São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Enrique Vila-Matas traça um panorama incompleto da literatura a partir da doença dos escritores que abandonaram seu ofício, como Rimbaud

O mal de Bartleby

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bartleby e Companhia", de Enrique Vila-Matas, misto de ensaio e ficção, expõe a crise da literatura moderna numa forma original, acessível e divertida. Trata-se do levantamento de um vasto rol de escritores atingidos pela "síndrome de Bartleby".
Bartleby, como se sabe, é a personagem de um conto de Melville, um modesto escriturário que perturba seu patrão, o escritório, a ordem social e talvez até mesmo a ordem do universo pela resposta que costuma dar a qualquer ordem recebida: "Preferiria não o fazer". O narrador de Vila-Matas compara a atitude de Bartleby com a de numerosos escritores que, "mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca chegam a escrever; ou então escrevem um ou dois livros e depois renunciam à escrita" (pág. 10). São os escritores do Não e do Silêncio, cujo exemplo mais espetacular é Rimbaud, e que constituem uma lista muito extensa.
Mais do que resenhar este livro, o que já foi feito neste jornal (ver "Ilustrada" de 28/1) o que pretendo fazer aqui é comentar algumas sugestões teóricas nele embutidas. Vila-Matas não disserta; apresenta "casos" trágicos, tragicômicos ou simplesmente cômicos.
Mesmo correndo o risco de ser aquela chata que vem falar de assunto sério numa sala em que todos estão rindo de piadas, sinto-me solicitada a fazê-lo porque Vila-Matas não é ingênuo, e o narrador de seu livro, em vários momentos, insinua uma reflexão teórica mais ampla.
Em primeiro lugar, é preciso dizer algo acerca da fascinação exercida pela personagem de Melville. Nada fazia prever que um obscuro escriturário, cuja biografia pregressa se ignora e cujos atos se resumem a contemplar um muro e a emitir a famosa frase, até ser conduzido à cadeia e deixar-se morrer por inanição, se tornasse uma das mais famosas personagens da ficção moderna. Mas é justamente o caráter inescrutável de Bartleby que tem suscitado infinitas interpretações. Tudo está na resposta "preferiria não o fazer", que não é negativa nem afirmativa, mas evasiva. Bartleby não é o contestatário de um poder, mas um resistente passivo que põe em xeque qualquer poder. Sua resposta não permite qualquer contradição ou ilação. Ele é o mais humilde dos indivíduos, mas sua possibilidade de dizer que "preferiria não" lhe confere uma dignidade e uma soberania invencíveis.

Desistência como paradigma

Os estudos sobre Bartleby já eram numerosíssimos no âmbito anglo-saxão, mas foi o posfácio ao conto escrito por Gilles Deleuze em 1989, intitulado "Bartleby ou a Fórmula", que colocou em circulação filosófica internacional a personagem de Melville e sua frase. Deleuze observa: "A fórmula arrasadora elimina tão impiedosamente o preferível quanto qualquer não preferido. Ela abole o termo a que se refere, e que ela recusa, mas também o outro termo que ela parecia preservar, e que se torna impossível".
Depois de Deleuze, outros filósofos contemporâneos se debruçaram sobre Bartleby, como Giorgio Agamben ("Bartleby o della Contingenza") e Jacques Derrida (em cursos e trechos de livros). Inicialmente interessado em Bartleby pelo tema do "segredo", o último Derrida enfatizava, no escriturário, o tema da "resistência ética". Outros estudiosos assinalaram a afinidade da atitude de Bartleby com a própria "desconstrução" derridiana, pelo fato de esta evitar o dualismo do sim ou não. Vila-Matas não ignora essas intricadas reflexões filosóficas, mas, travestido em modesto narrador, evita-as: "De especialista não tenho nada, sou um rastreador de bartlebys" (pág. 159).
De Bartleby, ele toma a atitude de desistência, como paradigma daquela adotada por criadores que renunciaram a continuar, a terminar, ou mesmo a começar uma obra. Os casos verídicos são numerosíssimos, sendo os mais conhecidos os de Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger, autores de obras voluntariamente interrompidas, Mallarmé e seu projeto do "Livro", Joubert, Arthur Cravan e Pepín Bello, escritores sem livro.
Mas também há o caso daqueles tantos que escreveram sobre a dificuldade de escrever: Kafka, Proust. Como todo rol, o de Vila-Matas é incompleto e, por isso, ampliável. Por exemplo: ele cita ocasionalmente Fernando Pessoa, refere o pequeno heterônimo Barão de Teive, mas se esquece de dizer que o próprio Pessoa editou apenas dois livrinhos e deixou sua imensa obra em estado de projeto. Além de ter escrito uma "Estética da Desistência".
Poderíamos contestar a falta de critérios rigorosos para enquadrar os escritores do Não, já que não é a mesma coisa um escritor parar de escrever porque assim decidiu (Rimbaud), porque adoeceu (Larbaud), porque passou um tempo drogado (De Quincey), porque enlouqueceu (Hölderlin) ou porque se matou (vários). E poderíamos também apontar certos anacronismos, pois evidentemente um cônego que deixou de escrever, referido por Cervantes, não o teria feito pela mesma razão que um Rimbaud.
Mas esse tipo de exatidão é alheio ao projeto ficcional de Vila-Matas, que inclui em sua lista personagens fictícias ou amigos do narrador, de quem não se sabe se deixaram de escrever por escrúpulo ou por inépcia. Cobrar qualquer rigor classificatório a um narrador de ficção seria cair no ridículo, e a resposta de Vila-Matas seria: "Preferi não".
O fato é que, ao estabelecer essa lista longa e heteróclita, Vila-Matas traça um vasto panorama da literatura ocidental e aponta, nesta, uma crise que não é apenas de hoje, mas data de mais de um século. Sem sombra de dúvida, desde o romantismo a literatura sofre de um Mal que vem se agravando, cuja causa é a percepção de seu possível desaparecimento. O grande teórico desse Mal da literatura, que está certamente na base do livro de Vila-Matas, foi Maurice Blanchot. Há quase meio século, em "Le Livre à Venir" (1959), Blanchot descreveu a crise vivida pelos escritores modernos, que, buscando a própria essência da literatura, tornam a obra impossível.
A literatura moderna morre assim de seu próprio veneno, como o escorpião que morde sua cauda: "A literatura vai em direção a ela mesma, à sua essência, que é o desaparecimento". E os escritores que ele analisava são, em grande parte, os mesmos arrolados por Vila-Matas.
Assim, o livro de Vila-Matas é uma versão jocosa das graves reflexões de Blanchot, que ele cita na pág. 167 e parafraseia na página seguinte: "Quem afirma a literatura em si não afirma nada. Quem a procura, procura apenas aquilo que lhe escapa, quem a encontra, encontra apenas aquilo que está aqui ou, o que é pior, aquilo que está além da literatura. Por isso, em suma, cada livro persegue a não-literatura como a essência daquilo que quer e que gostaria apaixonadamente de descobrir".
Entretanto Blanchot não é apenas "inteligente e extravagante", como diz Vila-Matas na entrevista à "Ilustrada". Foi um dos maiores pensadores do século 20, e não apenas da literatura. E também é estranho que ele seja invocado, na mesma entrevista, como o inspirador do próximo livro do romancista, pois "Bartleby e Companhia" já é, em larga medida, tributário de Blanchot. Até mesmo a evocação do "último escritor" (pág. 146) remete a um capítulo de "Le Livre à Venir", intitulado "Morte do Último Escritor".
A doença dos escritores atormentados e desistentes é pois um fato comprovado na literatura da modernidade. Somente, Vila-Matas parece falar de um simples resfriado, quando se trata de uma doença virtualmente fatal. E, por juntar casos ilustres e comprovados com casos fictícios irrisórios, seu livro corre o risco de reduzir todos os escritores a uma galeria de malucos e excêntricos. Ora, a dificuldade e até a impossibilidade de continuar escrevendo "literatura" foi expressa em diários, cartas e escritos fragmentários de alguns dos maiores escritores modernos. Neles se encontra a impressão de que tudo já foi dito e de que só resta a cópia; a afirmação de que as formas de representação, na linguagem, tornaram-se incapazes de dizer a totalidade do real, restando apenas fragmentos e ruínas da grande literatura do passado; a constatação de que aquilo que se chamava literatura está fadado a desaparecer e a angústia de ainda não vislumbrar o que poderia surgir em seu lugar.
O último curso de Roland Barthes no Collège de France (1978 a 1980) teve por título "A Preparação do Romance" e tratava exatamente do conflito entre o desejo de escrever e a impossibilidade de o fazer. Em sua penúltima aula, ele registra o "sentimento de que a literatura, como Força Ativa, Mito vivo, está, não em crise (fórmula fácil demais), mas talvez em via de morrer". Morrendo ele mesmo, sem escrever o desejado romance, Barthes inscreveu-se na galeria dos "bartlebys".
No momento atual, pode parecer estranho continuar falando de crise ou de morte da literatura. Afinal, continuam a ser escritos e publicados, numa abundância antes nunca vista, livros que se tornam best-sellers, que são difundidos pela internet, louvados na mídia e generosamente premiados. Mas a questão é: são ainda livros "de literatura", daquela literatura que visava, na linguagem, o dizer absoluto, a representação reveladora e significante do mundo?
Tudo indica que a maioria dos novos escritores não tem a menor preocupação com essas questões antigas e nem mesmo qualquer cuidado com a língua que utilizam, bastando-lhes a satisfação de exibir seus pequenos egos. Quantos "monólogos interiores" da literatura atual não deveriam permanecer de fato interiores, isto é, não publicados?


Vila-Matas fala de um simples resfriado, quando se trata de uma doença virtualmente fatal



Literatura do não
Ora, voltemos a Bartleby. Bartleby pode ser encarado como desistente ou como resistente. As conclusões de Vila-Matas, como as de Blanchot, são críticas, mas não pessimistas. Blanchot indica como o Não pode ser salutar, e o silêncio, uma resistência à tagarelice reinante. Octavio Paz também o dizia: "Nós, escritores de hoje, devemos reaprender aquela velha palavra que marcou o começo da literatura moderna: Não".
Quando Vila-Matas qualifica a literatura do Não como "a única tendência atraente da literatura contemporânea" (pág. 127), ele opta pelo Bartleby resistente: "A enfermidade não é catástrofe, e sim dança, da qual já poderiam estar surgindo novas construções da sensibilidade" (pág. 128). E também: "Já que todas as ilusões de uma totalidade representável estão perdidas, é preciso reinventar nossos próprios modos de representação" (pág. 177).
Saída possível, que faz eco à conclusão de Blanchot: "Aquilo em cuja direção caminhamos é pobre e rico de um futuro que não devemos imobilizar na tradição de nossas velhas estruturas". Numa de suas entrevistas, Vila-Matas declarava que o êxito inesperado de seu livro indica, talvez, que "os leitores estão se tornando mais exigentes literariamente do que pensam os diretores de marketing ou as grandes editoras". Resta desejar que os escritores também se tornem mais exigentes, dizendo Sim à escrita, e Não à facilidade, à repetição e à vaidade.


Bartleby e Companhia
192 págs., R$ 39,00
de Enrique Vila-Matas. Trad. Maria Carolina
Araújo e Josely Vianna Baptista. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP
01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: A mãe de todas as histórias
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.