|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Cinema
Rumos do cinema
Revival do documentári o e da narrativa em 1ª pessoa sugere o nascimento de um novo realismo
FERNÃO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
ara a surpresa de
muitos, o cinema se
mostrou uma forma
narrativa estável, que
se adaptou bem às
novas mídias digitais, sem
maiores transformações em
sua constituição.
Falar em "fim do cinema"
hoje beira o nonsense ou a boutade de efeito. O cinema sobrevive engolindo novas tecnologias em sua forma narrativa, e
não o contrário.
Mas, além de persistir, o que
faz do cinema arte contemporânea por excelência? A modernidade no cinema é tardia.
Um ponto de vista polêmico
diz que ela não chega com a tradução cinematográfica das
vanguardas plásticas, como
ocorre no construtivismo soviético, no expressionismo alemão, no "impressionismo"
francês de [Jean] Epstein,
[Germaine] Dulac, Abel Gance.
Se toda modernidade embute um retorno do sujeito que
enuncia sobre si, a verdadeira
modernidade cinematográfica
surge nos anos 40, tendo Rossellini e Welles ("Cidadão Kane") como avatares. Rossellini,
por desmontar a dramaturgia
clássica, abrindo a tomada para
a encenação do mundo.
Welles, por apontar pioneiramente em direção a si próprio, ao cinema ("News on the
March") e ao buraco negro que
fica no âmago do narrar (Rosebud!). A nouvelle vague, como
primeira vanguarda propriamente cinematográfica, terá
esses dois pilares como referência, embora sua descoberta
se deva a uma geração anterior
(Bazin e a crítica do "Cahiers
du Cinéma" do pós-guerra).
Os "jovens turcos" (Godard,
Truffaut, Rohmer, Rivette) radicalizam o horizonte, fundando no cinema a dimensão intertextual (de cinema para cinema), intrínseca ao corte moderno. São eles que descobrem
a "modernidade" de (o retorno
sobre) "autores" clássicos que
antes simplesmente não existiam: Hitchcock, Hawks, Ray,
Fuller etc. Mas sem nunca
abandonar as lições de Rossellini ("Viagem à Itália").
Quem não souber onde os
dois lados (Welles/Rossellini)
dão a mão, não fecha o círculo
da nouvelle vague e do cinema
moderno.
E é dentro desse círculo que
cineastas como Bergman e Antonioni encontraram espaço
para começar a respirar.
"Deus e o Diabo"
No caso brasileiro, seguindo
a lógica acima, a modernidade
chega com Glauber Rocha, em
"Deus e o Diabo na Terra do
Sol" (1963) -e não com "Rio
Quarenta Graus" (1955), de
Nelson Pereira dos Santos, e
muito menos com "Limite"
(1931), de Mário Peixoto-,
marcando o momento em que o
cinema brasileiro olha para fora e para si, instaurando na narrativa fílmica a fissura da percepção deglutidora do discurso
de outrem.
Cordel, Brecht, faroeste,
messianismo, tudo entra no liquidificador de "Deus e o Diabo", em que já estão os ingredientes da mistura que dará liga
ao tropicalismo.
O passo seguinte, no cinema
nacional, será a boca pantagruélica do cinema marginal,
que digere até gêneros distantes do primeiro cinema novo
(na verdade, só Glauber dá o
passo moderno), como a chanchada e a ficção científica ou a
própria mídia ("O Bandido da
Luz Vermelha").
O apetite intertextual da modernidade dos anos 60 vai se dilatando, se dilatando até estourar. Ao estourar, acaba cortando o modernismo com o pós,
instaurando uma espécie de
modernismo de si mesmo.
No pós-modernismo, as cascatas de citações e referências
proliferam, junto da imagem da
própria imagem.
Quando o cinema não pode
mais falar sobre o mundo (o
braço Rossellini atrofia subitamente), ele se debruça sobre si
e sua história, criando a tendência predominante nas duas
últimas décadas.
De "Kill Bill" a "Shrek", passando por De Palma, Carax,
Kar-wai, Ferrara, Lynch, a cascata da pós-modernidade amplia cada vez mais seu espaço,
com níveis de qualidade também distintos.
Ocupa o centro, inclusive, de
cinematografias recentes como
a coreana (Chan Wook) e, desde o início, a chinesa de Hong
Kong (Bruce Lee, Jackie Chan,
John Woo).
O que sobra do eterno retorno do moderno, quando as
grandes narrativas sobre o
mundo não conseguem mais
fechar a conta (Lyotard) e a
modernidade não fixa mais a
pertinência da práxis?
Na condição periférica do
Brasil, a ficha não caiu, e o cinema contemporâneo nacional
ainda pode fazer a elegia da alteridade (o popular) e castigar
de culpa o mesmo que enuncia.
Sétima arte no museu
E o que enxergamos para
além do sopro pós-moderno,
que parece se esvair?
De um lado, o cinema chega
ao espaço do museu, como forma livre limite onde caminha
um novo ponto de flexão da
narrativa fílmica. Não aquele
ponto que já foi instalação cinema videoarte, mas agora somente instalação-cinema.
Exposição Hitchcock, exposição Cocteau, exposição Disney, exposição Godard: museus
franceses e nova-iorquinos
tentam absorver a medida do
olhar cinema no metro da narrativa cinematográfica autoral,
flexionado pela instituição museu. "24 Hour Psycho" (Douglas Gordon): o supra-sumo do
thriller hitchcockiano, agora no
tempo-museu.
Mas o esgotamento do pós-modernismo nos revela outra
surpresa. Ao esvaziar o lado
moderno montado sobre o verniz clássico, o braço Rossellini
volta a bater forte.
A parte mais instigante do cinema contemporâneo respira
real, ou melhor, respira o mundo que transcorre na tomada.
Kiarostami, Winterbottom,
Varda, em outro corte Straub-Huillet, exploram a intensidade do transcorrer na tomada da
câmera, aberta em sua indeterminação.
Stephen Frears mantém acesa a boa chama do realismo social inglês (como também Ken
Loach).
O forte renascimento do documentário e a descoberta da
narrativa na primeira pessoa
(minicâmeras no cotidiano,
YouTube etc.), aponta para
uma nova onda realista que pode engolir a pós-modernidade
do patamar da hiperviolência,
onde patinam talentos como
Mann, Verhoeven, Tarantino.
No cinema contemporâneo
surge espaço para um novo realismo, colado nas potencialidades mais íntimas da máquina-câmera na tomada, no seu modo de conformar a matéria da
narrativa cinematográfica.
FERNÃO PESSOA RAMOS é professor no departamento de cinema da Unicamp.
Texto Anterior: Gumbrecht analisa estética do esporte Próximo Texto: + Livros: Dentro do bunker Índice
|