sob pretexto de que o setor público é ineficiente e produz efei tos perversos, alimentaram um belo círculo vicioso, ao criarem in centivos para fundos privados de pensão, seguro de saúde e educa ção, enquanto comprimiam o au mento do gasto público nessas áreas, tornando os serviços públi cos menos atrativos, o que, por sua vez, os tornou relativamente mais caros e ineficientes. O argu mento central do autor é de que o mercado, a priori, não provê me lhor do que o seguro coletivo des de que os riscos sejam comparti lhados coletivamente. Além do mais, o gasto público visa a um objetivo moral e social indispensá vel para fazer frente às dinâmicas novas e poderosas do risco no ca pitalismo de hoje. O seguro coletivo -entendido no sentido amplo, já mencionado, que inclui saúde, educação etc.- seria ancorado na tributação dire ta (5), mecanismo que garante uma distribuição equitativa dos riscos entre os mais e os menos aquinhoados. A partir desse ponto, Hutton co meça a esboçar os traços gerais do que seria uma sociedade e uma economia do compromisso, por oposição a um capitalismo de con trato (6). O autor recusa a doutri na da falta de alternativa, que se traduz aproximadamente no se guinte: é preciso aceitar o desem prego, a ociosidade e a pobreza com estoicismo (qualquer seme lhança com caudalosas correntes de pensamento no Brasil de hoje não é mera coincidência). Nada que "onere" a empresa deve ser feito, como, por exemplo, exigir que treine melhor seus emprega dos ou respeite mais o meio am biente. Tudo o que é privado, por defi nição, é melhor, e um governo que não esteja conforme com esse pre ceito perderá a confiança. Os paí ses não ousam exigir respeito das grandes firmas às suas leis domés ticas, por medo de que elas emi grem para paraísos desregulamen tados, nem tributar seus cidadãos para sustentar as próprias institui ções. Essas premissas do capitalismo neoliberal thatcherista, segundo ele, estavam levando a uma degra dação da sociedade e das liberda des, enquanto a emergência de um mercado mais global revelava, ao contrário, a variedade de capitalis mos com especificidades que soam irracionais aos conservado res britânicos, mas que consistem, antes de mais nada, em diferentes maneiras de equilibrar as obriga ções e riscos dos direitos de pro priedade. Hutton cita Hong Kong e a Itália, onde a família desempenha um papel central na propriedade em presarial e na distribuição de ris cos, e a Alemanha, onde a grande propriedade empresarial é exerci da por bancos e sociedades de ges tão, e os riscos são compartilhados por meio de um poderoso sistema de seguridade social. "Nenhum país capitalista pode eludir a ques tão de saber como se exercem os direitos de propriedade e como se distribuem os riscos". O fantasma da globalização, co mo bom fantasma, é ilusório, pois, -embora seja verdade que dimi nuiu a capacidade do Estado na cional de dirigir a seu bel-prazer a economia nacional-, sua capaci dade para promover parcerias, re gular atividades, fixar níveis de tri butação e de gastos é tão significa tiva como sempre foi desde a Se gunda Guerra Mundial. Os gover no têm um raio de manobra bem maior do que se diz. Isso não re quer, porém, uma socialização do capitalismo, nem mais interven ção estatal na economia ou mais corporativismo. A tarefa do poder público é promover incentivos, fa zer leis e criar novas instituições que permitam mais compromisso entre os agentes econômicos e as segurem que os indivíduos não fi quem expostos a um grau irrazoá vel e injusto de riscos. O fulcro de uma sociedade justa seria uma distribuição mais equi tativa de trabalho e renda. O traba lho, lembra Hutton, não é apenas uma fonte de ganho, é uma fonte de habilidades, de relações pes soais e de afirmação social e exis tencial: "O primeiro objetivo de qualquer governo democratica mente eleito é a promoção do tra balho". Evidentemente, é preciso respei tar os parâmetros básicos da eco nomia: se os empregadores não puderem alterar a composição de sua mão-de-obra contratada na medida em que mudam os pa drões de consumo, pagando-lhes de acordo com essas mudanças, enfrentarão perdas e, em última análise, até quebras. Mas, para fa zer mudanças no mercado de tra balho, é preciso mudar as priori dades dos proprietários de empre sas. Na imensa maioria dos casos (e cada vez mais no Brasil), os direi tos de propriedade no Reino Uni do são delegados a administrado res de investimentos, para os quais a principal responsabilidade não são as empresas em que investem, mas as poupanças de seus investi dores, cujos ganhos eles precisam maximizar no menor tempo pos sível, para enfrentar a competição dos demais administradores de in vestimentos. Tais prioridades, co mo é óbvio, contaminam a perfor mance dos diretores e gerentes das empresas. A mudança dessa cultura, tor nando os administradores mais comprometidos com as empresas, exige a alteração de algumas re gras e a adoção de outras. Por exemplo, grandes investidores te riam de respeitar um período mí nimo antes de mudar de adminis trador de investimentos; a tributa ção deveria incentivar investimen tos de prazo mais longo; os inves tidores deveriam ser motivados a nomear membros não-executivos dos conselhos diretores para au mentar seu compromisso com as empresas nas quais investem. Tra ta-se, em resumo, de encontrar uma alavanca efetiva para um comportamento empresarial e uma dinâmica no mercado mais voltada para o longo prazo. Alguns dos pontos destacados por Hutton, tais como liberdade sindical e poder efetivo de nego ciação, sistema público de saúde ou o estatuto das universidades, são específicos da Grã-Bretanha e não se aplicam ao Brasil, mas são fundamentais para avaliar a pro posta do autor e para ajudar a en tender as políticas a serem adota das pelo novo governo trabalhista. O mesmo se aplica à Europa, pois, embora estejamos também envol vidos em um processo de integra ção econômica, o Mercosul, a pro fundidade e a extensão do proces so de unificação de mercado e de moeda naquela região não permi tem qualquer espécie de compara ção razoável. O autor conclui que, com deter minação e um pouco de sorte, os britânicos poderão desenvolver um modelo próprio de capitalis mo, "no qual as flexibilidades do mercado seriam integradas em um pano de fundo de confiança e compromisso, em que a sociedade reconhece o imperativo de distri buir riscos e rendas da maneira mais justa possível". O livro de Will Hutton vale pela visão crítica, mas equilibrada, do processo de globalização da eco nomia em um dos países mais avançados, cuja economia é cen tral para o mercado financeiro in ternacional. O autor contribui pa ra a melhor compreensão dos li mites desse processo, que não é homogêneo e irresistível, como se quer muitas vezes fazer crer (e co mo acreditam no Brasil alguns dos melhores cérebros e líderes inte lectuais e políticos, para não falar da grande imprensa). Tampouco é uma questão de tudo ou nada, que deixa aos Estados nacionais a op ção de romper radicalmente ou colocar-se à inteira mercê daquele processo, com a única opção de ceder às pressões externas e às po líticas das grandes empresas mul tinacionais e nos provedores de fi nanciamento externo. Além disso, o livro se baseia em 18 anos de resposta conservadora à globalização -o thatcheris mo-, até agora conhecido sobre tudo por seu lado de sucesso nas privatizações (7), na diminuição do papel do Estado e nos limites ao corporativismo sindical. Não faz uma discussão meramente teórica ou de princípios, mas uma avalia ção abalizada do alcance e dos li mites respectivos da globalização e da autonomia do Estado no que diz respeito à organização e ao de sempenho da economia. Hutton descreve bem os traços essenciais do neoliberalismo no país que o criou e fez dele exemplo para o desempenho de governos que esperam ser bem-sucedidos no capitalismo contemporâneo, até mesmo na América Latina. Mas o conjunto de políticas adota das, seja na desregulamentação dos mercados, na limitação do pa pel do Estado, nos incentivos aos investimentos financeiros ou nas tentativas de desmantelamento do Estado de Bem-Estar (8), forma um modelo único, o modelo that cherista, que, apesar de todas as analogias, não se confunde com o reaganismo e com outras formas do chamado ajuste neoliberal, co mo no Chile, na Argentina ou no Brasil. Por fim, trata-se de um livro propositivo, e não apenas crítico. As idéias sobre como distribuir trabalho e renda de maneira mais justa, de compartilhar coletiva mente os riscos sem coibir a ini ciativa, de preservar a competição sem impor um ônus despropor cional sobre o trabalho, concebi das em um contexto de extraordi nário avanço material e ideológico do neoliberalismo, nos permitem vislumbrar como é possível en frentar as limitações impostas pelo ajuste interno e externo de uma economia, com fundadas esperan ças de adotar políticas que prome tam uma sociedade mais próspera e mais justa. Em um determinado momento de sua história, um país pode ser avaliado não somente pelas virtu des e defeitos estruturais que exi be, mas também pelo nível dos problemas e soluções que debate em relação ao seu futuro. Até que ponto o novo trabalhismo de Tony Blair definirá uma prática, além da imagem, alternativa ao thatcheris mo ainda está por se ver, mas o livro de Hutton é, sem dúvida, um indicador otimista do estado das artes do debate britânico sobre mercado, Estado, sociedade e po líticas públicas. Entre nós, o livro tem ao menos uma utilidade: estimular a melho ra de qualidade doméstica do de bate sobre aquelas questões. Me lhora imprescindível, diante da pobreza da polarização atual, em torno de dois tipos de concepções antigas: umas de natureza inter vencionista colbertiana, outras chamadas ultraliberais, mercadis tas, neoliberais, ou o que seja. Aliás, se o debate é pobre no Bra sil, o que dizer, então, da prática das políticas públicas, que têm si do eficientes para desmontar o in tervencionismo estatal, mas tími das, até agora, na construção de uma alternativa, além de correrem o risco de reinventar um passado econômico mais newtoniano do que a economia de Adam Smith? Não é demais lembrar que indaga ções e impasses desse tipo envol vem especialmente o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, pelo menos aqueles mili tantes que se comprometeram com as esperanças de sua funda ção.


1. "The State We"re in", título de seu livro anterior, publicado em 1995 -cuja crítica ao thatcherismo granjeou enorme suces so- e que inspirou o título do atual livro, "The State to Come"; 2. No sistema eleitoral britânico, o candi dato mais votado em cada distrito é eleito independentemente de ter a maioria dos votos. Qualquer que seja a soma dos vo tos dos demais candidatos, seus eleitores não têm nenhuma representação parla mentar; 3. Uma resenha do livro feita pelo profes sor I.R. Taylor no "Times Literary Supple ment" (20/6/97) confirma a análise de Hutton a partir de pesquisas realizadas na Universidade de Salford; 4. Expressão empregada pelo autor para designar o neoliberalismo thatcherista; 5. Lembremos que Hutton trata de um país anglo-saxão que tem tradição nessa área, enquanto em países como o nosso há paixão pela tributação indireta, politi camente mais fácil, socialmente mais re gressiva e economicamente ineficiente; 6. O autor opõe "contracting capitalism" (significando a predominância de uma economia baseada na liberdade limitada de contratar e no caráter puramente indi vidual e ilimitado dos direitos de proprie dade) a uma "stakeholder economy and society", conceito desenvolvido em seto res da oposição inglesa, difícil de traduzir. O "stakeholder", por oposição ao "stoc kholder" ou "shareholder" que é o acionis ta, seria alguém que detém um interesse substancial em um empreendimento. O autor dá ênfase à diferença entre o valor puramente financeiro de uma ação para o investidor e o compromisso com o desti no do empreendimento de quem nele es tá envolvido como proprietário ou admi nistrador; 7. Sucesso que proveio de sua precocida de, de sua extensão e da melhora da efi ciência microeconômica dos setores pri vatizados, traduzida, por exemplo, na re dução de tarifas, como nos casos do gás, da eletricidade e das telecomunicações. O valor de mercado das empresas privatiza das, excluídos os investimentos pós-priva tização, elevou-se de 100 para 250 bilhões de libras em termos reais. A rigor, o resul tado mais decepcionante foi observado na área de saneamento, na qual as tarifas reais aumentaram, desde a privatização, em 33%; 8. Mais tentativas do que realização efeti va.




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