São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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PONTO DE FUGA

A essência e a aura

JORGE COLI
especial para a Folha,

em Nova York
Na Antiguidade Clássica uma grande obra de arte era definida por sua "essência". Algo único, encontrado pelo grande artista, situado além da materialidade do objeto e que permanecia em suas reproduções. No Renascimento, e até o século 18, isso ainda era, de um certo modo, verdadeiro. As gravuras em metal, que foram, durante muito tempo, o meio mais corrente de reproduzir imagens, assinalavam o artista que "inventou" ("invenit") e o artesão que gravou ("sculpsit"): Rafael inv., Raimondi sc., por exemplo. A reprodução gravada parecia uma sorte de emanação do modelo, guardando suas características mais essenciais. Foi uma atitude altamente romântica que acentuou o caráter exclusivo do original: Walter Benjamin a levaria a uma vibração extremada no célebre texto em que se refere à "aura" dos objetos artísticos. A "Santa Ceia", de Leonardo, inspirou a Andy Warhol um conjunto bastante numeroso de obras, que vão de telas enormes, com mais de seis metros de comprimento, até pequenos "silk-screens". Todos conhecem a "Santa Ceia"; poucos, no entanto, viram o original, que sobrevive muito desgastado e arruinado. Warhol reconquista os jogos entre uma essência que resistiu ao tempo para lá da matéria e os modos de atingi-la por recortes novos, desencadeando associações impossíveis sem os procedimentos de reprodução. A "Santa Ceia", que nossa cultura banalizou, volta, prenhe de significações, diante de um olhar que se renova.

Traditore - O debate sobre a reprodução das obras de arte não diverge muito de certos problemas ligados à tradução. Uma certa mística filológica, que atinge, de modo sumário, muitos estudiosos da filosofia, elege a leitura no original como única rigorosa e admissível. Se essa atitude permite uma louvável disciplina, ela esquece a dimensão cultural dos textos. Nessa dimensão, as traduções possuem um papel primordial. Elas não são apenas um mal menor para quem não conhece o idioma de origem. Significam maneiras específicas de enfrentar um texto com as únicas armas possíveis: as de um lugar e as de uma época. Seguir a "Odisséia" no francês de Dacier é descobrir como a cultura do século 18 percebia o Homero. Borges trouxe a mais aguda reflexão sobre esses mistérios na sua análise de quatro traduções de "As Mil e Uma Noites" e no seu "Pierre Ménard". Ler um texto no original é, de qualquer forma, traduzi-lo para uma cultura individual, aqui e agora. A filologia se pensa científica, intemporal e inimiga das tradições culturais. Salvo erro, é na peça "A Lição" que Ionesco avisava: "Cuidado, a filologia leva ao crime".

Ponto - Andy Warhol morreu em 1987. Apenas um mês depois que sua série "The Last Supper" foi apresentada no Palazzo Stelline, em Milão, em frente à igreja de Santa Maria delle Grazie, onde se encontra o afresco de Leonardo da Vinci. Nessa vizinhança, seus comentários visuais acerca da imagem quase apagada da Santa Ceia instauravam um diálogo sobre a essência da criação artística e suas manifestações "existentes". Warhol criou umas cem variações sobre o tema. Esse conjunto reabre, agora, o Museu Guggenheim do SoHo, em NY, que estivera fechado para reformas.

Vago - Várias traduções de um mesmo poema escrito numa língua que o leitor desconhece proporcionam um estranho prazer. Elas vão permitindo intuir a natureza provável de um escrito inaccessível e vão povoando um vazio com possíveis. Nenhuma poderá ser definitiva, nem será apenas um reflexo esmorecido. Como o gravador e a pintura que ele reproduz, a tradução é um modo de penetrar na essência de um original ausente.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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