São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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CULTURA
Helio Jaguaribe conclui estudo em que aponta a funcionalidade das elites como fator de ascensão e queda de civilizações
As condições da história do mundo

MARCELO LEITE
especial para a Folha

O cientista social Helio Jaguaribe dedicou os últimos 6 de seus 76 anos a uma empreitada de risco: um ensaio sobre a história universal que estabeleça seu sentido sem cair na armadilha das filosofias da história, que oferecem como conclusões idéias e valores anteriores à investigação empírica. A obra, um manuscrito de 1.200 páginas com o título de "Um Estudo Crítico da História", foi entregue no último dia 2 à Unesco, em Paris.
Jaguaribe pretende reviver, com seu "Estudo", o projeto do Weber menos conhecido, Alfred (1868-1958), irmão de Max (1864-1920), de realizar uma comparação de culturas com base em tipos ideais, história da cultura como sociologia da cultura ("Kulturgeschichte als Kultursoziologie"). A base empírica dessa comparação, não se acautela o brasileiro em dizer, deve ser buscada na boa e velha natureza humana.
O que varia na história, para Jaguaribe, é a condição, não a natureza do homem, ou suas disposições "psicofísicas". Ele não cuida de detalhar essas disposições, mas elas não destoam das tentativas da chamada psicologia evolucionista de buscar nos genes muitas das motivações e comportamentos mais obscuros da espécie.
Essa natureza humana rediviva é o apoio arquimediano que o racionalismo otimista de Jaguaribe emprega para elevar do lamaçal relativista-culturalista, em pleno limiar do século 21, a idéia de uma história universal. Ele a sobrevoa em 19 capítulos, 16 dos quais dedicados a uma civilização específica: Mesopotâmia, Egito, Egeu, Israel, Pérsia, Grécia, Roma, Bizâncio, Islã, Índia, China, África, América Pré-Colombiana, Ocidente/Formação da Europa, Ocidente/Renascimento e Ocidente/Desenvolvimento.
Helio Jaguaribe redigiu todo o texto, com exceção dos capítulos 13 (África, de autoria de Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Fasso) e 14 (América Pré-Colombiana, a cargo do peruano radicado na Colômbia, Heraclio Bonilla). "Diretamente em inglês", como destacou por duas vezes na introdução da obra e mais uma vez durante a entrevista.
Jaguaribe, decano do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Ieps), do Rio, obteve US$ 260 mil da Unesco e US$ 30 mil da Fundação Vitae para custear o trabalho. O Ministério da Cultura deu cerca de R$ 120 mil (não sabe precisar o valor em dólares, por causa da variação cambial). Para fechar o pacote de financiamento do projeto, inicialmente orçado em US$ 600 mil, diz que teve de renunciar a seus próprios honorários, US$ 3.000 por mês.
"Trabalho intelectual ninguém faz para ganhar dinheiro", afirma. "Esse é o trabalho mais importante que fiz até hoje."
O cientista social caracteriza a obra como um estudo "crítico" da história, para demarcar seu distanciamento da mera crônica ou resumo de acontecimentos. O sentido que atribui à palavra, explica em seu texto, "diz respeito à tentativa de identificar e analisar as condições principais e fatores que influenciaram um processo histórico". O método é sobretudo comparativo.
Na base dessa comparação parece estar a medida da natureza humana, entendida como conjunto invariante de características "psicofísicas" da espécie. O próprio Jaguaribe sustenta que ela é resultado da comparação entre civilizações, não seu ponto de partida. De todo modo, ela permite ressuscitar os protagonistas da história, pois, afinal, é nos indivíduos -e não na massa ou em classes sociais- que se manifestam as tais das disposições psicofísicas.
"A forma pela qual um rei assírio reage à destruição de seu reino é exatamente igual à forma pela qual um rei moderno, um chefe de Estado ou governo moderno reagem. As grandes reações observáveis no curso da história, no que diz respeito a motivações fundamentais da psicologia humana, permanecem absolutamente constantes", disse em entrevista no Rio, três dias antes de embarcar para Paris.
Não é de estranhar, assim, que entre uma dúzia de constatações (lições, certamente) alinhavadas no capítulo final se encontre em destaque, por exemplo, a suposta utilidade da malícia, ou a dos exemplos.
"A exemplaridade desempenha um importante papel na história, embora seu impacto não seja determinado unicamente pelo valor intrínseco dos exemplos oferecidos, mas dependa decisivamente das condições que cercam sua repercussão. Todos os campos da excelência humana estão abertos a manifestações de exemplaridade, tais como gênio artístico e científico, heroísmo no risco da própria vida, beleza, elegância e charme no domínio da graça social, santidade na religião e na ética etc.", escreve Jaguaribe.
Já a arte de urdir complôs e assassinatos, apesar de tão ou mais frequente na história que os bons exemplos, é marcada por Jaguaribe com o estigma da insustentabilidade:
"A limitação inerente à malícia deriva do fato de que a trama maliciosa bem-sucedida requer, de um lado, que ela assegure recompensas satisfatórias para os participantes e, de outro, que haja uma garantia satisfatória de impunidade. A combinação desses dois elementos é raramente encontrada, menos ainda por um lapso de tempo significativo".
Tudo isso, relembre-se, são para Jaguaribe constatações do estudo crítico da história. Como há exemplos de tiranias tão maliciosas quanto longevas, admite como exceção à regra que um poder obtido à custa da perfídia se mantenha somente por meio do controle total dos instrumentos de poder. Mesmo essa alternativa orwelliana, porém, enfrentaria no longo prazo problemas de funcionalidade.
A razão disso está naquele que talvez seja o ponto central das conclusões do estudo de Jaguaribe, a relação elite-massa, que ele entende como uma espécie de contrato de serviços: "O custo social de uma elite é representado, em última instância, pela proporção do que absorve do produto social. A contribuição social da elite é representada pelos benefícios gerados para as massas e para a sociedade como um todo. Essa relação custo-benefício distingue as elites funcionais das disfuncionais".
No Brasil, a aplicação desse tipo de contabilidade ao menos serviria para justificar o espancamento ritual da elite, quando até mesmo entre seus integrantes tornou-se moda desancá-la. Seu prestígio seria proporcional a décadas de saque a descoberto na conta-corrente da história. Assim como essa aplicação não se encontra no trabalho de Jaguaribe, também está ausente dele uma pista para entender por que tanta disfuncionalidade não conduziu ainda a uma ruptura de porte.
Neste sentido, o Brasil talvez seja mesmo o país do futuro: por aqui vigora, há muito, o homem descartável, ainda que esse novo figurino do século 21 se ajuste mais ao trabalhador do que ao burocrata ou ao presidente (leia trecho de Jaguaribe nesta página). Estes, ao contrário, certamente acreditam que já personificam a imprescindível nova elite, neo-helenista e neo-estóica, sem a qual o país e o mundo logo estariam de volta a 1984.
Eis aí uma lição que não aprenderam da história.


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