São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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Em "A Ilha", Aldous Huxley recria a utopia plena ao retratar uma sociedade de homens livres da angústia e em harmonia perfeita

A pílula da felicidade


A trama do romance aponta, sutilmente, os perigos existenciais que o homem sempre temeu e sempre namora: o fascínio da loucura


Isaias Pessotti
especial para a Folha

Se as obras literárias marcantes refletem, de algum modo, as tendências dominantes na cultura de seu tempo, este romance de Huxley traz a marca, quase emblemática, das tendências que desaguariam nos movimentos rebeldes dos anos 60 do século 20. Reflete a chama utópica que inflamava, com Marcuse à frente, o ímpeto renovador chamado "contestação", que era, então, uma ameaça. Hoje, é quase uma saudade. Era a recusa das injunções de qualquer autoridade, para dar lugar a um mundo novo: de homens e mulheres livres. Livres do quê? Dos controles morais, das restrições sexuais, da ordem econômica e social vigente. Uma utopia de vôo curto. Pois rejeitar a cultura era um gesto cultural, pregar a recusa das doutrinas era também doutrinar. Negar os valores e crenças dominantes era, de algum modo, substituir um ordenamento sociocultural por outro. Seria, em vez da libertação, uma troca de servidões.

Apreender o real
A liberdade que fundaria o novo mundo deveria ser mais radical: o homem precisava libertar-se das formas de sentir e de pensar impostas pelas condições biológicas e culturais de sua formação original. Deveria despojar-se de seus apegos, projetos pessoais ou paixões, fontes de angústias e frustrações. O rumo era claro: "Apega-te, almeja, luta por algo e viverás num inferno. Desapega-te e terás a paz". O homem feliz deveria ser imune às ambições, ao desejo, às paixões. E, mesmo, a toda cooptação ideológica, a toda utopia. Capaz de apreender e fruir diretamente o real, sem as distorções dos hábitos mentais e as categorias estreitas da linguagem. É esse o homem que habita Pala, no romance "A Ilha", de Aldous Huxley (1894-1963), uma ilha de solidariedade e felicidade plenas. Onde a inseminação artificial, refinados diagnósticos pré-natais e controle genético garantem uma população sadia e produtiva. A liderança quase paternal de alguns guias iluminados, somada a técnicas de ioga e de hipnose, assegura a tranquilidade e a harmonia dos habitantes. São homens serenos, livres da angústia. Seja a das paixões, a da vida, graças a um conhecimento superior, sem erros. Isento das enganosas categorias da razão e da linguagem, ele permite apreender e vivenciar diretamente o real. É o método da "moksha", uma "pílula da verdade e da beleza", que "liberta do cativeiro do próprio ego". O acesso à verdade pura, sem as traições da palavra, sem as algemas da razão: eis a via da felicidade que Pala assegura aos seus habitantes. Eles "deixaram de ser o que ignorantemente pensavam ser e se transformaram no que realmente são". Uma comunidade de homens serenos, operosos e em plena harmonia.

Nova identidade
Mas o conhecimento direto do real só se atinge por meio da "moksha"; a paz perfeita é a da abdicação das paixões e dos projetos pessoais. O acesso à nova identidade nasce da recusa do "eu", do seu velho ego, agora execrado como produto viciado pelas ilusórias matrizes da racionalidade e da palavra. Abdicar de seu "eu" é a chave da felicidade idílica de Pala.
Essa trama do romance, claramente alusiva à difusão eufórica dos alucinógenos, aponta, sutilmente, os perigos existenciais que o homem sempre temeu e sempre namora: a inquietante sedução do irracional, a tentação do mergulho no nada, o fascínio da loucura. O que Huxley aponta é a condição trágica do homem. Condenado à racionalidade, à busca impotente da certeza e da serenidade. Condenado, portanto, à angústia.
Que é a marca da espécie e, por isso, não se dilui com a fuga da consciência. Não se dissolve com o delírio. Diante do conflito entre essa angústia e a fuga alienante dela (como a da felicidade "inevitável" de Pala), a solução possível seria a da coragem estóica (vista com desprezo em Pala), que enfrenta a fatalidade da impotência com a resignação e com a "virtude", ou a do heroísmo ético do homem existencial, que funda sua "existência" (e sua identidade como um "eu") na sua própria contradição de "caniço que pensa".

Colônia de cupins
Mas, armados de "moksha", os homens felizes de Pala não precisam da virtude estóica para enfrentar a fatalidade e, ademais, despojados de seus egos, se eximem do destino penoso de "existir". Como numa tranquila e operosa colônia de cupins, até felizes, talvez, quando o desastre vier, nenhum deles fará nem poderá fazer coisa alguma para salvar seu paraíso. Como a indicar que cegar-se para o sentido trágico da vida é o caminho certo para a tragédia de cada um.
O desastre final de Pala, filosofias à parte, entristece. E aí está o toque de Huxley: obviamente utópica, a "ilha" é, contudo, o sonho de cada um. A aspiração nostálgica de uma liberdade serena, quase intra-uterina. Possível apenas em alguma espécie de ilha, acessível apenas por meio de algum tempo de abandono, irresponsável, de si mesmo.


Isaias Pessotti é ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto (SP). É autor de, entre outros, "Os Nomes da Loucura" (ed. 34).



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