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+ brasil 502 d.C.
Em torno de um prefixo
Sergio Paulo Rouanet
Nada nos separa senão um prefixo -o prefixo pós." Essa frase,
com que pouco antes eu tentara exprimir a diferença entre o
pensamento pós-moderno, representado por Michel Maffesoli, e as minhas
próprias opiniões, não soava tão bem assim, depois de várias taças de vinho tomadas no apartamento parisiense do filósofo. E no entanto antes do vinho essas
diferenças me pareciam claras. Com minha cabeça moderna (e portanto arcaica) eu visualizava o contraste sob a forma de duas colunas paralelas. A coluna
da esquerda, dedicada à filosofia moderna, conteria, digamos, os nomes de Kant,
Marx, Freud e Habermas; a da direita, os
nomes de Nietzsche, Heidegger, Jung e
Foucault. Além dos nomes, as colunas
relacionariam temas. Na coluna da esquerda, haveria palavras como razão,
universalidade e individualidade. Na da
direita, apareceriam termos como intuição, particularidade e comunidade.
Mas tudo isso adquiriu um aspecto artificial e esquemático, depois que o vinho
e a simpatia irresistível de Hélène e Michel Maffesoli começaram a dissolver
barreiras. Onde situar, por exemplo, os
pensamentos que não se deixam aprisionar em diagramas? Por exemplo, Adorno, Horkheimer e Marcuse se consideravam marxistas e, portanto, caberiam na
coluna da esquerda, mas foram profundamente influenciados por Heidegger, o
que lhes asseguraria um lugar de honra
na coluna da direita.
Mas a melhor maneira de tirar a dúvida
sobre a realidade ou não da linha divisória seria examinar temas suscetíveis de
figurar nas duas colunas. Foi o que fiz
mais tarde, e com isso fui forçado a reconhecer que a fronteira exprimia diferenças reais.
Um desses temas seria o termo "concreto". Modernos e pós-modernos se orgulham de serem pensadores do concreto. Mas o termo significa coisas diferentes para cada campo. Os modernos pensam no concreto do conceito; os pós-modernos, no concreto da vida sensível.
O primeiro sentido é o de Hegel, para
quem o espírito só chega ao concreto depois que consegue libertar-se das abstrações vazias dadas pelo aqui e agora da
percepção imediata. O segundo sentido é
muito bem expresso pelo próprio Maffesoli, para quem o concreto está justamente naquilo que para Hegel era o máximo da abstração. Para Maffesoli, o
conceito, no sentido da filosofia alemã, é
uma violência feita ao real, e isso por sua
própria etimologia, pois "Begriff", conceito, é a forma substantivada de "begreifen", compreender, cuja raiz é o verbo "greifen", segurar, apoderar-se agressivamente de uma coisa. Talvez Maffesoli estivesse associando esse "greifen"
brutal à palavra francesa "griffe", garra,
que transparece no verbo português
"agarrar", gesto com que o filósofo arranha raivosamente as coisas, em vez de
deixar-se moldar por elas, fundindo-se
amorosamente com o mundo. Era a
"terna empiria" de que falava Goethe.
Outro tema "anfíbio" seria o sonho coletivo, tratado tanto por modernos, como o marxista Walter Benjamin, quanto
por pós-modernos, como o próprio
Maffesoli.
Para Benjamin, o coletivo sonha, e esse
sonho oferece uma pista para a interpretação da realidade. A realidade sonhada
e a realidade material estão assim entre si
numa relação complementar. Cada elemento da modernidade e a própria modernidade podem ser vistos em sua base
material e em sua transposição imaginária como sonho. Como os sonhos individuais, os sonhos coletivos estão a serviço
da realização do desejo. As forças sociais
que interagem no coletivo são contraditórias, e por isso os desejos são divergentes. Consequentemente cada objeto da
modernidade tem dois vetores, um utópico, voltado para a transformação das
relações sociais, e outro mítico, regressivo, voltado para a perpetuação do status
quo. O sonho coletivo é assim uma unidade tensa de utopia e de mito. A utopia
aponta para a salvação, e o mito imobiliza o homem no ciclo do sempre-igual,
impedindo o advento do genuinamente
novo, condenando-nos à temporalidade
do inferno, do eterno retorno.
Assim, sobre a base material do urbanismo, brota o sonho do urbanismo.
Haussmann (1809-91) passa a ser, por
um lado, o criador de uma Paris mais
perfeita, que produziu novas conexões,
depois de ter destruído as antigas, completando a cidade, em vez de desfazê-la.
É o lado emancipatório do urbanismo,
seu lado utópico. Mas, por outro lado,
Haussmann é a figura assustadora e onipotente que pode fazer avançar os limites de Paris até a terra dos papuas, arrasando todo o planeta e asfixiando o gênero humano debaixo dos escombros. É o
urbanismo como mito.
E que dizer da exposição universal? Sobre a base física dos pavilhões, surge o
sonho da exposição, em toda a riqueza
de sua ambiguidade: utopia de uma técnica a serviço do homem, de uma abundância material disponível para todos,
em outras relações sociais; e mito do progresso linear e automático, pelo qual o
coletivo sonha a mercadoria como fetiche, como escola para todos os condicionamentos, como forma de ofuscar a classe operária com o brilho que emana do
valor de troca.
E a passagem, galeria que atravessa casas e liga ruas, última palavra do luxo industrial, no início do capitalismo? Nasce
o sonho das passagens: sonho utópico da
cidade de Fourier, toda feita de passagens; e sonho mítico de um capitalismo
fóssil, pavoroso, grandes cavernas que
dão acesso às regiões infernais, onde gemem inexauríveis desejos de consumo.
E no entanto é preciso acordar. O sonho tem que ceder lugar à realidade. Mas
o despertar, para Benjamin, tem que ser
induzido "com astúcia", como "o cavalo
de madeira na Tróia dos sonhos". Em
outras palavras, não se trata de recusar o
sonho em nome da realidade, mas sim
de incorporar à vida desperta o saber adquirido durante o sonho. É um desencantamento do mundo, mas não no sentido da "Entzauberung", de Weber, em
que o capitalismo se limita a substituir o
universo mágico pela realidade cinzenta
do mundo tal qual é, mas no sentido de
que os conteúdos utópicos do sonho coletivo, afastados os elementos míticos, se
transformarão em práxis revolucionária.
Maffesoli é quase benjaminiano quando escreve que "o sonho e o pensamento
estão estreitamente ligados, sobretudo
em momentos em que as próprias sociedades sonham sobre si mesmas". A ilusão se reforça quando lemos mais adiante uma referência direta ao próprio Benjamin, a propósito do conceito de "sonhos diurnos", que prenunciam o que
vai acontecer nas épocas seguintes. Mas
o encontro entre ambos é apenas superficial. Toda a teoria de Benjamin aponta
para o despertar, categoria política, enquanto Maffesoli vê no sonho coletivo
uma forma normal e permanente de sociabilidade, fora dos imperativos econômicos e políticos, num mundo comunitário em que a vida da imaginação faça
parte integrante da vida material.
Barbara e eu saímos do apartamento
do nosso amigo com uma certa inveja
desse otimismo pós-moderno, que acredita na possibilidade de uma existência
comunitária baseada em laços afetivos,
longe das pressões da economia global. E
ficou-nos a impressão de que, por sua
vez, Maffesoli talvez tivesse uma certa
nostalgia do otimismo moderno, que se
permite, apesar dos pesares, acreditar
num tempo futuro em que a cidade sonhada possa transformar-se na cidade
dos homens.
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve a cada dois
meses na seção "Brasil 502 d.C.".
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