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O poeta irlandês Seamus Heaney, Prêmio Nobel de Literatura de 1995,
fala sobre tradução, clássicos e a dimensão do sagrado na poesia
A harmonia secreta
ELIDE V. OLIVER
MAC OLIVER
especial para a Folha
O poeta irlandês Seamus Heaney, 60, não dá entrevistas. A conversa a seguir só aconteceu devido
a uma feliz coincidência e também graças à ajuda de amigos comuns. Estávamos andando no
centro de Boston com Justin
Quinn, editor e poeta irlandês,
quando vimos Seamus Heaney
com um grupo de "outros" irlandeses, caminhando em nossa direção.
Enquanto eu procurava mentalmente alguma coisa para dizer, o
poeta americano Mac Oliver exclamou: "Mas, olha aí, é o Seamus
Heaney!" (para o próprio). Uma
jornalista do "Irish Times" que
acompanhava o poeta emendou:
"Pronto! Você foi reconhecido de
novo!". Mas Seamus Heaney, ao
nos ver com Justin Quinn, adivinhou quem éramos e virou para
mim, sorrindo: "Puxa, eu estava
para telefonar para você, por causa da entrevista". Ao que eu respondi: "Mentira! Você detesta ser
entrevistado".
Nunca imaginei que a primeira
palavra que eu iria dirigir ao Nobel de Literatura de 1995 seria para chamá-lo de mentiroso, ainda
que no bom sentido. Entretanto
aqui está a entrevista, tentando
reproduzir a longa conversa que
tivemos sobre poesia, clássicos,
política e Irlanda.
Na semana seguinte, fomos à biblioteca central em Harvard, onde
tínhamos marcado encontro, levando alguns presentes, dentre
eles um livro do fotógrafo Sebastião Salgado e uma garrafa do
bourbon Maker's Mark. Heaney
desfez a embalagem e, ao ver o lacre vermelho da tampa, disse,
com sua voz de barítono irlandês:
"Ah! Maker's Mark!".
Assim que ele abriu a garrafa,
surgiu o problema dos copos
-não dispúnhamos de nenhum.
Mac disse, brincando, que, se soubesse, teria trazido uma garrafa de
Rebel's Yell, que tem um anel de
vidro que permite que se beba no
gargalo. Heaney completou: "Ah,
sabe quem me deu uma vez uma
garrafa de Rebel's Yell? Um bebedor de respeito". Ele parou um
pouquinho, para fazer suspense, e
completou: "Elizabeth Bishop!".
Mais tarde, no mesmo dia, antes
de ler seus poemas num auditório
de Harvard, Heaney comentou
que o escritor e jornalista Flann
O'Brien sempre dizia que não
existe uma garrafa de whisky
grande -frase que Marie, sua
mulher, sempre completava, dizendo que também não existe
uma leitura curta de poesia.
(ELIDE V. OLIVER)
Folha - Nós relemos recentemente "Glenmore Revisited
Sonnets", uma sequência de sonetos do livro "Seeing Things",
sondando as suas armadilhas...
Seamus Heaney - Pois é, eu estou tentando achar um título para
um novo livro, que ainda não está
pronto. Hoje, parece que eu achei
um: "Tenders". No sentido de tratar alguém com o devido carinho,
de oferecer algo. Não esquecendo
também a conotação militar do
termo... Vamos dizer que gosto da
idéia de convite que há na palavra.
Folha - De que tamanho vai
ser o livro?
Heaney - Estou pensando numa
coisa por volta de 60 ou 70 páginas. Quero que ele saia logo, assim, quase inesperadamente.
Folha - Como você traduz?
Heaney - Bom, eu gostaria de
pensar que algumas das traduções que estou fazendo agora são
simplesmente traduções, como a
de "Beowulf" (poema épico composto na primeira metade do século 8º e escrito predominantemente em saxão ocidental). Não
estou fazendo uma imitação. Claro, não se pode simplesmente traduzir, mas estou trabalhando
dentro de certas condições. É uma
edição cuja tradução é dada linha
a linha, com notas. Trabalho como um estudante de quarto ano,
olhando as palavras no glossário
de novo, escrevendo umas dez ou
15 linhas por dia, num dia produtivo. É um trabalho vagaroso e requer humildade.
Tenho traduzido uns poemas
do celta nesses últimos anos e
com esses tentei manter o metro e
ficar o mais próximo possível do
sentido. Traduzi o "Sweeney"
anos atrás, um trabalho meio longo. Foi por volta de 72, 73, e usei o
original como um trampolim, para me lançar numa forma de inglês que era um tanto diferente.
Mas relutei em ir adiante com isso, porque senti que tinha roubado e usado a coisa, o que, de vez
em quando, é exatamente o que
você quer fazer. Acredito que a
tradução é um meio de "arrebentar o cofre e pegar as jóias". Foi assim que o soneto foi introduzido
em inglês. Thomas Wyatt (poeta
inglês, 1503-1542) simplesmente
foi buscá-lo em Petrarca e o trouxe para a Inglaterra, como um
bom inglês da época Tudor.
Folha - Qual é a importância
dos clássicos na sua poesia?
Heaney - Eles se tornaram cada
vez mais importantes. Eu cheguei
a eles indiretamente, pela leitura
dos poloneses e, particularmente,
de Zbigniew Herbert (poeta polonês, 1924-1998), lendo não apenas
a sua poesia, mas também seu livro "O Bárbaro no Jardim"
(1962), que é sobre arte italiana.
No início dos anos 80, eu vim
para os Estados Unidos, e algumas vezes você é atraído pelo seu
oposto. Digamos que eu acabei ficando susceptível às suspeitas
desconstrucionistas. Então eu li
esse material de Herbert e pensei:
quando chega a hora H para uma
cultura ou uma civilização, deve
haver um ponto de apoio para tudo isso se sustentar. Ou a coisa se
nega ou se sustenta. Quero dizer:
por mais multicultural que você
queira ser, você tem que ser eurocêntrico, se for um europeu, e não
deve haver nenhuma timidez nessa posição.
Recentemente, quando estive
na Grécia, só o lugar físico já era,
na minha mente, o equivalente de
meu próprio país. Esses são panoramas para você apreciar. Eu sou
conservador nessa questão. Agora, o Ovídio ("Tales from Ovid")
traduzido por Ted Hughes (poeta
inglês, 1930-1998) é puro Ted. Eu
acho que ele não teve nenhum remorso quanto a usar a própria
voz. Eu pensei: "Isso é incrível! Ele
usa imagens adoráveis que não
estão no original".
Folha - Falando em Ted Hughes, qual foi a importância de
fazer parte de um grupo, de ter
pares com os quais discutir o
seu trabalho?
Heaney - Foi tremendamente
importante fazer parte de um grupo logo de início. Antes do The
Group, que se formou em Belfast,
havia dois espaços na minha vida
em Belfast, isto é, minha vida de
estudante de graduação e de pós-graduação, que já representava
um tipo de engajamento com a literatura, mas engajamento acadêmico, e a minha produção escrita
como estudante, escrevendo para
gente extremamente brilhante,
como o Seamus Deane. Nós ainda
não tínhamos uma ambição poética, não revelávamos isso uns aos
outros, não nos juntávamos como
poetas ou escritores, embora todo
mundo escrevesse poemas para
jornais estudantis. Havia amizades. Então, Phillip Housebaum
veio lecionar no Queen's College e
começou esse grupo chamado
The Group.
Há hoje todo um clima estabelecido na Irlanda que não existia na
época... É estranho falar dessas
coisas quando você tem 60 anos...
Quero dizer, todo mundo acaba
ganhando publicidade, e daí vem
a competição, para não falar dos
ressentimentos e tumultos. Os
grupos são absolutamente importantes e, ainda assim, como é sempre o caso com esse tipo de agrupamento, eventualmente você
acaba se separando, cada um segue um caminho. Então, você começa a fazer novas alianças.
Ted Hughes foi muito importante para mim, desde o começo,
quando eu o lia, e, depois, quando
o conheci pessoalmente. Hughes
era uma presença incrivelmente
criativa, uma dessas pessoas que
quando se estava trabalhando em
conjunto, você saía da experiência
acreditando um pouco mais nesse
tipo de empreendimento. E isso é
fundamentalmente importante.
Aqui em Harvard encontrei Helen Vendler, em 1973, no curso de
verão sobre Yeats. Ela é uma incrível leitora. Saber que alguém
acredita no seu trabalho é uma
coisa muito útil, porque, quando
você fica mais velho, fica mais
curtido e solitário. Todo mundo
se retira para um mundo à parte e
se torna egoísta, preocupado, avaro, ressentido, sabe como é, então
você acaba ficando sozinho.
Folha - Você considera que
W.H. Auden (poeta inglês, 1907-1973) foi uma presença inspiradora?
Heaney - Auden sempre foi
enérgico e tinha uma impaciência
de irmã mais velha ou de um cirurgião. Ele nunca ficava ocioso,
esperando, ele simplesmente cortava, sem se preocupar com minúcias. Mas seus cortes têm a aspereza do gênio, com todas aquelas distinções, sempre aquelas pequenas dualidades, isso, aquilo.
Quando penso em Auden, sempre me pego citando-o no que se
refere a assuntos de pedagogia.
Gosto mais dos poemas que ele
escreveu no início. Acho também
que ele tem um efeito ligeiramente deletério na poesia americana,
com a sua dicção afetada.
Folha - Pensando em Auden,
que também veio para os EUA,
será que a sua própria experiência aqui mudou a sua poesia?
Heaney - Provavelmente, um
pouco. Eu faria uma distinção
drástica entre o que aconteceu comigo, a forma pela qual me conduzo, e o que Auden fez. Com ele,
havia uma divisão psíquica, bem
como uma divisão territorial e,
acho, uma cicatriz, um tremendo
pé atrás, uma ruptura e uma inimizade entre Auden e a Inglaterra, por causa da guerra.
Folha - Além de Auden, quem
você considera um poeta maior?
Heaney - Milosz... Czeslaw Milosz (polonês, 1911) é o grande
poeta. Eu acho que a sua "Autobiography" é o equivalente da civilização ocidental. Ele tem um
surto nostálgico que é orquestral e
há sempre alguma coisa mais restrita também, tem sempre uma
batuta regendo a coisa toda.
Folha - Você lê Milosz em inglês ou polonês?
Heaney - Tudo em inglês. As cadências, na tradução, parecem as
certas. A sua poesia foi traduzida
para o inglês por Robert Haas e
também por Robert Pinsky. Haas
representa, mais ou menos, a voz
de Milosz em inglês agora.
Folha - Falando em traduções,
o que você conhece da literatura em língua portuguesa? Embora seja uma língua falada por
milhões de pessoas, sabia que
ela foi usada como código secreto pelos ingleses na Segunda
Guerra Mundial?
Heaney - Não, não sabia. Eu sabia que eles usaram as línguas indígenas. Bom, de literatura portuguesa e brasileira conheço Pessoa,
que reuniu todo um movimento
literário em si mesmo, Drummond de Andrade, por intermédio de Elizabeth Bishop, claro, tudo o que ela traduziu. Lembro-me
de um poema, "No Meio do Caminho", o poema da pedra...
Folha - Você sente saudades
de Joseph Brodsky (1940-1996)
e Zbigniew Herbert?
Heaney - Eu sinto saudade de
Brodsky. Não conheci Herbert
pessoalmente. Conheci Brodsky
aqui, e nos víamos umas três ou
quatro vezes nos semestres em
que eu lecionava aqui, em Cambridge. Ele era vigoroso, intenso,
engraçado, começava abruptamente uma conversa e acabava,
impaciente. Era despótico, rude
com as pessoas, às vezes. Minha
mulher diz que havia ternura nele. Ele tinha o talento que todos
gostaríamos de ter, mas que refreamos em nós, por caridade, às
vezes, e sofremos por isso: se alguém dissesse alguma coisa idiota, Brodsky invariavelmente caía
matando (risos).
Folha - Você considera Ezra
Pound (poeta americano, 1885-1972) uma influência?
Heaney - Realmente não. Claro,
o "ABC da Leitura" foi muito importante, mas na minha vida foi o
"certinho" do Eliot (poeta americano, 1888-1965) quem deixou a
mais profunda e inerradicável
marca em mim. Não somente em
termos de poesia, mas de crítica,
em particular o ensaio "Tradição
e Talento Individual".
Folha - Gostaria de saber como
você vê a situação da Irlanda do
Norte atualmente?
Heaney - Meu instinto é o de
que as coisas mudaram gradualmente para melhor desde 1994. O
cessar-fogo, apesar de todos os
percalços e quebras e tumultos e
retomadas, fez as coisas melhorarem.
Não estou querendo dizer que é
fácil. Não sabemos o que vai ocorrer. Tudo o que se pode dizer é
que há uma política acontecendo,
há uns quatro anos. Eu acho que
alguma coisa diferente se passou
na mente comum. Exprimi essa
visão num artigo que escrevi para
o "Irish Times", quando disse que
se poderia usar a distinção que
Robert Frost faz entre pesar e ressentimento.
Antes, sempre que acontecia alguma atrocidade, ela resultava
num ressentimento, num agravo
considerável, tanto de um lado
quanto de outro. Mas agora, não
importa o caminho por onde se
andou, nos extremos, nos excessos e nos reveses, acaba resultando em pesar, em dor. Há uma expressão que recolhi em Wilfred
Owen, em que ele fala da "eterna
reciprocidade das lágrimas".
Acho que algo equivalente ao reconhecimento da eterna reciprocidade das lágrimas aconteceu
por um momento. É como um sacramento, a alma fica marcada.
Folha - O que é uma má poesia?
Heaney - Bem, aquilo que não é
poesia!
Folha - Ah, mas isso a gente
sabe. Eu estava pensando em
intencionalidades e resultados.
Heaney - Bom, se há uma proposta que não deu em nada, isso
certamente é ruim. Essa é uma
pergunta muito boa, o que é má
poesia... Existe um grande mau
poeta, William McGonagall, que
escreveu um monte de baladas no
século passado. Ele tentou escrever poesia séria, mas era incapaz
de fazer qualquer outra coisa que
não fosse risível. Entretanto, o que
ele fez é poesia, porque ultrapassou o grau de inépcia e resultou
numa completa e bem-sucedida
má qualidade. Ele tem um poema-desastre, um dos muitos poemas-desastres da Inglaterra vitoriana, que começa assim:
"Beautiful railway bridge on the
silvery Tay/ Alas, I am very sorry
to say/ All your central girders were taken away/ On the last Sabbath day of 1879,/ Which will be
remembered for a very long time"
(Bela ponte ferroviária sobre o argênteo Tay/ Estou tão triste que só
eu sei/ Todos os teus dormentes
foram retirados/ No último dia de
Finados/ O que será para sempre
por nós lembrado).
Você tem que usar um sotaque
escocês para obter o efeito total
(risos).
Folha - Qual o lugar do sagrado na poesia?
Heaney - Até mesmo na língua
inglesa, a palavra poeta retém um
solo sagrado. Todo o background
é sagrado, até mesmo na poesia
americana (risos). Para os estudantes talentosos de literatura, a
palavra poeta ainda guarda seu
sentido sagrado. Quando uso a
palavra "cibório" ou outras referências ao catolicismo, claro, isso
é mais uma malandrice de coroinha do que um modo de lidar
com o sagrado. Tem um verso do
meu "herói" Milosz, que acho que
é mais do que suficiente. Ele descreve a lembrança de uma ferraria
e diz: "Às vezes sinto que fui chamado para glorificar as coisas somente pelo que elas são". Falando
de sagrado, o que me vem sempre
à memória é uma frase de um dos
mais brilhantes escritores brasileiros, Guimarães Rosa, que diz
que melhor é acreditar que uma
harmonia secreta domina.
Folha - Mas esse sentido do sagrado está ausente da poesia
americana, que parece preferir
outra trilha, a do eu -o eu particular e narcisista versus o eu lírico-universal.
Heaney - Sim... O que é que se
faz com um poeta como John
Ashbery (americano, 1927)? Ele é
indubitavelmente um instrumento tremendamente talentoso, um
médium, mas o que ele faz de tudo isso? Eu o leio como um sintoma de alguma coisa. Ele está desapontado por não ser capaz de se
revestir de autoridade. Há uma
grande luta em Ashbery, mas
também um grande talento, alguma seriedade e o equivalente a
uma crise de fé vitoriana. Suas
melodias tendem ao verdadeiro.
Folha - Mas em sua poesia falta pesar, profundidade moral...
Heaney - Sim, é o dar de ombros à sombra do sagrado. Isso é
ousado, porque ele sabe o que está
fazendo. Não é trivial em nenhum
sentido fundamental. Pode ser
trivial acidentalmente, mas há
muito disso por aí.
Elide V. Oliver é poeta, tradutora, professora da Universidade de Minnesota e pesquisadora visitante da Universidade Yale.
Mac Oliver é poeta e professor da Cooperativa de Artes e Humanidades de New Haven.
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