São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As veredas materialistas de Rosa

SHEILA GRECCO
da Redação

Guimarães Rosa é o autor brasileiro mais lido e treslido pela crítica. Sua produção, relativamente pequena se comparada à de Machado de Assis ou Mário de Andrade, parece tornar rasa qualquer teoria literária, da estruturalista à psicanalítica, sem descartar a corrente cabalística ou esotérica. Transcorridos mais de meio século de leituras, desde "Sagarana" (1946), a obra rosiana continua a suscitar polêmicas. É o que se depreende pelos lançamentos da revista "Scripta" e de "Lembranças do Brasil", de Heloisa Starling.
"Scripta" traz 27 ensaios apresentados no Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa, realizado em agosto de 1998, quando o escritor faria 90 anos. O tom polifônico evidencia a impossibilidade de uma via única de acesso ao texto rosiano. Leyla Perrone-Moisés, Adélia Bezerra de Menezes e Cleusa Pinheiro Passos optam pelas trilhas psicanalíticas. Curt Meyer-Clason, Eduardo Coutinho e Ângela Vaz Leão, pelo complexo linguístico. Ettore Finazzi-Agrò, Heloísa Starling e Willi Bolle, pelo viés desmitologizante, mostrando que é possível ler "Grande Sertão: Veredas" (1956) como um retrato alegórico do país. Esta nova tendência se confronta com uma certa recepção imanentista, que considera o texto uma entidade autônoma.
Finazzi-Agrò, em "O Tamanho da Grandeza Geografia e História em "Grande Sertão: Veredas'", analisa as formas nebulosas do tempo. A fala híbrida e entrecortada do protagonista Riobaldo reatualizaria a um interlocutor letrado um universo primitivo. A relação entre topografia e história seria ficcional e real, arcaica e moderna, porque seria a própria idiossincrasia de uma terra marginalizada, como a brasileira.
Starling, em "O Sentido do Moderno no Brasil de João Guimarães Rosa", defende que pelas memórias fragmentárias de Riobaldo pode-se recompor um projeto inacabado de modernização brasileira -ensaio que é um esboço do livro "Lembranças do Brasil", doutoramento não em literatura, mas em ciência política. O projeto fracassado de fundação de modernidade aparece na campanha do personagem Zé Bebelo, baseada na "ordem, paz e constituição da lei". Ânsia positivista que se chocaria com o sertão, "mundo de meia-razão", do olho por olho. Starling perscruta a ficção armada de conceitos clássicos da análise política, Maquiavel, Hannah Arendt e Tocqueville, para revelar novos ângulos do país, tais como a incapacidade de delimitar o centro e a periferia da barbárie desde o início da república brasileira.
Willi Bolle foi um dos pioneiros a descartar o esoterismo da cena do pacto de Riobaldo com o demo, ao vê-la como uma "alegoria do nascimento do Brasil" e de seu processo de dependência. Starling avança na comparação, mostrando como em "Grande Sertão: Veredas" a aquisição ilícita de poderes contra o inimigo é uma ilusão de autonomia. E encontraria uma reprodução da cena republicana brasileira, na qual o regime da liberdade e igualdade é consolidado sobre "um mínimo de participação política e um máximo de exclusão popular".
Em "O Sertão Como Forma de Pensamento", conferência publicada em "Scripta", Bolle focaliza as indicações do Liso do Sussuarão (de suçuarana; onça emblemática de Rosa), região de difícil travessia para os jagunços no romance. O autor se vale das indicações textuais, das ilustrações fantásticas e técnicas de Poty, de relatos de viajantes e dos pressupostos da nova historiografia. Define o aspecto semântico da palavra "liso" como "disjuntivo" e conclui pela via benjaminiana que na forma romanesca de Rosa se configuram outros tipos de discurso sobre o Brasil, o da sociologia, o da política, o da história e o da geografia.
O romance seria construído sobre uma "poética da dissolução" por meio da qual prosaicamente se mesclam importantes referências sociais. É o caso da passagem em que os urucuianos trazidos à força por Zé Bebelo resolvem fugir e colocam o chefe do bando diante de um problema sério sobre como lidar com essa mão-de-obra rebelde. O estudioso espicaça certa crítica que insiste em ver o "Sertão" como um "Ser Tao" -abstração que transforma Rosa em uma versão pernóstica de Paulo Coelho.
Se a volubilidade do narrador machadiano a muitos despistou, só vindo a ser desvendada pelo trabalho de Roberto Schwarz, a crítica rosiana criou mais redemoinhos do que veredas. O diplomata foi por vezes confundido com o escritor. Seus depoimentos sobre a função apolítica da literatura e o prefácio fictício de "Tutaméia", no qual opõe "estória" à "história", foram lidos como teoria literária.
Os perigos de uma abordagem materialista, de Finazzi-Agrò, Starling e Bolle, estão em hiperbolizar os significados sociais em detrimento da própria especificidade do texto literário. Corre-se o risco de valorizar uma obra pelos seus aspectos miméticos, num retorno ao determinismo "tal Brasil, qual romance". Como já alertava Antonio Candido em sua primeira crítica sobre Rosa (1946), seu "mundo literário" é construído a partir da experiência vivida no sertão e na erudição.
A obra rosiana não traça um retrato imediato do país, mas inegavelmente dialoga com seu tempo histórico e passa pela mediação das questões brasileiras. Desenham-se no romance cenários de Maquiavel e Hobbes na terra do sol -a luta pela sobrevivência, a subserviência dos excluídos, loucos, jagunços, iletrados, prostitutas, sitiantes-, imagens de um país onde o progresso só faz renascer o atraso.



AS OBRAS
Revista Scripta - nº 3. Ed. da PUC-MG (av. Dom José Gaspar, 500, MG, tel. 0/xx/31/319-1220). 272 págs. R$ 20,00.

Lembranças do Brasil - Teoria, Política, História e Ficção em "Grande Sertão: Veredas" - Heloisa Starling. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 0/xx/21/ 502-7495). 192 págs. R$ 23,00.




Texto Anterior: Fabiano Maisonnave: Desencanto no Brasil
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.