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+ Cinema
A segunda morte de Lennon
O dramaturgo Gerald Thomas critica o filme "O Assassinato de John Lennon", que tenta entender
Mark Chapman
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
N
ão existe experiência pior do que ter
que escrever sobre
um filme horrível
que retrata um homem horrível que remete a
uma data horrível: esse homem
é Mark David Chapman, o assassino de John Lennon.
Odeio esse tipo de "culto do
mal". Não traz nada. Os "Manson kids" (filhos da extensa família artificial de Charles Manson, que matou a Sharon Tate e
um enorme número de pessoas
na casa de Roman Polanski)
também viraram "cult". Estão
espalhados mundo afora e são
morcegos covardes, imbecis
trocando cartas de um baralho
roubado. Chapman é um deles.
A ida ao filme "The Killing of
John Lennon" [O Assassinato
de John Lennon] já começou
estranha. Naquela própria esquina que há duas décadas ainda se chamava Waverly Cinema (agora é IFC Center) na
Sexta Avenida com a rua 3, no
dia após a morte de John Lennon (9 de dezembro de 1980),
um carro com placa de Nova
Jersey encostou perto do
meio-fio, desceu a janela e uma
voz berrou pra mim, rindo:
"Are you Lennon??? So here
boom boom boom!!!". Consegui ver o dedo indicador simulando um revólver, e o carro
desapareceu. Tremi. A população de Nova York ainda estava
de luto por causa da morte de
Lennon na noite anterior.
Oito de dezembro de 1980,
por uma coincidência mórbida,
eu havia passado a manhã em
frente ao Dakota, prédio onde
moravam Lennon e Yoko, a pedido de Alex Polari de Alverga,
ex-preso político brasileiro e
poeta. Alex queria ser fotografado na frente do Dakota.
Dali fui dirigindo um Buick
Regal, ouvindo a WNEW, a
102,7, e a voz de Scott Muni
veio ao ar pra dizer que "John
Lennon has just been shot"
[Lennon acaba de ser baleado].
Parei o carro. Alguns minutos
mais tarde, a voz de Muni confirmou: "Lennon is dead" [Lennon está morto].
Transtornado, voltei sozinho
pro Dakota. Já havia centenas
de pessoas aos prantos. Estava
frio e eu custava a acreditar que
Lennon estivesse realmente
morto. Quando Hendrix e Joplin morreram, entendi: eram
as drogas, o álcool; havia uma
explicação! Quando Jim Morrison ou Brian Jones morreram,
mesma coisa. Mas Lennon? Tiros? Como assim? Assassinado? Como JFK? Como Luther
King, Malcolm X? Bobby Kennedy? Mata-se um beatle?
Detesto filmes que fazem a
apologia do imbecil ou assassino ou cultivam a imagem daquele que deveria -no mínimo- levar uma enorme porrada por dia! Sim, trabalhei na
Anistia Internacional e digo isso sem a mínima vergonha!
Esse filme não é sobre Lennon, e sim sobre um "Catcher
cult boy". Um desses meninos e
potenciais assassinos que lêem
"O Apanhador no Campo de
Centeio" ("The Catcher in the
Rye", a Bíblia dos "losers") e
sentem que podem sair "sacrificando" ou "salvando" os que
estão para saltar do precipício.
Imbecis e prepotentes.
O assassino é visto em seu segundo habitat, o Havaí, já que é
natural da Geórgia, dirigindo
seu carro amassado.
Chapman começa a enxergar, paranoicamente, semelhanças -mãe confusa, egoísta,
abandono de família, criação
pelos avós, ou tios etc.- e uma
"estonteante" revelação: a de
que John seria seu "alvo". Isso
depois que Chapman folheia
um "coffee-table book" de fotos de John: dúzias delas, nos
telhados, na cama, descabelado, sempre às gargalhadas.
Pronto. Foi acionado o "gatilho". Essas gargalhadas se tornaram "pessoais". John Lennon estaria rindo "pessoalmente" desse imbecil, desse
anônimo no Havaí, a nove horas de vôo daqui, de Nova York.
Mark Chapman, paranóico e
esquizofrênico de carteirinha
(lúcido porém até o último centavo de dólar), se sente traído
pelo seu ídolo e pimba! Simples, não? Simples demais.
Lennon tinha tido uma vida
de beatle e uma vida solo gloriosa. Acumulou zilhões, casas,
iates, fazendas e o apartamento
no Dakota. Diz Chapman em
seu diário: "Isso vindo de um
cara que compôs "Imagine", que
fala em "no possessions'?". Foi
justo essa frase dessa música
que detonou nosso anti-herói.
Pode? Sim, pelo jeito pode!
Está estabelecido o conflito,
não é? Pois é, antes estivesse.
Não existe o tal anunciado "assassinato de John Lennon". É
certo que vemos o John levando o tiro. E a reconstituição da
cena que vimos milhares de vezes nesses 28 anos.
Mas e daí? O que vemos na
tela é "Apanhador no Campo
de Centeio". Uma justificativa
barata e quase religiosa (Chapman levou o livro ao seu julgamento e leu passagens dele).
Aparece a famosa capa da "Time" com o J.D. Salinger, aquela
que o tornou o autor mais famoso e censurado do seu tempo. E tome "Apanhador".
A voz narrada do filme sai do
texto do próprio Chapman, auto-indulgente, medíocre, infantilóide, dizendo como "ama
livros, como adora esse e aquele autor", tentando imitar o estilo do próprio Salinger, que ficou na história por ter exposto
suas influências, desde Kafka e
Dostoiévski até Coleridge. E
Lennon? Nada de Lennon.
Esses "serial killers" (e olha
que dentro do filme ainda há
uma tentativa de metalinguagem:) se julgam "artistas, que
incrível!": o Chapman, já preso
em Rikers Island, vê pela TV o
presidente Reagan levando um
tiro do Hinkley. "Ele fez isso
por minha causa", diz Chapman ao carcereiro, com orgulho! "Agora sou realmente famoso!", conclui.
Jack Abbott, aquele ex-protégé de Norman Mailer, também assassino e autor de "In
the Belly of the Beast" [Na Barriga da Besta], saiu da prisão
em condicional e dois dias depois matou um garçom/ator do
teatro La MaMa no restaurante Binibon. Todos queriam os
direitos exclusivos pra filmar
esse e outros absurdos.
Mailer ainda queria defender
o assassino, mas recuperou
seus sentidos quando a metade
da cidade de Nova York queria
linchar o "beast himself". Ainda bem que ninguém fez filme
de nada, de ninguém, de Abbott
porra nenhuma, os ânimos finalmente se acalmaram. Ainda
bem que Mailer [1923-2007]
está morto. Não sei por que
mantêm esse Chapman vivo às
custas de nossos impostos!
O que aprendemos com tudo
isso? O que deveríamos aprender? Como funciona a mente
doentia de um psicopata? Michel Foucault tem um livro,
"Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e
Meu Irmão", na tentativa de
entender essas mentes.
Existem livros e mais livros
sobre "serial killers" e sobre
"solitary killers" e "serial rapists" e sobre assassinos e psicopatas e esses meninos como
os de Columbine, e nada disso
jamais servirá de nada, a não
ser como objeto de masturbação para acadêmicos!
Esse filme não me levou de
volta àquela data horrível, o 8
de dezembro de 1980. Mas ter
pisado no ex-Waverly Cinema
fez. Pisei numa outra era, junto
com uns três ou quatro gatos
pingados. Todos devem ter se
perguntado "por que essa merda foi filmada?", certos de que
iríamos ver mais John Lennon
e o interior da mente do assassino, a real motivação do crime
e ter um insight sobre esse imbecil. Mas, infelizmente, isso ficou somente numa remota esperança. Assim como ficou
uma remota esperança para
J.D. Salinger virar um imortal.
GERALD THOMAS é autor e diretor de teatro;
entre suas peças, estão "Trilogia Kafka" e
"Flash and Crash Days"
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