São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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LIVROS
"Beleza em Jogo" mostra como a cultura de exercícios se instala em São Paulo
O culto ao físico

HÉLIO SCHWARTSMAN
especial para a Folha

Movimentar-se sem um objetivo vital, ou seja, fazer exercícios, não é inato do homem. Ninguém inseriria um "bug" desses no nosso programa genético. Cada sociedade cria (ou não) padrões para a atividade física segundo elementos de cultura.
A atual veneração pelos exercícios começou a tomar forma nos anos 20. A glorificação de corpos jovens por meio do esporte opunha-se à idéia de velhice e decadência personificadas na Primeira Guerra Mundial. No caso específico do Brasil, como mostra Mônica Raisa Schpun em "Beleza em Jogo", é em São Paulo que esse movimento se dá de forma mais acentuada.
Na década de 20, a capital paulista reunia condições privilegiadas para que a idéia de cultura física se instalasse e crescesse. Em primeiro lugar, o café transferiu para a cidade uma oligarquia rural endinheirada e disposta a construir uma imagem de modernidade. Em segundo, existia uma forte presença de estrangeiros (em 1920, mesmo depois da "naturalização tácita", eles ainda representavam 35% da população), que trouxe consigo novas práticas esportivas, como o futebol (trazido por ingleses e alemães).
O texto de Schpun, apesar de sua estrutura acadêmica, é agradável e informativo. Citações de jornais e revistas da época e a reprodução de charges dão um colorido especial. Mas a autora está particularmente interessada em mostrar que o esporte é organizado segundo uma lógica extremamente elitista, que se presta a funções de distinção social e de gênero. A demonstração é impecável. Um exemplo eloquente é o do Club Athletico Paulistano, reduto da mais alta burguesia paulistana. A agremiação tenta por todos os meios manter o estatuto de amadorismo no futebol (seus jogadores eram recrutados entre os sócios); quando, em 1930, a tendência profissionalizante (que dava maiores chances aos jogadores de classes mais baixas) se instala definitivamente, o clube abandona os estádios.
Como é quase a regra em textos que abordam a questão dos gêneros, às vezes o feminismo militante ameaça ocupar o lugar do bom senso. A uma dada altura, a autora parece queixar-se da existência de categorias separadas para homens e mulheres em competições. Ela analisa, e muito bem, por sinal, como os homens "se defendem" do surgimento de uma tenista como Suzanne Lenglen (1899-1938), que não perdeu nenhum set que disputou entre 1919 e 1926, além de ter conquistado Wimbledon seis vezes.
Acontece que, em média, os homens são mesmo fisicamente mais fortes que as mulheres, como mostram os resultados de competições em que os/as atletas enfrentam o relógio ou a régua. Ainda que se possa acusar o caráter ideológico de discursos que procuram traçar fronteiras "naturais" entre homens e mulheres, essas fronteiras existem e são, pelo menos no que diz respeito à força física, naturais, uma vez que dadas pelo caráter androgênico da testosterona. Mas já chega. Recaio aqui na mesma prática que Schpun denunciava. Mas é claro que nada disso muda os fatos da natureza.
A autora não fica só na análise do esporte. Outros temas relevantes para a diferenciação dos gêneros, como a cosmetologia, a moda e a idéia de beleza, também são abordados. Descobrem-se aí as raízes de tendências que perduram até hoje, como a valorização da esbeltez (a obesidade é identificada à decadência, à burguesia parasita e inativa) ou a rejeição ao envelhecimento, principalmente o envelhecimento feminino, que, diferentemente do masculino, não traz consigo nem sequer a idéia positiva de experiência.
Depois de ver como o exercício físico se presta às mais nefandas formas de impostura, o leitor talvez encontre mais uma justificativa para não praticá-lo senão em caso de vida ou morte e, assim, agir de modo natural, segundo a sua programação genética.



A OBRA
Beleza em Jogo - Monica Raisa Schpun. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/xx/11/3865-6947). 164 págs. R$ 23,00.



Hélio Schwartsman é formado em filosofia pela USP.


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