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CULTURA
Helio Jaguaribe conclui estudo em que aponta a funcionalidade das elites como fator de ascensão e queda de civilizações
As condições da história do mundo
MARCELO LEITE
especial para a Folha
O cientista social Helio Jaguaribe dedicou os últimos 6 de seus 76
anos a uma empreitada de risco:
um ensaio sobre a história universal que estabeleça seu sentido sem
cair na armadilha das filosofias da
história, que oferecem como conclusões idéias e valores anteriores
à investigação empírica. A obra,
um manuscrito de 1.200 páginas
com o título de "Um Estudo Crítico da História", foi entregue no
último dia 2 à Unesco, em Paris.
Jaguaribe pretende reviver, com
seu "Estudo", o projeto do Weber
menos conhecido, Alfred (1868-1958), irmão de Max (1864-1920),
de realizar uma comparação de
culturas com base em tipos ideais,
história da cultura como sociologia da cultura ("Kulturgeschichte
als Kultursoziologie"). A base empírica dessa comparação, não se
acautela o brasileiro em dizer, deve ser buscada na boa e velha natureza humana.
O que varia na história, para Jaguaribe, é a condição, não a natureza do homem, ou suas disposições "psicofísicas". Ele não cuida
de detalhar essas disposições, mas
elas não destoam das tentativas da
chamada psicologia evolucionista
de buscar nos genes muitas das
motivações e comportamentos
mais obscuros da espécie.
Essa natureza humana rediviva
é o apoio arquimediano que o racionalismo otimista de Jaguaribe
emprega para elevar do lamaçal
relativista-culturalista, em pleno
limiar do século 21, a idéia de uma
história universal. Ele a sobrevoa
em 19 capítulos, 16 dos quais dedicados a uma civilização específica:
Mesopotâmia, Egito, Egeu, Israel,
Pérsia, Grécia, Roma, Bizâncio,
Islã, Índia, China, África, América
Pré-Colombiana, Ocidente/Formação da Europa, Ocidente/Renascimento e Ocidente/Desenvolvimento.
Helio Jaguaribe redigiu todo o
texto, com exceção dos capítulos
13 (África, de autoria de Joseph
Ki-Zerbo, de Burkina Fasso) e 14
(América Pré-Colombiana, a cargo do peruano radicado na Colômbia, Heraclio Bonilla). "Diretamente em inglês", como destacou por duas vezes na introdução
da obra e mais uma vez durante a
entrevista.
Jaguaribe, decano do Instituto
de Estudos Políticos e Sociais
(Ieps), do Rio, obteve US$ 260 mil
da Unesco e US$ 30 mil da Fundação Vitae para custear o trabalho.
O Ministério da Cultura deu cerca
de R$ 120 mil (não sabe precisar o
valor em dólares, por causa da variação cambial). Para fechar o pacote de financiamento do projeto,
inicialmente orçado em US$ 600
mil, diz que teve de renunciar a
seus próprios honorários, US$
3.000 por mês.
"Trabalho intelectual ninguém
faz para ganhar dinheiro", afirma.
"Esse é o trabalho mais importante que fiz até hoje."
O cientista social caracteriza a
obra como um estudo "crítico" da
história, para demarcar seu distanciamento da mera crônica ou
resumo de acontecimentos. O
sentido que atribui à palavra, explica em seu texto, "diz respeito à
tentativa de identificar e analisar
as condições principais e fatores
que influenciaram um processo
histórico". O método é sobretudo
comparativo.
Na base dessa comparação parece estar a medida da natureza
humana, entendida como conjunto invariante de características
"psicofísicas" da espécie. O próprio Jaguaribe sustenta que ela é
resultado da comparação entre civilizações, não seu ponto de partida. De todo modo, ela permite
ressuscitar os protagonistas da
história, pois, afinal, é nos indivíduos -e não na massa ou em
classes sociais- que se manifestam as tais das disposições psicofísicas.
"A forma pela qual um rei assírio reage à destruição de seu reino
é exatamente igual à forma pela
qual um rei moderno, um chefe
de Estado ou governo moderno
reagem. As grandes reações observáveis no curso da história, no
que diz respeito a motivações fundamentais da psicologia humana,
permanecem absolutamente
constantes", disse em entrevista
no Rio, três dias antes de embarcar para Paris.
Não é de estranhar, assim, que
entre uma dúzia de constatações
(lições, certamente) alinhavadas
no capítulo final se encontre em
destaque, por exemplo, a suposta
utilidade da malícia, ou a dos
exemplos.
"A exemplaridade desempenha
um importante papel na história,
embora seu impacto não seja determinado unicamente pelo valor
intrínseco dos exemplos oferecidos, mas dependa decisivamente
das condições que cercam sua repercussão. Todos os campos da
excelência humana estão abertos
a manifestações de exemplaridade, tais como gênio artístico e
científico, heroísmo no risco da
própria vida, beleza, elegância e
charme no domínio da graça social, santidade na religião e na ética etc.", escreve Jaguaribe.
Já a arte de urdir complôs e assassinatos, apesar de tão ou mais
frequente na história que os bons
exemplos, é marcada por Jaguaribe com o estigma da insustentabilidade:
"A limitação inerente à malícia
deriva do fato de que a trama maliciosa bem-sucedida requer, de
um lado, que ela assegure recompensas satisfatórias para os participantes e, de outro, que haja uma
garantia satisfatória de impunidade. A combinação desses dois elementos é raramente encontrada,
menos ainda por um lapso de
tempo significativo".
Tudo isso, relembre-se, são para
Jaguaribe constatações do estudo
crítico da história. Como há
exemplos de tiranias tão maliciosas quanto longevas, admite como exceção à regra que um poder
obtido à custa da perfídia se mantenha somente por meio do controle total dos instrumentos de
poder. Mesmo essa alternativa orwelliana, porém, enfrentaria no
longo prazo problemas de funcionalidade.
A razão disso está naquele que
talvez seja o ponto central das
conclusões do estudo de Jaguaribe, a relação elite-massa, que ele
entende como uma espécie de
contrato de serviços: "O custo social de uma elite é representado,
em última instância, pela proporção do que absorve do produto
social. A contribuição social da
elite é representada pelos benefícios gerados para as massas e para
a sociedade como um todo. Essa
relação custo-benefício distingue
as elites funcionais das disfuncionais".
No Brasil, a aplicação desse tipo
de contabilidade ao menos serviria para justificar o espancamento
ritual da elite, quando até mesmo
entre seus integrantes tornou-se
moda desancá-la. Seu prestígio
seria proporcional a décadas de
saque a descoberto na conta-corrente da história. Assim como essa aplicação não se encontra no
trabalho de Jaguaribe, também
está ausente dele uma pista para
entender por que tanta disfuncionalidade não conduziu ainda a
uma ruptura de porte.
Neste sentido, o Brasil talvez seja mesmo o país do futuro: por
aqui vigora, há muito, o homem
descartável, ainda que esse novo
figurino do século 21 se ajuste
mais ao trabalhador do que ao
burocrata ou ao presidente (leia
trecho de Jaguaribe nesta página).
Estes, ao contrário, certamente
acreditam que já personificam a
imprescindível nova elite, neo-helenista e neo-estóica, sem a qual o
país e o mundo logo estariam de
volta a 1984.
Eis aí uma lição que não aprenderam da história.
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