São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2007

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+ Cinema

Rumos do cinema

Revival do documentári o e da narrativa em 1ª pessoa sugere o nascimento de um novo realismo

FERNÃO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

P ara a surpresa de muitos, o cinema se mostrou uma forma narrativa estável, que se adaptou bem às novas mídias digitais, sem maiores transformações em sua constituição. Falar em "fim do cinema" hoje beira o nonsense ou a boutade de efeito. O cinema sobrevive engolindo novas tecnologias em sua forma narrativa, e não o contrário.
Mas, além de persistir, o que faz do cinema arte contemporânea por excelência? A modernidade no cinema é tardia. Um ponto de vista polêmico diz que ela não chega com a tradução cinematográfica das vanguardas plásticas, como ocorre no construtivismo soviético, no expressionismo alemão, no "impressionismo" francês de [Jean] Epstein, [Germaine] Dulac, Abel Gance.
Se toda modernidade embute um retorno do sujeito que enuncia sobre si, a verdadeira modernidade cinematográfica surge nos anos 40, tendo Rossellini e Welles ("Cidadão Kane") como avatares. Rossellini, por desmontar a dramaturgia clássica, abrindo a tomada para a encenação do mundo.
Welles, por apontar pioneiramente em direção a si próprio, ao cinema ("News on the March") e ao buraco negro que fica no âmago do narrar (Rosebud!). A nouvelle vague, como primeira vanguarda propriamente cinematográfica, terá esses dois pilares como referência, embora sua descoberta se deva a uma geração anterior (Bazin e a crítica do "Cahiers du Cinéma" do pós-guerra).
Os "jovens turcos" (Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette) radicalizam o horizonte, fundando no cinema a dimensão intertextual (de cinema para cinema), intrínseca ao corte moderno. São eles que descobrem a "modernidade" de (o retorno sobre) "autores" clássicos que antes simplesmente não existiam: Hitchcock, Hawks, Ray, Fuller etc. Mas sem nunca abandonar as lições de Rossellini ("Viagem à Itália"). Quem não souber onde os dois lados (Welles/Rossellini) dão a mão, não fecha o círculo da nouvelle vague e do cinema moderno.
E é dentro desse círculo que cineastas como Bergman e Antonioni encontraram espaço para começar a respirar.

"Deus e o Diabo"
No caso brasileiro, seguindo a lógica acima, a modernidade chega com Glauber Rocha, em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1963) -e não com "Rio Quarenta Graus" (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e muito menos com "Limite" (1931), de Mário Peixoto-, marcando o momento em que o cinema brasileiro olha para fora e para si, instaurando na narrativa fílmica a fissura da percepção deglutidora do discurso de outrem.
Cordel, Brecht, faroeste, messianismo, tudo entra no liquidificador de "Deus e o Diabo", em que já estão os ingredientes da mistura que dará liga ao tropicalismo. O passo seguinte, no cinema nacional, será a boca pantagruélica do cinema marginal, que digere até gêneros distantes do primeiro cinema novo (na verdade, só Glauber dá o passo moderno), como a chanchada e a ficção científica ou a própria mídia ("O Bandido da Luz Vermelha").
O apetite intertextual da modernidade dos anos 60 vai se dilatando, se dilatando até estourar. Ao estourar, acaba cortando o modernismo com o pós, instaurando uma espécie de modernismo de si mesmo. No pós-modernismo, as cascatas de citações e referências proliferam, junto da imagem da própria imagem.
Quando o cinema não pode mais falar sobre o mundo (o braço Rossellini atrofia subitamente), ele se debruça sobre si e sua história, criando a tendência predominante nas duas últimas décadas. De "Kill Bill" a "Shrek", passando por De Palma, Carax, Kar-wai, Ferrara, Lynch, a cascata da pós-modernidade amplia cada vez mais seu espaço, com níveis de qualidade também distintos. Ocupa o centro, inclusive, de cinematografias recentes como a coreana (Chan Wook) e, desde o início, a chinesa de Hong Kong (Bruce Lee, Jackie Chan, John Woo).
O que sobra do eterno retorno do moderno, quando as grandes narrativas sobre o mundo não conseguem mais fechar a conta (Lyotard) e a modernidade não fixa mais a pertinência da práxis? Na condição periférica do Brasil, a ficha não caiu, e o cinema contemporâneo nacional ainda pode fazer a elegia da alteridade (o popular) e castigar de culpa o mesmo que enuncia.

Sétima arte no museu
E o que enxergamos para além do sopro pós-moderno, que parece se esvair? De um lado, o cinema chega ao espaço do museu, como forma livre limite onde caminha um novo ponto de flexão da narrativa fílmica. Não aquele ponto que já foi instalação cinema videoarte, mas agora somente instalação-cinema. Exposição Hitchcock, exposição Cocteau, exposição Disney, exposição Godard: museus franceses e nova-iorquinos tentam absorver a medida do olhar cinema no metro da narrativa cinematográfica autoral, flexionado pela instituição museu. "24 Hour Psycho" (Douglas Gordon): o supra-sumo do thriller hitchcockiano, agora no tempo-museu.
Mas o esgotamento do pós-modernismo nos revela outra surpresa. Ao esvaziar o lado moderno montado sobre o verniz clássico, o braço Rossellini volta a bater forte. A parte mais instigante do cinema contemporâneo respira real, ou melhor, respira o mundo que transcorre na tomada. Kiarostami, Winterbottom, Varda, em outro corte Straub-Huillet, exploram a intensidade do transcorrer na tomada da câmera, aberta em sua indeterminação. Stephen Frears mantém acesa a boa chama do realismo social inglês (como também Ken Loach).
O forte renascimento do documentário e a descoberta da narrativa na primeira pessoa (minicâmeras no cotidiano, YouTube etc.), aponta para uma nova onda realista que pode engolir a pós-modernidade do patamar da hiperviolência, onde patinam talentos como Mann, Verhoeven, Tarantino.
No cinema contemporâneo surge espaço para um novo realismo, colado nas potencialidades mais íntimas da máquina-câmera na tomada, no seu modo de conformar a matéria da narrativa cinematográfica.


FERNÃO PESSOA RAMOS é professor no departamento de cinema da Unicamp.


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