São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2008

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+ Cinema

A segunda morte de Lennon

O dramaturgo Gerald Thomas critica o filme "O Assassinato de John Lennon", que tenta entender Mark Chapman

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

N ão existe experiência pior do que ter que escrever sobre um filme horrível que retrata um homem horrível que remete a uma data horrível: esse homem é Mark David Chapman, o assassino de John Lennon. Odeio esse tipo de "culto do mal". Não traz nada. Os "Manson kids" (filhos da extensa família artificial de Charles Manson, que matou a Sharon Tate e um enorme número de pessoas na casa de Roman Polanski) também viraram "cult". Estão espalhados mundo afora e são morcegos covardes, imbecis trocando cartas de um baralho roubado. Chapman é um deles.
A ida ao filme "The Killing of John Lennon" [O Assassinato de John Lennon] já começou estranha. Naquela própria esquina que há duas décadas ainda se chamava Waverly Cinema (agora é IFC Center) na Sexta Avenida com a rua 3, no dia após a morte de John Lennon (9 de dezembro de 1980), um carro com placa de Nova Jersey encostou perto do meio-fio, desceu a janela e uma voz berrou pra mim, rindo: "Are you Lennon??? So here boom boom boom!!!". Consegui ver o dedo indicador simulando um revólver, e o carro desapareceu. Tremi. A população de Nova York ainda estava de luto por causa da morte de Lennon na noite anterior.
Oito de dezembro de 1980, por uma coincidência mórbida, eu havia passado a manhã em frente ao Dakota, prédio onde moravam Lennon e Yoko, a pedido de Alex Polari de Alverga, ex-preso político brasileiro e poeta. Alex queria ser fotografado na frente do Dakota. Dali fui dirigindo um Buick Regal, ouvindo a WNEW, a 102,7, e a voz de Scott Muni veio ao ar pra dizer que "John Lennon has just been shot" [Lennon acaba de ser baleado].
Parei o carro. Alguns minutos mais tarde, a voz de Muni confirmou: "Lennon is dead" [Lennon está morto]. Transtornado, voltei sozinho pro Dakota. Já havia centenas de pessoas aos prantos. Estava frio e eu custava a acreditar que Lennon estivesse realmente morto. Quando Hendrix e Joplin morreram, entendi: eram as drogas, o álcool; havia uma explicação! Quando Jim Morrison ou Brian Jones morreram, mesma coisa. Mas Lennon? Tiros? Como assim? Assassinado? Como JFK? Como Luther King, Malcolm X? Bobby Kennedy? Mata-se um beatle?
Detesto filmes que fazem a apologia do imbecil ou assassino ou cultivam a imagem daquele que deveria -no mínimo- levar uma enorme porrada por dia! Sim, trabalhei na Anistia Internacional e digo isso sem a mínima vergonha! Esse filme não é sobre Lennon, e sim sobre um "Catcher cult boy". Um desses meninos e potenciais assassinos que lêem "O Apanhador no Campo de Centeio" ("The Catcher in the Rye", a Bíblia dos "losers") e sentem que podem sair "sacrificando" ou "salvando" os que estão para saltar do precipício.
Imbecis e prepotentes. O assassino é visto em seu segundo habitat, o Havaí, já que é natural da Geórgia, dirigindo seu carro amassado. Chapman começa a enxergar, paranoicamente, semelhanças -mãe confusa, egoísta, abandono de família, criação pelos avós, ou tios etc.- e uma "estonteante" revelação: a de que John seria seu "alvo". Isso depois que Chapman folheia um "coffee-table book" de fotos de John: dúzias delas, nos telhados, na cama, descabelado, sempre às gargalhadas.
Pronto. Foi acionado o "gatilho". Essas gargalhadas se tornaram "pessoais". John Lennon estaria rindo "pessoalmente" desse imbecil, desse anônimo no Havaí, a nove horas de vôo daqui, de Nova York. Mark Chapman, paranóico e esquizofrênico de carteirinha (lúcido porém até o último centavo de dólar), se sente traído pelo seu ídolo e pimba! Simples, não? Simples demais. Lennon tinha tido uma vida de beatle e uma vida solo gloriosa. Acumulou zilhões, casas, iates, fazendas e o apartamento no Dakota. Diz Chapman em seu diário: "Isso vindo de um cara que compôs "Imagine", que fala em "no possessions'?". Foi justo essa frase dessa música que detonou nosso anti-herói.
Pode? Sim, pelo jeito pode! Está estabelecido o conflito, não é? Pois é, antes estivesse. Não existe o tal anunciado "assassinato de John Lennon". É certo que vemos o John levando o tiro. E a reconstituição da cena que vimos milhares de vezes nesses 28 anos.
Mas e daí? O que vemos na tela é "Apanhador no Campo de Centeio". Uma justificativa barata e quase religiosa (Chapman levou o livro ao seu julgamento e leu passagens dele). Aparece a famosa capa da "Time" com o J.D. Salinger, aquela que o tornou o autor mais famoso e censurado do seu tempo. E tome "Apanhador". A voz narrada do filme sai do texto do próprio Chapman, auto-indulgente, medíocre, infantilóide, dizendo como "ama livros, como adora esse e aquele autor", tentando imitar o estilo do próprio Salinger, que ficou na história por ter exposto suas influências, desde Kafka e Dostoiévski até Coleridge. E Lennon? Nada de Lennon.
Esses "serial killers" (e olha que dentro do filme ainda há uma tentativa de metalinguagem:) se julgam "artistas, que incrível!": o Chapman, já preso em Rikers Island, vê pela TV o presidente Reagan levando um tiro do Hinkley. "Ele fez isso por minha causa", diz Chapman ao carcereiro, com orgulho! "Agora sou realmente famoso!", conclui. Jack Abbott, aquele ex-protégé de Norman Mailer, também assassino e autor de "In the Belly of the Beast" [Na Barriga da Besta], saiu da prisão em condicional e dois dias depois matou um garçom/ator do teatro La MaMa no restaurante Binibon. Todos queriam os direitos exclusivos pra filmar esse e outros absurdos.
Mailer ainda queria defender o assassino, mas recuperou seus sentidos quando a metade da cidade de Nova York queria linchar o "beast himself". Ainda bem que ninguém fez filme de nada, de ninguém, de Abbott porra nenhuma, os ânimos finalmente se acalmaram. Ainda bem que Mailer [1923-2007] está morto. Não sei por que mantêm esse Chapman vivo às custas de nossos impostos!
O que aprendemos com tudo isso? O que deveríamos aprender? Como funciona a mente doentia de um psicopata? Michel Foucault tem um livro, "Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão", na tentativa de entender essas mentes.
Existem livros e mais livros sobre "serial killers" e sobre "solitary killers" e "serial rapists" e sobre assassinos e psicopatas e esses meninos como os de Columbine, e nada disso jamais servirá de nada, a não ser como objeto de masturbação para acadêmicos!
Esse filme não me levou de volta àquela data horrível, o 8 de dezembro de 1980. Mas ter pisado no ex-Waverly Cinema fez. Pisei numa outra era, junto com uns três ou quatro gatos pingados. Todos devem ter se perguntado "por que essa merda foi filmada?", certos de que iríamos ver mais John Lennon e o interior da mente do assassino, a real motivação do crime e ter um insight sobre esse imbecil. Mas, infelizmente, isso ficou somente numa remota esperança. Assim como ficou uma remota esperança para J.D. Salinger virar um imortal.


GERALD THOMAS é autor e diretor de teatro; entre suas peças, estão "Trilogia Kafka" e "Flash and Crash Days"


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