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Em "A Ilha", Aldous Huxley recria a utopia plena ao retratar
uma sociedade de homens livres da angústia e em harmonia perfeita
A pílula da felicidade
A trama do
romance aponta,
sutilmente, os
perigos existenciais
que o homem
sempre temeu e
sempre namora:
o fascínio da loucura
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Isaias Pessotti
especial para a Folha
Se as obras literárias marcantes refletem, de algum modo, as tendências dominantes na cultura de seu
tempo, este romance de Huxley
traz a marca, quase emblemática, das
tendências que desaguariam nos movimentos rebeldes dos anos 60 do século
20. Reflete a chama utópica que inflamava, com Marcuse à frente, o ímpeto renovador chamado "contestação", que era,
então, uma ameaça. Hoje, é quase uma
saudade.
Era a recusa das injunções de qualquer
autoridade, para dar lugar a um mundo
novo: de homens e mulheres livres. Livres do quê? Dos controles morais, das
restrições sexuais, da ordem econômica
e social vigente. Uma utopia de vôo curto. Pois rejeitar a cultura era um gesto
cultural, pregar a recusa das doutrinas
era também doutrinar. Negar os valores
e crenças dominantes era, de algum modo, substituir um ordenamento sociocultural por outro. Seria, em vez da libertação, uma troca de servidões.
Apreender o real
A liberdade que
fundaria o novo mundo deveria ser mais
radical: o homem precisava libertar-se
das formas de sentir e de pensar impostas pelas condições biológicas e culturais
de sua formação original. Deveria despojar-se de seus apegos, projetos pessoais
ou paixões, fontes de angústias e frustrações. O rumo era claro: "Apega-te, almeja, luta por algo e viverás num inferno.
Desapega-te e terás a paz".
O homem feliz deveria ser imune às
ambições, ao desejo, às paixões. E, mesmo, a toda cooptação ideológica, a toda
utopia. Capaz de apreender e fruir diretamente o real, sem as distorções dos hábitos mentais e as categorias estreitas da
linguagem.
É esse o homem que habita Pala, no romance "A
Ilha", de Aldous Huxley
(1894-1963), uma ilha de
solidariedade e felicidade
plenas. Onde a inseminação artificial, refinados
diagnósticos pré-natais e
controle genético garantem uma população sadia e produtiva. A liderança quase paternal de alguns guias iluminados,
somada a técnicas de ioga e de hipnose,
assegura a tranquilidade e a harmonia
dos habitantes. São homens serenos, livres da angústia. Seja a das paixões, a da
vida, graças a um conhecimento superior, sem erros.
Isento das enganosas categorias da razão e da linguagem, ele permite apreender e vivenciar diretamente o real. É o
método da "moksha", uma "pílula da
verdade e da beleza", que "liberta do cativeiro do próprio ego".
O acesso à verdade pura, sem as traições da palavra, sem as algemas da razão:
eis a via da felicidade que Pala assegura
aos seus habitantes. Eles "deixaram de
ser o que ignorantemente pensavam ser
e se transformaram no que realmente
são". Uma comunidade de homens serenos, operosos e em plena harmonia.
Nova identidade
Mas o conhecimento direto do real só se atinge por
meio da "moksha"; a paz perfeita é a da
abdicação das paixões e dos projetos
pessoais. O acesso à nova identidade
nasce da recusa do "eu", do seu velho
ego, agora execrado como produto viciado pelas ilusórias matrizes da racionalidade e da palavra. Abdicar de seu "eu" é
a chave da felicidade idílica de Pala.
Essa trama do romance, claramente
alusiva à difusão eufórica dos alucinógenos, aponta, sutilmente, os perigos existenciais que o homem sempre temeu e
sempre namora: a inquietante sedução
do irracional, a tentação do mergulho no
nada, o fascínio da loucura. O que Huxley aponta é a condição trágica do homem. Condenado à racionalidade, à
busca impotente da certeza e da serenidade. Condenado, portanto, à angústia.
Que é a marca da espécie e, por isso,
não se dilui com a fuga da consciência.
Não se dissolve com o delírio. Diante do
conflito entre essa angústia e a fuga alienante dela
(como a da felicidade
"inevitável" de Pala), a solução possível seria a da
coragem estóica (vista
com desprezo em Pala),
que enfrenta a fatalidade
da impotência com a resignação e com a "virtude", ou a do
heroísmo ético do homem existencial, que funda sua "existência" (e
sua identidade como um "eu") na
sua própria contradição de "caniço
que pensa".
Colônia de cupins
Mas, armados de "moksha", os homens felizes
de Pala não precisam da virtude estóica para enfrentar a fatalidade e,
ademais, despojados de seus egos, se
eximem do destino penoso de "existir". Como numa tranquila e operosa
colônia de cupins, até felizes, talvez,
quando o desastre vier, nenhum deles fará nem poderá fazer coisa alguma para salvar seu paraíso. Como a
indicar que cegar-se para o sentido
trágico da vida é o caminho certo para a tragédia de cada um.
O desastre final de Pala, filosofias à
parte, entristece. E aí está o toque de
Huxley: obviamente utópica, a "ilha"
é, contudo, o sonho de cada um. A
aspiração nostálgica de uma liberdade serena, quase intra-uterina. Possível apenas em alguma espécie de
ilha, acessível apenas por meio de algum tempo de abandono, irresponsável, de si mesmo.
Isaias Pessotti é ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP,
em Ribeirão Preto (SP). É autor de, entre outros, "Os Nomes da Loucura" (ed. 34).
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