São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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"O SANTO REICH", DE RICHARD STEIGMANN-GALL, INVESTIGA COMO OS NAZISTAS INCORPORARAM CONCEPÇÕES CRISTÃS EM SUAS FORMULAÇÕES TEÓRICAS DURANTE OS ANOS 20 E 30, EM DETRIMENTO DE VALORES PAGÃOS E BÁRBAROS

A CRUZ TORTA

Reprodução
"Normalização ", fotomontagem de John Heartfield


Marcelo Coelho
Colunista da Folha

É preciso ter muito estômago para enfrentar as trezentas e tantas páginas deste livro. Analisando as relações entre nazismo e cristianismo, o historiador Richard Steigmann-Gall, da Universidade Estadual de Kent (EUA), embrenhou-se no mais repulsivo labirinto da extrema direita religiosa alemã no período da República de Weimar [1918-33]; avançou pelas opiniões privadas de Hitler, Goering e Goebbels acerca dos Evangelhos e discute qual o peso dos adeptos de um "paganismo teutônico" -Himmler e Bormann, por exemplo- no quadro mais amplo da militância nazista. Perto das opiniões que se registram em "O Santo Reich", o próprio Hitler parece um moderado, um sensato, um iluminista. Tomem-se, por exemplo, as teses de um certo Partido Libertador do Povo Alemão, o DVFP, que por volta de 1930 acusava Hitler de traição: era um líder tolerante demais com o catolicismo, tentava aliar-se a Mussolini, que por sua vez não combatia o papa, que estava naturalmente aliado aos jesuítas, que na verdade dependiam do sustento de um financista, o "judeu Olivetti". Havia também quem considerasse que a "grande conspiração judaica" para dominar o mundo era apenas a fachada de outra conspiração, mais secreta, dominada pelo Dalai Lama. O que justifica a incursão do autor nesse mundo confuso e nauseabundo, habitado por figuras insignificantes dentro da própria organização nazista? O objetivo de Steigmann-Gall é provar que, ao contrário do que se acredita em geral, os princípios "pagãos" e anticristãos tiveram pouco peso no nazismo. Embora figuras importantes como Himmler e Heydrich sustentassem, dentro dos quadros da SS, convicções avessas ao cristianismo e nostálgicas de um passado teutônico bárbaro, essas idéias não eram levadas muito a sério pelos demais líderes do partido. Hitler ironiza as preocupações arqueológicas do comandante da SS: "Já não basta os romanos estarem construindo grandes prédios quando nossos antepassados ainda moravam em cabanas de barro; agora Himmler está começando a desenterrar essas aldeias de cabanas de barro e a se entusiasmar com cada caco de louça e machado de pedra que encontra". Himmler também reclamava da ação nefasta dos "papas judeus".

O Führer, um "civilizado"
Longe dessas especulações, o Führer se considerava (a sério ou não, difícil saber) um "civilizado". Preconizava que, no tocante à religião, o nazismo ficasse restrito a um "cristianismo positivo", ou seja, um cristianismo que não entrasse nas divergências teológicas entre protestantes e católicos, zelando pela separação entre igreja e Estado e priorizando os pontos capazes de unificar o espírito da nação alemã. Essa, afinal, seria a linha predominante do partido, a despeito das variações individuais de opinião. Hitler e os nazistas, seguidores de Cristo? Sim, pois Cristo era "o primeiro anti-semita". Expulsando os vendilhões do templo, ele mostrava sua discordância diante do "materialismo judaico". Mas Jesus não era judeu? Claro que não, gritam todos em uníssono, a partir das teorias do racista Houston Chamberlain, genro de Richard Wagner. O cristianismo nazista era assim sintetizado por Goebbels: "Cristo: o princípio do amor. Marx: o princípio do ódio". O principal propagandista nazi continua: "Cristo não pode ter sido judeu. Não preciso provar o que estou dizendo por meio da ciência ou da erudição. Este é um fato indiscutível!". Jesus era apresentado como uma espécie de herói alemão, "loiro e esbelto". Inconcebível que tivesse "pés chatos e nariz aquilino", berra outro teórico. No nazismo a estupidez não tem limites, e a sensatez parece ainda pior. Richard Steigmann-Gall não parece saber nunca o ponto onde interromper sua demonstração. Os absurdos e os fatos se acumulam de maneira tediosa. O autor sente uma atração irreprimível pelas figuras menores do partido; pelas pequenas intrigas e calúnias trocadas entre fanáticos e bajuladores dentro da hierarquia. Não seria necessário, por exemplo, citar as opiniões ultracristãs de Gottfried Krummacher, único líder do sexo masculino (por seis meses) da Organização Nacional-Socialista das Mulheres, que era por sua vez ironizado por Josef Grohé, "gauleiter" da cidade natal de Krummacher, pelo excesso de santimônia. Com o passar do tempo, as relações entre as igrejas e o poder nazista se deterioram; mais em função da rígida separação entre igreja e Estado defendida pelos nazistas, argumenta Steigmann-Gall, do que por incompatibilidades confessionais. Certo, um católico fervoroso como Josef Wagner, responsável pela administração da Westfália e da Silésia durante os anos 30, terminou sendo expulso do partido: observe-se que seus filhos estudavam em colégios de freiras e sua mulher havia se ajoelhado diante do papa numa recepção no Vaticano. Contudo mesmo o mais anticlerical dos nazistas, Martin Bormann, quando teve plenos poderes na Polônia para administrar a política religiosa do partido, não extinguiu as igrejas -mantendo-as, é claro, sob controle de ferro, expropriando seus bens e combatendo os mosteiros, "porque trabalhavam contra a moralidade alemã".

Boa-fé e oportunismo
As conseqüências dessa investigação exaustiva não são fáceis de dimensionar. Os nazistas tinham poder para definir e redefinir o que bem quisessem; seu "cristianismo" corresponde a muito pouco do que se possa cotidianamente entender pelo termo. É certo que, nessas condições, cristianismo e nazismo não eram incompatíveis: nem para padres nem para católicos nem para protestantes nem para alemães comuns nem para líderes hitleristas. Seria surpreendente se houvesse incompatibilidade total, a despeito dos também importantes focos de objeção católica ao nazismo.
O principal problema é que, no caso de inúmeros textos e pronunciamentos nazistas, talvez seja tarefa inútil distinguir entre o que é pura propaganda e convicção sincera, entre oportunismo e boa-fé. Diferenças desse tipo, numa sociedade totalitária e enlouquecida, tendem a não fazer muito sentido.
O estudo de Steigmann-Gall destaca, paradoxalmente, o relativo espaço de liberdade a respeito desses assuntos no interior dos quadros hitleristas. Mais do que pôr o cristianismo sob suspeita de anti-semitismo (o que seria de todo modo uma banalidade), o livro tem o efeito terrível de atribuir ao nazismo uma certa liberalidade e tolerância religiosa. Claro que essa está longe de ser a intenção de Steigmann-Gall, empenhado sobretudo em mostrar de que turvo caldo de cultura cristã teria surgido a intolerância nazista. Mas este leitor, sufocado pela massa de informações acerca dos mais delirantes debates e dos mais infames matizes de opinião dentro do partido, diria que Steigmann-Gall chegou excessivamente perto do seu objeto de estudo.


O Santo Reich
355 págs., R$ 60,00 de Richard Steigmann-Gall. Tradução de Claudia Gerpe Duarte. Ed. Imago (r. da Quitanda, 52, 8º andar, CEP 20011-030, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2242-0627).



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