São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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LIVROS

O engajamento em cena



"Que Farei com Este Livro?",reúne três peças do escritor português José Saramago
HORACIO COSTA
especial para a Folha

Por longos anos, José Saramago publicou obras de vários gêneros literários antes de, por meio da prosa de ficção, vir a ser reconhecido como um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa contemporânea. Entre a publicação de um primeiro e malogrado romance em 1947, "Terra do Pecado" -no qual a ética-estética de um naturalismo anacrônico se imprimia, como o próprio título deixa entrever-, até a publicação de "Manual de Pintura e Caligrafia", 30 anos depois (título ousado para nomear um romance e que revela o caminho percorrido pelo autor nessas décadas), o escritor explorou alguns gêneros com variável proficiência -poesia, crônica, teatro-, além de se dedicar ao ensaio político, à crítica literária e à tradução.
A produção que o escritor desenvolveu nesse seu "período formativo" desperta hoje interesse entre público e crítica, ambos procurando nele o perfil total da obra do escritor, quando não o embrião de seus romances "adultos" (a terminologia é enganadora, já que "Levantado do Chão", seu primeiro romance apto a receber este epíteto, foi publicado quando Saramago contava 58 anos, em 1980).
Há duas maneiras, complementárias, de ler essas obras: como marcas no caminho que o escritor percorre até chegar à sua mais acertada expressão literária, e como obras inseridas não só na contextura de sua produção posterior, mas também em diálogo, ou em contraste, com o que se produzia nos respectivos gêneros literários à época de sua escritura. O leitor de Saramago -a ele está dirigido "Que Farei com Este Livro?", que reúne três de suas quatro peças de teatro- não pode ignorar nenhuma dessas vertentes para maximizar a sua economia de leitura.
Por exemplo, considerando a poesia saramaguiana, como esquecer que "Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria" (de 1966 e 1970) foram escritos quando já o influxo do neo-realismo, o movimento literário mais marcante em sua escritura, diminuíra muito em Portugal, em que pese ao valor não pequeno da experiência de lidar com a palavra poética para conformar o tom, e o tônus, da linguagem que o escritor atualmente emprega em seus romances?
O mesmo ocorre com relação ao teatro. Por um lado, "A Noite" (1975) e "Que Farei com Este Livro?" (1980), as duas peças que o escritor escreve neste período, assim como "A Segunda Vida de Francisco de Assis" (1987) -os três textos reunidos no livro que leva o nome da segunda peça-, devem ser lidas tanto à luz de sua obra romanesca quanto como obras de teatro por direito próprio.
"A Noite" se passa numa redação de um modorrento jornal lisboeta na véspera da Revolução dos Cravos, isto é, de 24 para 25 de abril de 1975. Escrita no calor da hora, a peça procura retratar a ingerência da censura na Portugal salazarista e aventar uma saída (revolucionária) para a renovação de forças da sociedade portuguesa no pós-25 de abril. Entretanto, a divisão dos funcionários do jornal entre dois grupos distanciados pela condição social e a ideologia política (o diretor e os funcionários graduados do jornal, de um lado, e os membros da produção e colaboradores menos graduados ou mais jovens, de outro), demasiado esquemática, impede que esse panorama de intenções se desenvolva no enredo.
Entre os dois grupos, Valadares, chefe de redação, a cavalo dos seus 40 anos e dividido entre sua consciência liberalizante e seus compromissos laborais, é a única personagem que, na melhor tradição dramática, demonstra um conflito interno estruturador, ainda que represente um "tipo" -o do pseudo-intelectual pequeno-burguês- execrado ao longo do texto.
Assim, sofrendo talvez pela imposição de um horizonte didático circunstancial, "A Noite" responde mais aos chamados do engajamento político do autor que às promessas de sua carreira literária que mais tarde se concretizariam. Por outro lado, a concepção da obra destoa grandemente do teatro dos anos 60 e 70, em maior ou menor escala afetado pelo experimentalismo próprio da época; de fato, não é demais associar a tateante "A Noite" ao primeiro romance do autor, acima recordado.
Ainda assim, os cinco anos que separam as duas primeiras peças de teatro de Saramago significam um período relativamente curto de auto-superação, se comparado ao que medeia seus dois primeiros romances. "Que Farei com Este Livro?" apresenta uma fatura já acabada, como texto de teatro, além de um crivo de indiscutível originalidade, especialmente tendo em vista o desafio que representa dizer algo novo sobre um tema tão magno como Luís de Camões, que veio inspirando gerações ininterruptas de dramaturgos portugueses, desde o "Camões" de Almeida Garrett, de 1825.
O acerto de Saramago ao eleger o poeta como matéria de sua peça começa por ter privilegiado, sobre sua vida, sua obra: "Que Farei com Este Livro?" escapa dos biografemas mais óbvios e acompanha a história da publicação d'"Os Lusíadas", daí valendo não só como teatro de inspiração histórica, mas também como um estudo aplicado à gênese de uma obra importante. Por outro lado, ao voltar nesta peça a problematizar a intromissão do espírito censor na história lusa, Saramago segue de perto a linha dos pensadores do século 19 português, como o Antero de Quental da conferência "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares", de 1870.
O Camões de Saramago, longe da retórica oficial que esvaziou a figura do poeta como "o espírito da raça", sem deixar de ser humanamente complexo, aponta para um valor ético central: o de afirmação intrínseca do fato literário como agente de câmbio social, simbolizado pelo poema sobre cujo destino a personagem se pergunta no final da peça.
Se em "Que Farei com Este Livro?" Saramago "descobre" a rentabilidade literária da matéria histórica que desenvolveria em sua prosa de ficção, em "A Segunda Vida de Francisco de Assis" o escritor estende para a dramaturgia o raciocínio alegórico que embasa muitos de seus romances mais recentes. O enredo trata do regresso -a "segunda vida"- do "Poverello" de Assis no mundo contemporâneo, corporativo e impiedoso.
Pouco a pouco, Francisco percebe que seu intento de retomar as rédeas do movimento que fundara em sua primeira vida em nada resultará, não apenas devido à descaracterização que a ordem religiosa sofrera ao se transformar em "ordem empresarial", mas principalmente porque a mensagem de pobreza que dera força à primeira, e que sobrevive como artifício retórico na segunda, esconde uma mentira de base: o elogio da pobreza mesma, inumana e perversa. Como o Camões de "Que Farei com Este Livro?", a personagem central de "A Segunda Vida de Francisco de Assis" termina por transmitir ao público uma mensagem central, que apela à participação e ao comprometimento.
O percurso do Saramago dramaturgo acompanha o do romancista, em sua aproximação crescente a uma dicção mais controlada e direta, mais "óssea". Sem dúvida, a leitura de seu teatro nos apresenta um dos dramaturgos pós-brechtianos mais consistentes, em sua linguagem e ideologia, da literatura portuguesa contemporânea. A publicação de seu teatro importa tanto pelo que nos revela dos móveis e motivos de sua obra romanesca, quanto pela afirmação nele implícita de uma postura autoral contrastante com muito do que se escreve para teatro hoje em dia, dentro e fora de Portugal.
Seria interessante poder assistir a encenações dessas peças no Brasil, ocasião em que provavelmente os diretores que delas se encarregassem poderiam minorar no jogo cênico o predomínio da palavra sobre o movimento, perceptível em todas elas, apesar das precisas indicações do autor.
Se, por tudo o que foi dito, a publicação de "Que Farei com Este Livro?" é bem-vinda, não deixa de causar estranheza a exclusão, nela, de "In Nomine Dei", peça publicada em 1993 e encenada na Alemanha, e também de um estudo introdutório que situasse o teatro de José Saramago para o leitor, à semelhança do posfácio de Luiz Francisco Rebello incluído na primeira edição da peça "Que Farei com Este Livro?" em Portugal.


A OBRA
Que Farei com Este Livro? - José Saramago. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 224 págs. R$ 25,00.




Horacio Costa é crítico, poeta e tradutor.



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