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PONTO DE FUGA
A essência e a aura
JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York
Na Antiguidade Clássica
uma grande obra de arte era
definida por sua "essência". Algo único, encontrado pelo
grande artista, situado além da
materialidade do objeto e que
permanecia em suas reproduções. No Renascimento, e até o
século 18, isso ainda era, de um
certo modo, verdadeiro. As
gravuras em metal, que foram,
durante muito tempo, o meio
mais corrente de reproduzir
imagens, assinalavam o artista
que "inventou" ("invenit") e o
artesão que gravou ("sculpsit"): Rafael inv., Raimondi sc.,
por exemplo. A reprodução
gravada parecia uma sorte de
emanação do modelo, guardando suas características mais
essenciais. Foi uma atitude altamente romântica que acentuou o caráter exclusivo do original: Walter Benjamin a levaria a uma vibração extremada
no célebre texto em que se refere à "aura" dos objetos artísticos. A "Santa Ceia", de Leonardo, inspirou a Andy Warhol
um conjunto bastante numeroso de obras, que vão de telas
enormes, com mais de seis metros de comprimento, até pequenos "silk-screens". Todos
conhecem a "Santa Ceia"; poucos, no entanto, viram o original, que sobrevive muito desgastado e arruinado. Warhol
reconquista os jogos entre uma
essência que resistiu ao tempo
para lá da matéria e os modos
de atingi-la por recortes novos,
desencadeando associações
impossíveis sem os procedimentos de reprodução. A
"Santa Ceia", que nossa cultura
banalizou, volta, prenhe de significações, diante de um olhar
que se renova.
Traditore - O debate sobre a
reprodução das obras de arte
não diverge muito de certos
problemas ligados à tradução.
Uma certa mística filológica,
que atinge, de modo sumário,
muitos estudiosos da filosofia,
elege a leitura no original como
única rigorosa e admissível. Se
essa atitude permite uma louvável disciplina, ela esquece a
dimensão cultural dos textos.
Nessa dimensão, as traduções
possuem um papel primordial.
Elas não são apenas um mal
menor para quem não conhece
o idioma de origem. Significam maneiras específicas de
enfrentar um texto com as únicas armas possíveis: as de um
lugar e as de uma época. Seguir
a "Odisséia" no francês de Dacier é descobrir como a cultura
do século 18 percebia o Homero. Borges trouxe a mais aguda
reflexão sobre esses mistérios
na sua análise de quatro traduções de "As Mil e Uma Noites"
e no seu "Pierre Ménard". Ler
um texto no original é, de qualquer forma, traduzi-lo para
uma cultura individual, aqui e
agora. A filologia se pensa científica, intemporal e inimiga das
tradições culturais. Salvo erro,
é na peça "A Lição" que Ionesco avisava: "Cuidado, a filologia leva ao crime".
Ponto - Andy Warhol morreu em 1987. Apenas um mês
depois que sua série "The Last
Supper" foi apresentada no Palazzo Stelline, em Milão, em
frente à igreja de Santa Maria
delle Grazie, onde se encontra
o afresco de Leonardo da Vinci. Nessa vizinhança, seus comentários visuais acerca da
imagem quase apagada da
Santa Ceia instauravam um
diálogo sobre a essência da
criação artística e suas manifestações "existentes". Warhol
criou umas cem variações sobre o tema. Esse conjunto reabre, agora, o Museu Guggenheim do SoHo, em NY, que
estivera fechado para reformas.
Vago - Várias traduções de
um mesmo poema escrito numa língua que o leitor desconhece proporcionam um estranho prazer. Elas vão permitindo intuir a natureza provável de um escrito inaccessível e
vão povoando um vazio com
possíveis. Nenhuma poderá
ser definitiva, nem será apenas
um reflexo esmorecido. Como
o gravador e a pintura que ele
reproduz, a tradução é um modo de penetrar na essência de
um original ausente.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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