São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O poeta irlandês Seamus Heaney, Prêmio Nobel de Literatura de 1995, fala sobre tradução, clássicos e a dimensão do sagrado na poesia
A harmonia secreta

ELIDE V. OLIVER
MAC OLIVER
especial para a Folha

O poeta irlandês Seamus Heaney, 60, não dá entrevistas. A conversa a seguir só aconteceu devido a uma feliz coincidência e também graças à ajuda de amigos comuns. Estávamos andando no centro de Boston com Justin Quinn, editor e poeta irlandês, quando vimos Seamus Heaney com um grupo de "outros" irlandeses, caminhando em nossa direção.
Enquanto eu procurava mentalmente alguma coisa para dizer, o poeta americano Mac Oliver exclamou: "Mas, olha aí, é o Seamus Heaney!" (para o próprio). Uma jornalista do "Irish Times" que acompanhava o poeta emendou: "Pronto! Você foi reconhecido de novo!". Mas Seamus Heaney, ao nos ver com Justin Quinn, adivinhou quem éramos e virou para mim, sorrindo: "Puxa, eu estava para telefonar para você, por causa da entrevista". Ao que eu respondi: "Mentira! Você detesta ser entrevistado".
Nunca imaginei que a primeira palavra que eu iria dirigir ao Nobel de Literatura de 1995 seria para chamá-lo de mentiroso, ainda que no bom sentido. Entretanto aqui está a entrevista, tentando reproduzir a longa conversa que tivemos sobre poesia, clássicos, política e Irlanda.
Na semana seguinte, fomos à biblioteca central em Harvard, onde tínhamos marcado encontro, levando alguns presentes, dentre eles um livro do fotógrafo Sebastião Salgado e uma garrafa do bourbon Maker's Mark. Heaney desfez a embalagem e, ao ver o lacre vermelho da tampa, disse, com sua voz de barítono irlandês: "Ah! Maker's Mark!".
Assim que ele abriu a garrafa, surgiu o problema dos copos -não dispúnhamos de nenhum. Mac disse, brincando, que, se soubesse, teria trazido uma garrafa de Rebel's Yell, que tem um anel de vidro que permite que se beba no gargalo. Heaney completou: "Ah, sabe quem me deu uma vez uma garrafa de Rebel's Yell? Um bebedor de respeito". Ele parou um pouquinho, para fazer suspense, e completou: "Elizabeth Bishop!".
Mais tarde, no mesmo dia, antes de ler seus poemas num auditório de Harvard, Heaney comentou que o escritor e jornalista Flann O'Brien sempre dizia que não existe uma garrafa de whisky grande -frase que Marie, sua mulher, sempre completava, dizendo que também não existe uma leitura curta de poesia.
(ELIDE V. OLIVER)

Folha - Nós relemos recentemente "Glenmore Revisited Sonnets", uma sequência de sonetos do livro "Seeing Things", sondando as suas armadilhas...
Seamus Heaney -
Pois é, eu estou tentando achar um título para um novo livro, que ainda não está pronto. Hoje, parece que eu achei um: "Tenders". No sentido de tratar alguém com o devido carinho, de oferecer algo. Não esquecendo também a conotação militar do termo... Vamos dizer que gosto da idéia de convite que há na palavra.

Folha - De que tamanho vai ser o livro?
Heaney -
Estou pensando numa coisa por volta de 60 ou 70 páginas. Quero que ele saia logo, assim, quase inesperadamente.

Folha - Como você traduz?
Heaney -
Bom, eu gostaria de pensar que algumas das traduções que estou fazendo agora são simplesmente traduções, como a de "Beowulf" (poema épico composto na primeira metade do século 8º e escrito predominantemente em saxão ocidental). Não estou fazendo uma imitação. Claro, não se pode simplesmente traduzir, mas estou trabalhando dentro de certas condições. É uma edição cuja tradução é dada linha a linha, com notas. Trabalho como um estudante de quarto ano, olhando as palavras no glossário de novo, escrevendo umas dez ou 15 linhas por dia, num dia produtivo. É um trabalho vagaroso e requer humildade.
Tenho traduzido uns poemas do celta nesses últimos anos e com esses tentei manter o metro e ficar o mais próximo possível do sentido. Traduzi o "Sweeney" anos atrás, um trabalho meio longo. Foi por volta de 72, 73, e usei o original como um trampolim, para me lançar numa forma de inglês que era um tanto diferente. Mas relutei em ir adiante com isso, porque senti que tinha roubado e usado a coisa, o que, de vez em quando, é exatamente o que você quer fazer. Acredito que a tradução é um meio de "arrebentar o cofre e pegar as jóias". Foi assim que o soneto foi introduzido em inglês. Thomas Wyatt (poeta inglês, 1503-1542) simplesmente foi buscá-lo em Petrarca e o trouxe para a Inglaterra, como um bom inglês da época Tudor.

Folha - Qual é a importância dos clássicos na sua poesia?
Heaney -
Eles se tornaram cada vez mais importantes. Eu cheguei a eles indiretamente, pela leitura dos poloneses e, particularmente, de Zbigniew Herbert (poeta polonês, 1924-1998), lendo não apenas a sua poesia, mas também seu livro "O Bárbaro no Jardim" (1962), que é sobre arte italiana.
No início dos anos 80, eu vim para os Estados Unidos, e algumas vezes você é atraído pelo seu oposto. Digamos que eu acabei ficando susceptível às suspeitas desconstrucionistas. Então eu li esse material de Herbert e pensei: quando chega a hora H para uma cultura ou uma civilização, deve haver um ponto de apoio para tudo isso se sustentar. Ou a coisa se nega ou se sustenta. Quero dizer: por mais multicultural que você queira ser, você tem que ser eurocêntrico, se for um europeu, e não deve haver nenhuma timidez nessa posição.
Recentemente, quando estive na Grécia, só o lugar físico já era, na minha mente, o equivalente de meu próprio país. Esses são panoramas para você apreciar. Eu sou conservador nessa questão. Agora, o Ovídio ("Tales from Ovid") traduzido por Ted Hughes (poeta inglês, 1930-1998) é puro Ted. Eu acho que ele não teve nenhum remorso quanto a usar a própria voz. Eu pensei: "Isso é incrível! Ele usa imagens adoráveis que não estão no original".

Folha - Falando em Ted Hughes, qual foi a importância de fazer parte de um grupo, de ter pares com os quais discutir o seu trabalho?
Heaney -
Foi tremendamente importante fazer parte de um grupo logo de início. Antes do The Group, que se formou em Belfast, havia dois espaços na minha vida em Belfast, isto é, minha vida de estudante de graduação e de pós-graduação, que já representava um tipo de engajamento com a literatura, mas engajamento acadêmico, e a minha produção escrita como estudante, escrevendo para gente extremamente brilhante, como o Seamus Deane. Nós ainda não tínhamos uma ambição poética, não revelávamos isso uns aos outros, não nos juntávamos como poetas ou escritores, embora todo mundo escrevesse poemas para jornais estudantis. Havia amizades. Então, Phillip Housebaum veio lecionar no Queen's College e começou esse grupo chamado The Group.
Há hoje todo um clima estabelecido na Irlanda que não existia na época... É estranho falar dessas coisas quando você tem 60 anos... Quero dizer, todo mundo acaba ganhando publicidade, e daí vem a competição, para não falar dos ressentimentos e tumultos. Os grupos são absolutamente importantes e, ainda assim, como é sempre o caso com esse tipo de agrupamento, eventualmente você acaba se separando, cada um segue um caminho. Então, você começa a fazer novas alianças.
Ted Hughes foi muito importante para mim, desde o começo, quando eu o lia, e, depois, quando o conheci pessoalmente. Hughes era uma presença incrivelmente criativa, uma dessas pessoas que quando se estava trabalhando em conjunto, você saía da experiência acreditando um pouco mais nesse tipo de empreendimento. E isso é fundamentalmente importante.
Aqui em Harvard encontrei Helen Vendler, em 1973, no curso de verão sobre Yeats. Ela é uma incrível leitora. Saber que alguém acredita no seu trabalho é uma coisa muito útil, porque, quando você fica mais velho, fica mais curtido e solitário. Todo mundo se retira para um mundo à parte e se torna egoísta, preocupado, avaro, ressentido, sabe como é, então você acaba ficando sozinho.

Folha - Você considera que W.H. Auden (poeta inglês, 1907-1973) foi uma presença inspiradora?
Heaney -
Auden sempre foi enérgico e tinha uma impaciência de irmã mais velha ou de um cirurgião. Ele nunca ficava ocioso, esperando, ele simplesmente cortava, sem se preocupar com minúcias. Mas seus cortes têm a aspereza do gênio, com todas aquelas distinções, sempre aquelas pequenas dualidades, isso, aquilo. Quando penso em Auden, sempre me pego citando-o no que se refere a assuntos de pedagogia. Gosto mais dos poemas que ele escreveu no início. Acho também que ele tem um efeito ligeiramente deletério na poesia americana, com a sua dicção afetada.

Folha - Pensando em Auden, que também veio para os EUA, será que a sua própria experiência aqui mudou a sua poesia?
Heaney -
Provavelmente, um pouco. Eu faria uma distinção drástica entre o que aconteceu comigo, a forma pela qual me conduzo, e o que Auden fez. Com ele, havia uma divisão psíquica, bem como uma divisão territorial e, acho, uma cicatriz, um tremendo pé atrás, uma ruptura e uma inimizade entre Auden e a Inglaterra, por causa da guerra.

Folha - Além de Auden, quem você considera um poeta maior?
Heaney -
Milosz... Czeslaw Milosz (polonês, 1911) é o grande poeta. Eu acho que a sua "Autobiography" é o equivalente da civilização ocidental. Ele tem um surto nostálgico que é orquestral e há sempre alguma coisa mais restrita também, tem sempre uma batuta regendo a coisa toda.

Folha - Você lê Milosz em inglês ou polonês?
Heaney -
Tudo em inglês. As cadências, na tradução, parecem as certas. A sua poesia foi traduzida para o inglês por Robert Haas e também por Robert Pinsky. Haas representa, mais ou menos, a voz de Milosz em inglês agora.

Folha - Falando em traduções, o que você conhece da literatura em língua portuguesa? Embora seja uma língua falada por milhões de pessoas, sabia que ela foi usada como código secreto pelos ingleses na Segunda Guerra Mundial?
Heaney -
Não, não sabia. Eu sabia que eles usaram as línguas indígenas. Bom, de literatura portuguesa e brasileira conheço Pessoa, que reuniu todo um movimento literário em si mesmo, Drummond de Andrade, por intermédio de Elizabeth Bishop, claro, tudo o que ela traduziu. Lembro-me de um poema, "No Meio do Caminho", o poema da pedra...

Folha - Você sente saudades de Joseph Brodsky (1940-1996) e Zbigniew Herbert?
Heaney -
Eu sinto saudade de Brodsky. Não conheci Herbert pessoalmente. Conheci Brodsky aqui, e nos víamos umas três ou quatro vezes nos semestres em que eu lecionava aqui, em Cambridge. Ele era vigoroso, intenso, engraçado, começava abruptamente uma conversa e acabava, impaciente. Era despótico, rude com as pessoas, às vezes. Minha mulher diz que havia ternura nele. Ele tinha o talento que todos gostaríamos de ter, mas que refreamos em nós, por caridade, às vezes, e sofremos por isso: se alguém dissesse alguma coisa idiota, Brodsky invariavelmente caía matando (risos).

Folha - Você considera Ezra Pound (poeta americano, 1885-1972) uma influência?
Heaney -
Realmente não. Claro, o "ABC da Leitura" foi muito importante, mas na minha vida foi o "certinho" do Eliot (poeta americano, 1888-1965) quem deixou a mais profunda e inerradicável marca em mim. Não somente em termos de poesia, mas de crítica, em particular o ensaio "Tradição e Talento Individual".

Folha - Gostaria de saber como você vê a situação da Irlanda do Norte atualmente?
Heaney -
Meu instinto é o de que as coisas mudaram gradualmente para melhor desde 1994. O cessar-fogo, apesar de todos os percalços e quebras e tumultos e retomadas, fez as coisas melhorarem.
Não estou querendo dizer que é fácil. Não sabemos o que vai ocorrer. Tudo o que se pode dizer é que há uma política acontecendo, há uns quatro anos. Eu acho que alguma coisa diferente se passou na mente comum. Exprimi essa visão num artigo que escrevi para o "Irish Times", quando disse que se poderia usar a distinção que Robert Frost faz entre pesar e ressentimento.
Antes, sempre que acontecia alguma atrocidade, ela resultava num ressentimento, num agravo considerável, tanto de um lado quanto de outro. Mas agora, não importa o caminho por onde se andou, nos extremos, nos excessos e nos reveses, acaba resultando em pesar, em dor. Há uma expressão que recolhi em Wilfred Owen, em que ele fala da "eterna reciprocidade das lágrimas". Acho que algo equivalente ao reconhecimento da eterna reciprocidade das lágrimas aconteceu por um momento. É como um sacramento, a alma fica marcada.

Folha - O que é uma má poesia?
Heaney -
Bem, aquilo que não é poesia!

Folha - Ah, mas isso a gente sabe. Eu estava pensando em intencionalidades e resultados.
Heaney -
Bom, se há uma proposta que não deu em nada, isso certamente é ruim. Essa é uma pergunta muito boa, o que é má poesia... Existe um grande mau poeta, William McGonagall, que escreveu um monte de baladas no século passado. Ele tentou escrever poesia séria, mas era incapaz de fazer qualquer outra coisa que não fosse risível. Entretanto, o que ele fez é poesia, porque ultrapassou o grau de inépcia e resultou numa completa e bem-sucedida má qualidade. Ele tem um poema-desastre, um dos muitos poemas-desastres da Inglaterra vitoriana, que começa assim:
"Beautiful railway bridge on the silvery Tay/ Alas, I am very sorry to say/ All your central girders were taken away/ On the last Sabbath day of 1879,/ Which will be remembered for a very long time" (Bela ponte ferroviária sobre o argênteo Tay/ Estou tão triste que só eu sei/ Todos os teus dormentes foram retirados/ No último dia de Finados/ O que será para sempre por nós lembrado).
Você tem que usar um sotaque escocês para obter o efeito total (risos).

Folha - Qual o lugar do sagrado na poesia?
Heaney -
Até mesmo na língua inglesa, a palavra poeta retém um solo sagrado. Todo o background é sagrado, até mesmo na poesia americana (risos). Para os estudantes talentosos de literatura, a palavra poeta ainda guarda seu sentido sagrado. Quando uso a palavra "cibório" ou outras referências ao catolicismo, claro, isso é mais uma malandrice de coroinha do que um modo de lidar com o sagrado. Tem um verso do meu "herói" Milosz, que acho que é mais do que suficiente. Ele descreve a lembrança de uma ferraria e diz: "Às vezes sinto que fui chamado para glorificar as coisas somente pelo que elas são". Falando de sagrado, o que me vem sempre à memória é uma frase de um dos mais brilhantes escritores brasileiros, Guimarães Rosa, que diz que melhor é acreditar que uma harmonia secreta domina.

Folha - Mas esse sentido do sagrado está ausente da poesia americana, que parece preferir outra trilha, a do eu -o eu particular e narcisista versus o eu lírico-universal.
Heaney -
Sim... O que é que se faz com um poeta como John Ashbery (americano, 1927)? Ele é indubitavelmente um instrumento tremendamente talentoso, um médium, mas o que ele faz de tudo isso? Eu o leio como um sintoma de alguma coisa. Ele está desapontado por não ser capaz de se revestir de autoridade. Há uma grande luta em Ashbery, mas também um grande talento, alguma seriedade e o equivalente a uma crise de fé vitoriana. Suas melodias tendem ao verdadeiro.

Folha - Mas em sua poesia falta pesar, profundidade moral...
Heaney -
Sim, é o dar de ombros à sombra do sagrado. Isso é ousado, porque ele sabe o que está fazendo. Não é trivial em nenhum sentido fundamental. Pode ser trivial acidentalmente, mas há muito disso por aí.


Elide V. Oliver é poeta, tradutora, professora da Universidade de Minnesota e pesquisadora visitante da Universidade Yale.
Mac Oliver é poeta e professor da Cooperativa de Artes e Humanidades de New Haven.


Texto Anterior: As obras
Próximo Texto: Quem é
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.