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Enrique Vila-Matas traça um panorama incompleto da literatura a partir
da doença dos escritores que abandonaram seu ofício, como Rimbaud
O mal de Bartleby
LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Bartleby e Companhia", de
Enrique Vila-Matas, misto
de ensaio e ficção, expõe a
crise da literatura moderna
numa forma original, acessível e divertida. Trata-se do levantamento
de um vasto rol de escritores atingidos pela "síndrome de Bartleby".
Bartleby, como se sabe, é a personagem de um conto de Melville, um
modesto escriturário que perturba
seu patrão, o escritório, a ordem social e talvez até mesmo a ordem do
universo pela resposta que costuma
dar a qualquer ordem recebida:
"Preferiria não o fazer". O narrador
de Vila-Matas compara a atitude de
Bartleby com a de numerosos escritores que, "mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca
chegam a escrever; ou então escrevem um ou dois livros e depois renunciam à escrita" (pág. 10). São os
escritores do Não e do Silêncio, cujo
exemplo mais espetacular é Rimbaud, e que constituem uma lista
muito extensa.
Mais do que resenhar este livro, o
que já foi feito neste jornal (ver "Ilustrada" de 28/1) o que pretendo fazer
aqui é comentar algumas sugestões
teóricas nele embutidas. Vila-Matas
não disserta; apresenta "casos" trágicos, tragicômicos ou simplesmente cômicos.
Mesmo correndo o risco de ser
aquela chata que vem falar de assunto sério numa sala em que todos estão rindo de piadas, sinto-me solicitada a fazê-lo porque Vila-Matas
não é ingênuo, e o narrador de seu livro, em vários momentos, insinua
uma reflexão teórica mais ampla.
Em primeiro lugar, é preciso dizer
algo acerca da fascinação exercida
pela personagem de Melville. Nada
fazia prever que um obscuro escriturário, cuja biografia pregressa se ignora e cujos atos se resumem a contemplar um muro e a emitir a famosa frase, até ser conduzido à cadeia e
deixar-se morrer por inanição, se
tornasse uma das mais famosas personagens da ficção moderna. Mas é
justamente o caráter inescrutável de
Bartleby que tem suscitado infinitas
interpretações. Tudo está na resposta "preferiria não o fazer", que não é
negativa nem afirmativa, mas evasiva. Bartleby não é o contestatário de
um poder, mas um resistente passivo que põe em xeque qualquer poder. Sua resposta não permite qualquer contradição ou ilação. Ele é o
mais humilde dos indivíduos, mas
sua possibilidade de dizer que "preferiria não" lhe confere uma dignidade e uma soberania invencíveis.
Desistência como paradigma
Os estudos sobre Bartleby já eram
numerosíssimos no âmbito anglo-saxão, mas foi o posfácio ao conto
escrito por Gilles Deleuze em 1989,
intitulado "Bartleby ou a Fórmula",
que colocou em circulação filosófica
internacional a personagem de Melville e sua frase. Deleuze observa: "A
fórmula arrasadora elimina tão impiedosamente o preferível quanto
qualquer não preferido. Ela abole o
termo a que se refere, e que ela recusa, mas também o outro termo que
ela parecia preservar, e que se torna
impossível".
Depois de Deleuze, outros filósofos contemporâneos se debruçaram
sobre Bartleby, como Giorgio
Agamben ("Bartleby o della Contingenza") e Jacques Derrida (em cursos e trechos de livros). Inicialmente
interessado em Bartleby pelo tema
do "segredo", o último Derrida enfatizava, no escriturário, o tema da
"resistência ética". Outros estudiosos assinalaram a afinidade da atitude de Bartleby com a própria "desconstrução" derridiana, pelo fato de
esta evitar o dualismo do sim ou
não. Vila-Matas não ignora essas intricadas reflexões filosóficas, mas,
travestido em modesto narrador,
evita-as: "De especialista não tenho
nada, sou um rastreador de bartlebys" (pág. 159).
De Bartleby, ele toma a atitude de
desistência, como paradigma daquela adotada por criadores que renunciaram a continuar, a terminar,
ou mesmo a começar uma obra. Os
casos verídicos são numerosíssimos,
sendo os mais conhecidos os de
Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger, autores de obras voluntariamente interrompidas, Mallarmé e seu projeto
do "Livro", Joubert, Arthur Cravan e
Pepín Bello, escritores sem livro.
Mas também há o caso daqueles
tantos que escreveram sobre a dificuldade de escrever: Kafka, Proust.
Como todo rol, o de Vila-Matas é incompleto e, por isso, ampliável. Por
exemplo: ele cita ocasionalmente
Fernando Pessoa, refere o pequeno
heterônimo Barão de Teive, mas se
esquece de dizer que o próprio Pessoa editou apenas dois livrinhos e
deixou sua imensa obra em estado
de projeto. Além de ter escrito uma
"Estética da Desistência".
Poderíamos contestar a falta de
critérios rigorosos para enquadrar
os escritores do Não, já que não é a
mesma coisa um escritor parar de
escrever porque assim decidiu
(Rimbaud), porque adoeceu (Larbaud), porque passou um tempo
drogado (De Quincey), porque
enlouqueceu (Hölderlin) ou porque
se matou (vários). E poderíamos
também apontar certos anacronismos, pois evidentemente um cônego que deixou de escrever, referido
por Cervantes, não o teria feito pela
mesma razão que um Rimbaud.
Mas esse tipo de exatidão é alheio
ao projeto ficcional de Vila-Matas,
que inclui em sua lista personagens
fictícias ou amigos do narrador, de
quem não se sabe se deixaram de escrever por escrúpulo ou por inépcia.
Cobrar qualquer rigor classificatório
a um narrador de ficção seria cair no
ridículo, e a resposta de Vila-Matas
seria: "Preferi não".
O fato é que, ao estabelecer essa lista longa e heteróclita, Vila-Matas
traça um vasto panorama da literatura ocidental e aponta, nesta, uma
crise que não é apenas de hoje, mas
data de mais de um século. Sem
sombra de dúvida, desde o romantismo a literatura sofre de um Mal
que vem se agravando, cuja causa é a
percepção de seu possível desaparecimento. O grande teórico desse Mal
da literatura, que está certamente na
base do livro de Vila-Matas, foi
Maurice Blanchot. Há quase meio
século, em "Le Livre à Venir" (1959),
Blanchot descreveu a crise vivida pelos escritores modernos, que, buscando a própria essência da literatura, tornam a obra impossível.
A literatura moderna morre assim
de seu próprio veneno, como o escorpião que morde sua cauda: "A literatura vai em direção a ela mesma,
à sua essência, que é o desaparecimento". E os escritores que ele analisava são, em grande parte, os mesmos arrolados por Vila-Matas.
Assim, o livro de Vila-Matas é uma
versão jocosa das graves reflexões de
Blanchot, que ele cita na pág. 167 e
parafraseia na página seguinte:
"Quem afirma a literatura em si não
afirma nada. Quem a procura, procura apenas aquilo que lhe escapa,
quem a encontra, encontra apenas
aquilo que está aqui ou, o que é pior,
aquilo que está além da literatura.
Por isso, em suma, cada livro persegue a não-literatura como a essência
daquilo que quer e que gostaria
apaixonadamente de descobrir".
Entretanto Blanchot não é apenas
"inteligente e extravagante", como
diz Vila-Matas na entrevista à "Ilustrada". Foi um dos maiores pensadores do século 20, e não apenas da
literatura. E também é estranho que
ele seja invocado, na mesma entrevista, como o inspirador do próximo
livro do romancista, pois "Bartleby e
Companhia" já é, em larga medida,
tributário de Blanchot. Até mesmo a
evocação do "último escritor" (pág.
146) remete a um capítulo de "Le Livre à Venir", intitulado "Morte do
Último Escritor".
A doença dos escritores atormentados e desistentes é pois um fato
comprovado na literatura da modernidade. Somente, Vila-Matas parece falar de um simples resfriado,
quando se trata de uma doença virtualmente fatal. E, por juntar casos
ilustres e comprovados com casos
fictícios irrisórios, seu livro corre o
risco de reduzir todos os escritores a
uma galeria de malucos e excêntricos. Ora, a dificuldade e até a impossibilidade de continuar escrevendo
"literatura" foi expressa em diários,
cartas e escritos fragmentários de alguns dos maiores escritores modernos. Neles se encontra a impressão
de que tudo já foi dito e de que só
resta a cópia; a afirmação de que as
formas de representação, na linguagem, tornaram-se incapazes de dizer
a totalidade do real, restando apenas
fragmentos e ruínas da grande literatura do passado; a constatação de
que aquilo que se chamava literatura
está fadado a desaparecer e a angústia de ainda não vislumbrar o que
poderia surgir em seu lugar.
O último curso de Roland Barthes
no Collège de France (1978 a 1980)
teve por título "A Preparação do Romance" e tratava exatamente do
conflito entre o desejo de escrever e a
impossibilidade de o fazer. Em sua
penúltima aula, ele registra o "sentimento de que a literatura, como Força Ativa, Mito vivo, está, não em crise (fórmula fácil demais), mas talvez
em via de morrer". Morrendo ele
mesmo, sem escrever o desejado romance, Barthes inscreveu-se na galeria dos "bartlebys".
No momento atual, pode parecer
estranho continuar falando de crise
ou de morte da literatura. Afinal,
continuam a ser escritos e publicados, numa abundância antes nunca
vista, livros que se tornam best-sellers, que são difundidos pela internet, louvados na mídia e generosamente premiados. Mas a questão é:
são ainda livros "de literatura", daquela literatura que visava, na linguagem, o dizer absoluto, a representação reveladora e significante do
mundo?
Tudo indica que a maioria dos novos escritores não tem a menor
preocupação com essas questões antigas e nem mesmo qualquer cuidado com a língua que utilizam, bastando-lhes a satisfação de exibir seus
pequenos egos. Quantos "monólogos interiores" da literatura atual
não deveriam permanecer de fato
interiores, isto é, não publicados?
Vila-Matas fala de um simples resfriado, quando se trata de
uma doença virtualmente fatal
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Literatura do não
Ora, voltemos a Bartleby. Bartleby
pode ser encarado como desistente
ou como resistente. As conclusões
de Vila-Matas, como as de Blanchot,
são críticas, mas não pessimistas.
Blanchot indica como o Não pode
ser salutar, e o silêncio, uma resistência à tagarelice reinante. Octavio
Paz também o dizia: "Nós, escritores
de hoje, devemos reaprender aquela
velha palavra que marcou o começo
da literatura moderna: Não".
Quando Vila-Matas qualifica a literatura do Não como "a única tendência atraente da literatura contemporânea" (pág. 127), ele opta pelo Bartleby resistente: "A enfermidade não é catástrofe, e sim dança, da
qual já poderiam estar surgindo novas construções da sensibilidade"
(pág. 128). E também: "Já que todas
as ilusões de uma totalidade representável estão perdidas, é preciso
reinventar nossos próprios modos
de representação" (pág. 177).
Saída possível, que faz eco à conclusão de Blanchot: "Aquilo em cuja
direção caminhamos é pobre e rico
de um futuro que não devemos imobilizar na tradição de nossas velhas
estruturas". Numa de suas entrevistas, Vila-Matas declarava que o êxito
inesperado de seu livro indica, talvez, que "os leitores estão se tornando mais exigentes literariamente do
que pensam os diretores de marketing ou as grandes editoras". Resta
desejar que os escritores também se
tornem mais exigentes, dizendo Sim
à escrita, e Não à facilidade, à repetição e à vaidade.
Bartleby e Companhia
192 págs., R$ 39,00
de Enrique Vila-Matas. Trad. Maria Carolina
Araújo e Josely Vianna Baptista. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP
01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia"
(Companhia das Letras).
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