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+ política
O ensaísta Edward Said escreve sobre os desafios atuais colocados aos palestinos
para que possam exprimir sua identidade como cidadãos de um país livre
Um lugar dentro da história contemporânea
Edward Said
especial para a Folha
Uma das frases mais citadas de John F. Kennedy é
"ich bin ein Berliner", dita por ocasião de sua visita, em 1961, à cidade recém-dividida pelo muro. "Eu sou
um berlinense", afirmou para a tumultuosa aclamação
do público presente e de todo o mundo. Foi um gesto de
solidariedade e talvez também de coragem um homem
tão distante das dificuldades de viver numa cidade torturada afirmar que compartilhava a existência dolorosa
de seus cidadãos.
Ninguém pôs em dúvida seu direito de fazê-lo, nem
disse que ele não tinha vivido o suficiente na Alemanha.
Do mesmo modo, quando os estudantes rebeldes da
Paris de 1968 proclamaram aos gritos "nous sommes
tous des juifs" (todos nós somos judeus) para expressar
sua solidariedade aos judeus que haviam sido deportados e exterminados pelos nazistas, ninguém, que eu me
lembre, negou-lhes o direito de fazê-lo, nem os censurou por tomarem uma identidade alheia com o propósito moral de reconhecer e assumir os sofrimentos de
outros seres humanos.
O mesmo ocorreu com muitas pessoas de todo o
mundo, inclusive dos países árabes, cujos sentimentos
de compaixão e solidariedade moral para com as vítimas palestinas de Israel fizeram-nos optar por ser efetivamente palestinos. O falecido Eqbal Ahmad, indiano
de nascimento, paquistanês de nacionalidade, sempre
se referia a si mesmo como um de "nós", palestino por
escolha e não por nascimento. E, no entanto, o discurso
público sobre o Oriente Médio tornou-se tão distorcido
e repreensível, tão influenciado pelos sionistas ocidentais, que o simples fato de reconhecer-se como palestino
de nascimento traz, há tempos, o estigma da delinquência e até da criminalidade.
Camisetas da Intifada
No meu caso particular,
recordo perfeitamente que, logo que obtive meu primeiro título na universidade e quando começava a preparar meu doutorado em letras, se me perguntavam
minha nacionalidade, eu me identificava, de modo bem
consciente, como árabe. Ou seja, evitava propositalmente o problema de explicar que na realidade eu era
palestino, de Jerusalém, com tudo o que isso acarretava.
Deve-se reconhecer o mérito perene da OLP, entre
1968 e 1982, cujo surgimento permitiu a todos os palestinos identificar-se como pertencentes a um povo, na
realidade a uma nação, ainda que no exílio e despossuída. E durante a Intifada esse orgulho de pertencer a uma
identidade que lutava corajosamente por sua sobrevivência, fazendo frente aos esforços por extingui-la ou
negá-la, estendeu-se por toda a parte.
Em Praga, a resistência ao governo de partido único
era expressa com as camisetas da Intifada vestidas pelos
jovens manifestantes. O mesmo aconteceu na África do
Sul durante os últimos dias do apartheid, em 90-91. Ser
palestino e rebelar-se contra os soldados de ocupação
israelenses era, de fato, dar maior profundidade e significado à luta contra a discriminação racial. Por certo,
uma das ironias da história é o fato de que o maior inimigo histórico do povo palestino -o movimento sionista e seus ideólogos mais militantes- tenha extraído
sua força da mesma idéia: que é possível a cada judeu
assumir energicamente sua identidade judaica, em vez
de submeter-se em silêncio à assimilação como cidadão
polonês, russo, norte-americano ou britânico.
A maioria das histórias do sionismo mostra que o
maior problema dos organizadores do movimento era
convencer os judeus da diáspora de que sua identidade
como judeus de nascimento não bastava: para que suas
origens natais se realizassem, tinham também de assumir a identidade nacional de judeus que "regressam" ao
Sião. O mesmo ocorreu recentemente com os palestinos que, desde 1948, foram integrando-se (de boa e má
vontade) à amálgama de povos do país de residência,
até que, em 1970, com vistas à luta política, lhes foi dada
a oportunidade de serem palestinos. Isso não contradiz
a tese defendida por Rashid Khalidi em seu recente livro
sobre a identidade palestina, que afirma a possibilidade
de distinguir uma identidade nacional palestina que remonta a muito tempo atrás na história, na cultura, na
sociedade civil e na retórica política.
Mas deve-se acrescentar que a identidade por escolha
significa um compromisso político de ser palestino,
além de um compromisso ativo não apenas com a criação de um Estado independente, mas com a causa, mais
importante, de acabar com a injustiça e conquistar a liberdade para os palestinos assumirem uma identidade
laica capaz de ocupar seu lugar dentro da história contemporânea.
Atualmente, as pressões contra essa escolha vêm aumentando. Um dos principais objetivos das negociações de Oslo, assumido com grande entusiasmo pelos
EUA e por Israel, é paradoxal, pois implicitamente aceita (para depois anular) a idéia de que a identidade palestina possui uma base mais ampla que a meramente nacionalista. Observando a história recente, percebe-se
que, durante os anos 70 e 80, ser palestino significava estar na vanguarda de várias lutas de libertação, incluídas
aquelas que se travavam muito além do mundo árabe,
em lugares como a África do Sul, a América Latina, a Irlanda e em regiões da Europa e da Ásia.
Prova disso é um encontro recente que tive com um
intelectual maori da Nova Zelândia que, depois de uma
conferência, procurou-me para contar-me em detalhes
o quanto a luta pelos direitos palestinos tem significado
para o movimento maori há pelos menos três décadas.
Encontrei o mesmo entusiasmo em lugares como a
Índia, a Coréia e a Irlanda, e não entre os extremistas,
mas, ao contrário, nos escritos e na prática daqueles que
lutam pelas liberdades civis, de partidários do laicismo
e grupos de mulheres, para os quais a idéia mesma de
identidade palestina representava muito mais que um
simples nacionalismo étnico. Significava atuar contra as
forças do obscurantismo religioso, contra a discriminação baseada no sexo, na desigualdade econômica etc.
Hoje é evidente que a força dessa identidade palestina
motivou a invasão do Líbano por parte de Israel em
1982, e que o objetivo de Ariel Sharon nessa operação
dificilmente se limitaria a destruir a insignificante
ameaça militar que a OLP representava. Vale lembrar
que uma das primeiras coisas que suas tropas fizeram
ao entrar em Beirute oeste, em setembro daquele ano,
foi roubar os arquivos do Centro de Pesquisas da OLP,
um símbolo da força intelectual e moral que, de fato, a
identidade palestina adquirira.
Direito à repatriação
De certo modo, as conversações de Oslo visavam debilitar o cerne dessa idéia de
identidade mais ampla, fazendo com que os palestinos
voltassem às suas cidades, aldeias e clãs de Gaza e da
Cisjordânia, onde Israel e os Estados Unidos, por um lado, e, mais lamentavelmente, sua própria autoridade
nacional, por outro, pudessem cercá-los, confiná-los e
reduzi-los.
Esse esforço e esse aspecto de Oslo tiveram êxito, mas
o centro da atenção voltou-se agora para os 4,5 milhões
de palestinos que ainda se encontram no exílio, cuja
persistente obstinação em expressar sua identidade por
escolha é simbolizada pelo direito ao regresso que continuam a reivindicar.
Não se trata apenas de um desejo ou de uma exigência
geográfica. Esse direito tem, no mínimo, mais cinco significados. É o direito de ter um lugar próprio. É o direito
de permanecer nele. É o direito à repatriação. É o direito
à compensação e à restituição. É o direito coletivo de associação (queremos ser palestinos onde quer que seja) e
de residência. É o direito de coexistir em pé de igualdade com os judeus israelenses.
A Autoridade Palestina simboliza bem claramente a
derrota e a privação da maioria desses direitos. O que
cabe ao resto de nós -e aqui não falo apenas dos palestinos de nascimento- é resistir à tentativa de nos reduzirem, a nós e às nossas idéias, a uma mera questão de
nascimento e de residência física, cujo árbitro final é Israel. É por isso que os atuais planos "internacionais" de
reassentamento da ampla maioria dos refugiados prevêem o envio a lugares como o Iraque, o Canadá, os Estados Unidos e até a Jordânia, além da pressão sobre os
países com grandes comunidades palestinas (como,
por exemplo, o Líbano) para que lhes concedam a cidadania e a residência.
Por mais que a retórica oficial palestina insista hoje no
direito ao regresso, as atitudes passadas da Autoridade
Palestina não constituem um bom precedente. Além
disso, a postura de Israel desde sua fundação, em 1948,
foi a de negar por completo aos palestinos qualquer coisa que se parecesse com o direito de regressar, ao mesmo tempo em que insistia no direito absoluto de qualquer judeu, de qualquer lugar, ao "regresso" e à incondicional cidadania israelense.
Nesta situação, portanto, escolher a identidade palestina significa, de fato, resistir àquilo que os acordos de
Oslo deverão oferecer para a condição final. Não é uma
postura negativa. Significa insistir nos nossos direitos
nacionais e políticos como povo, que nos foram negados, primeiro, pelos britânicos (não se deve esquecer
que a Declaração de Balfour, de 1917, concedeu aos judeus direitos políticos como nação, enquanto aos palestinos prometeu apenas direitos religiosos e civis) e, depois, por Israel e pelos Estados Unidos (e, aparentemente, pela maioria dos países árabes). Significa também que nos mantemos firmes na questão da identidade como algo mais significativo e politicamente democrático que a mera residência e a submissão cega àquilo
que Israel nos ofereça.
O que pedimos como palestinos é o direito de sermos
cidadãos, e não apenas peças no jogo de Oslo, perdido
de antemão. Vale a pena assinalar, ainda, que os israelenses também acabarão perdendo se aceitarem a definição estreita e mesquinha dos palestinos como um povo subjugado e confinado a uma "pátria" manipulada
por seu governo. Dentro de uma década haverá igualdade demográfica entre judeus e árabes na Palestina
histórica. Será melhor aceitarmos logo uns aos outros
como membros plenos de um Estado binacional e laico
do que continuar lutando na que já foi depreciativamente chamada "guerra de pastores de tribos rivais".
Escolher essa identidade é fazer história. Não escolhê-la
é desaparecer.
Edward W. Said é ensaísta palestino, professor da Universidade Columbia (Nova York) e autor, entre outros, de "Orientalismo" e "Cultura e Imperialismo".
Tradução de Sergio Molina.
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