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BRASIL 500 D.C.
Há várias maneiras de compensar as perversões do modelo federativo do
"império brasileiro"
Além de Tordesilhas
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
O irreverente Evaldo Cabral de
Mello costuma escandalizar ouvintes e leitores com a afirmação
de que muitos de nossos problemas estariam resolvidos, ou não
existiriam, se nos tivéssemos
mantido dentro dos limites do
Tratado de Tordesilhas.
Para relembrar, esse tratado, assinado por Portugal e Espanha
em 1494, dividia entre os dois países o novo mundo recém-revelado ao Ocidente por Colombo.
Projetado sobre um mapa de hoje, o meridiano do tratado cortaria o Brasil de norte a sul, partindo
de Belém do Pará até Laguna, em
Santa Catarina. Seria uma Belém-Brasília espichada em linha reta
para o sul. O Brasil de Tordesilhas
sonhado pelo grande historiador
incluiria apenas as regiões Nordeste e Sudeste, 30% do elefante
geográfico de 8,5 milhões de km2
que nos tornamos.
A irreverência atinge dois tabus
nacionais, a unidade e a federação. Os 500 anos da chegada dos
portugueses fornecem boa oportunidade para enfrentar tabus.
Enfrento-os absolvendo Evaldo
de qualquer responsabilidade pelo que vou escrever. Faz parte de
nossa auto-imagem ufanista dizer
que o país é grande, grandioso,
continental. Politicamente, o
complexo de grandeza foi sempre
traduzido na idéia de império.
Antes que alguém grite "monarquista!", esclareço que império é
tomado aqui no sentido de unidade político-jurídico-administrativa ampla e complexa, como eram,
por exemplo, os impérios romano, austro-húngaro, britânico, soviético. O conceito é compatível
com qualquer sistema político.
O complexo de império foi herança de Portugal. Lá o império
foi glorioso enquanto durou. Mas
durou pouco, menos de um século. Soçobrou em 1578, quando o
exército de d. Sebastião foi massacrado na batalha de Alcácer Quibir, derrota acompanhada dois
anos depois pela perda da soberania nacional nas mãos de Felipe 2º
de Espanha. O império português
sobreviveu inicialmente nos sonhos milenaristas, sebastianistas
ou não. Depois vestiu a roupa da
nostalgia, como observa com lucidez Eduardo Lourenço em "Mitologia da Saudade".
Feito saudade em Portugal, o
sonho do império veio para o Brasil nos navios que trouxeram d.
João. Na visão do príncipe e de alguns de seus estadistas, sobretudo
d. Rodrigo de Sousa Coutinho, assim como de muitos brasileiros, a
grandeza e a riqueza da colônia
tornavam viável a realização do
sonho do lado de cá do Atlântico.
Apoiada até mesmo pela maçonaria de Gonçalves Ledo, a idéia se
impôs com naturalidade e foi
concretizada em 1822, graças ao
peso da liderança de José Bonifácio. O novo país não seria república, mas também não seria reino.
Seria um império. Não teria rei,
teria imperador. Enquanto, para
desgosto de Bolívar, o império
desmoronava na América espanhola, ele se reconstituía nas terras brasileiras. Entre as razões para a adoção da solução imperial e
monárquica estava sem dúvida a
preocupação em manter a ordem
social (leia-se escravidão). Mas estava também o sonho de grandeza. José Bonifácio era contra a escravidão e, ao mesmo tempo, o
maior entusiasta do império.
Na conjuntura inaugurada pela
revolta liberal do Porto, em 1820,
a idéia de império aplicava-se tanto às relações externas do país como ao nexo entre suas partes
componentes. O império para fora correspondia à possível federação com Portugal e outras unidades do reino, seguindo o modelo
da "commonwealth" britânica ou
do Império Austro-Húngaro. Essa alternativa desapareceu com a
opção pela independência.
Mais importante era a idéia de
império para dentro. Ela apresentava duas vertentes distintas, embora não excludentes. A primeira
concebia o império sobretudo como construção de um país poderoso. O projeto era considerado
viável graças ao tamanho e aos recursos do território. A condição
política para executá-lo era manter a todo o custo o país unido e
centralizado. A aspiração de
transformar o Brasil em grande
potência já está presente na primeira metade do século 19. A outra vertente também visava construir uma grande nação, mas
preocupava-se sobretudo com as
bases sociais da construção. O
principal representante dessa corrente era José Bonifácio. Para ele,
só seríamos um grande e poderoso império se construíssemos
uma nação integrada, sem a escravidão dos africanos, sem a exclusão dos índios e sem a destruição da natureza.
Há autores que sustentam que
nunca deixamos de ser império
no primeiro sentido, mesmo depois da Proclamação da República. O argumento é muito complexo para ser discutido aqui. Mas
pode-se dizer com segurança que
a questão continua atual. Descarto a versão ingênua de império
presente em nossa mania de grandeza, na aspiração um tanto ridícula de sermos os maiores do
mundo em tudo. Ela apenas desperta reação divertida e complacente de estrangeiros. Anoto a
versão perversa contida no projeto de Brasil-potência dos governos militares. Mais importante é
ter em conta que o enorme país
que temos hoje é produto da visão
de império dos políticos do século
19. A unidade do país passou a ser
considerada, mesmo na República, conquista indiscutível, tabu
político, cláusula pétrea constitucional.
No entanto, cabe fazer a pergunta sugerida pela observação
de Evaldo Cabral de Mello: valeu a
pena manter unido o país? Valeu
a pena o império? Os brasileiros
de hoje não estariam melhor, não
seriam menos pobres, menos desiguais, mais educados, se vivessem em três ou quatro países diferentes? Frei Caneca argumentava
que em 1822 poderiam ter surgido
na ex-colônia seis países com regimes distintos, que iam de uma
república na Bahia a um Estado
despótico no Rio Grande do Sul.
Discute-se muito o custo Brasil,
mas não se discute o custo do império. Além do possível efeito de
retardamento da Abolição, há outras consequências conservadoras ainda em vigor. Menciono
três: a redução da pressão demográfica pelo deslocamento de populações e da fronteira agrícola; a
acomodação de interesses de oligarquias regionais financiada por
recursos do centro; o bloqueio de
reformas políticas graças à tática
de jogar os Estados uns contra os
outros.
Acrescente-se ainda que a forma federativa assumida por nosso império é particularmente perversa. Alfred Stepan tem mostrado que nossa federação é a mais
antidemocrática de quantas existem hoje, no sentido de ser a que
mais deturpa a representação política. Ela é também antidemocrática quando cerceia a garantia de
direitos civis devido ao controle
estadual sobre a polícia e a Justiça.
O resultado inicial do julgamento
dos responsáveis pelo massacre
de Eldorado dos Carajás é a última evidência desse cerceamento.
Mas, com licença de Evaldo, o
império não é necessariamente só
custo. Entendido à maneira de José Bonifácio, pode ser instrumento de promoção de direitos políticos e civis. E aqui, a José Bonifácio
pode-se juntar José da Silva Lisboa, o futuro Cairu, a quem se
atribui a observação de que o Brasil seria uma Roma americana. A
expressão foi retomada recentemente por Darcy Ribeiro, que falou do Brasil como Nova Roma,
ou Roma Tropical. O conceito romano de império, na visão de juristas, inclui tolerância da diversidade de culturas, centralização da
organização jurídica, democracia
direta, importância dos municípios. Incentivar a diversidade cultural, unificar a Justiça, fortalecer
os mecanismos de representação,
dar maior peso aos municípios,
democratizar a federação seriam
medidas imperiais capazes de
compensar, talvez com vantagem,
os custos do império.
Se há licença de pecar abaixo do
Equador, talvez ainda haja salvação além de Tordesilhas.
José Murilo de Carvalho é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro e pesquisador do Centro de Pesquisas e Documentação da Fundação Getúlio
Vargas (RJ).
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