São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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O princípio do prazer

Reprodução
Sigmund Freud (1856-1939) durante seu exílio, em Londres


O crítico e escritor Phillipe Sollers comenta a correspondência de viagem de Sigmund Freud publicada na França, na qual o pai da psicanálise desdenha dos EUA e descobre, na Itália, a alegria de viver

PHILLIPPE SOLLERS

Jacob, o pai de Freud, teve 12 filhos com duas mulheres diferentes. Sigmund chegou a seis filhos com a mesma mulher. Esse combate entre pai e filho era desigual. Dele resultou um golpe de gênio: a invenção da psicanálise. E depois, a partir dos 40 anos, Sigmund escapa para a Itália no outono.
Sua mulher, Martha, seu "caro tesouro" que aos poucos se torna sua "velha bem-amada", o acompanha um pouco no início, mas se cansa rapidamente. Freud se faz acompanhar de seu irmão caçula, Alexandre, e, depois, cada vez mais de sua cunhada, Minna, da qual não sabemos muito bem se, ao ficar solteira, não participou mais intimamente do que se diz da vida do gênio. Pouco importa: Freud quer ficar tranqüilo, seguir sua paixão arqueológica, rumar para o sul, para o prazer de ver, banhar-se, comer, colecionar.
Ele envia cartões-postais cuidadosamente escolhidos, escreve cartas, prossegue suas descobertas interiores sem dizer uma palavra a respeito.
Contraste fascinante: o autor de "A Interpretação dos Sonhos" (sem o qual ainda acreditaríamos que sonhar resulta de uma visão mística) vive em Veneza, em agosto de 1895, um "conto de fadas que nenhuma fotografia, nenhum relato poderiam explicar". Ele está num "turbilhão", dois dias se transformaram em seis meses, ele vê "coisas incríveis", não está nem cansado nem sério, diverte-se como um escolar em férias.
A Itália é mágica e tem uma "harmonia grandiosa". Ele vai a Pádua, Bolonha, Ravena, Florença e começa até a ser dominado e esmagado por uma "volúpia constante". Em uma catedral, observa centenas de lindas meninas do Friuli numa missa de dia santo: "O esplendor da antiga basílica romana me fez bem em meio à indigência da era moderna".
Em plena descida aos infernos de seu próprio inconsciente (por meio da auto-análise), ele encontra Dante perto de uma floresta de pinheiros ou visitando grutas, deixa-se impregnar pelos afrescos, enquanto Minna escreve: "Ele tem um ar insolentemente esplêndido e está alegre como um canário. Evidentemente, não pára quieto".
Ei-lo à margem do lago de Garda, de uma "beleza paradisíaca", e finalmente em Roma, em setembro de 1901. "É inacreditável que não tenhamos vindo aqui durante anos."
Assim, Sigmund Freud, alegre como um canário, enfia a mão na "Bocca della verità", jurando voltar. O vinho tinto lhe faz um bem enorme. "Hoje, novamente no Vaticano, vimos de novo coisas lindas e saímos como que transportados." Ele decide firmemente terminar sua vida em Roma, mas a história, como sabemos, decidirá de outra forma, e será no exílio, em Londres, em 1939, perseguido pelos nazistas.

Come, bebe, fuma
Em Nápoles, Freud fuma, bebe, come, sente calor demais, toma banhos. Logo está em Sorrento, toma um café "à sombra das árvores, cercado de laranjas amarelas e verdes, cachos de uvas, palmeiras, pinheiros, nogueiras, figueiras selvagens, limoeiros".
Há o Vesúvio, os templos, a gruta da Sibila, a lembrança de Virgílio, cujos versos se encontram em epígrafe na "Interpretação". O esplendor italiano ajuda a sair da confusão dos sonhos, da neurose e da inibição da indigente era moderna. "Compreendo tudo o que ouvimos falar sobre o efeito do sul sobre o caráter e a energia." Sem dúvida: o norte é um erro, como Goethe já havia compreendido.
Vamos mais longe, até a Grécia. Amamos essa frase de Freud, em 1904: "Escrevo ao lado de um cavalo de uma frisa de Fídias". Ele envia a Martha e aos seus, com lembranças afetuosas e assinando não mais "Sigi", mas "Papai", uma reprodução de um trono de Dioniso. Pretende escrever um ensaio sobre o caráter sexual da arquitetura antiga. Não o fará, infelizmente.
E ei-lo novamente em Roma: "As mulheres na multidão são muito belas, na medida em que não são estrangeiras. As romanas, bizarramente, são belas mesmo quando são feias, e, na verdade, há poucas que o sejam entre elas". Isso é dito entre uma visita às catacumbas e a descoberta da "Gradiva", no Vaticano.
Humor ou pudor de Freud diante de "O Amor Sagrado e o Amor Profano", de Ticiano (uma mulher ricamente vestida, outra nua): "O nome que deram a esse quadro não faz o menor sentido, e, aliás, não sabemos que nome lhe dar; basta que seja muito belo".
Na realidade, seu verdadeiro encontro é com o "Moisés" de Michelangelo na igreja de San Pietro in Vincoli, o que permite que [a psicanalista] Elisabeth Roudinesco, em seu prefácio, diga: "Roma é para Freud o que Israel é para Moisés". Sem dúvida, mas Freud entrou em Roma, que, como veremos cada vez mais, não pedia outra coisa.
Em Londres, no Museu Britânico, uma overdose de antigüidades egípcias. E depois a famosa viagem aos EUA, em 1909, e o sucesso em Nova York. É muito importante para a causa da psicanálise, mas o mal-estar está presente: "Os EUA foram uma máquina louca. Estou feliz por ter saído de lá e mais por não precisar ficar". E também: "É de todo modo muito agradável estar novamente na Europa; hoje aprecio esse pequeno continente". Em 1925, Freud será novamente mais categórico: "Eu sempre disse que os EUA só servem para ganhar dinheiro".
Ei-lo agora na Holanda, com seus dois filhos: Ernest e Oliver. Certa tarde, ele analisa Gustav Mahler [1860-1911], que tem problemas com sua mulher, e, sempre rigoroso, após a morte do compositor pede a seu executor testamentário 300 coroas por uma consulta de várias horas.
Mas, enfim, volta ao sul: Roma, Nápoles, Sicília, maravilhas após maravilhas: "O esplendor e o perfume das flores nos parques nos fazem esquecer que estamos no outono". Templos de Segesta e de Selinunte, evocação de uma ária de Mozart. "Parece-me muito natural estar em Roma, sem a menor sombra de impressão de ser um estrangeiro aqui." E também: "Nunca cuidei tanto de mim nem vivi em tal despreocupação, ao sabor de meus desejos e meus caprichos". Ele oferece a si sua flor preferida, a gardênia.

Delícias inauditas
Retrato de Sigmund Freud dândi, com a gardênia. "Vivemos divinamente", ele diz. Estará novamente em Roma em 1923, com sua filha menor, Anna, mas então já doente, com câncer no maxilar. Ao todo, esteve sete vezes nessa cidade, a sua, finalmente, porque confia então a Ernest Jones [1879-1958] que Roma lhe agrada mais a cada ano.
Na verdade, deve-se levar totalmente a sério sua carta de setembro de 1910, de Palermo, "lugar de delícias inauditas". Ele pede desculpas a Martha e a sua família por não fazê-la compartilhar suas alegrias, por falta de meios, e acrescenta: "Não teria sido preciso tornar-me psiquiatra e pretenso fundador de uma nova tendência em psicologia, mas, sim, fabricante de um objeto de uso comum, como papel higiênico, fósforos ou botões de botinas.
É muito tarde agora para mudar de profissão, embora eu continue -egoisticamente, mas em princípio com remorsos- a gozar sozinho de tudo". Resumindo: na verdade, Freud, ao longo de uma vida extraordinariamente produtiva, desfrutou sozinho de tudo.

Phillippe Sollers é escritor e autor de "O Paraíso de Cézanne" (José Olympio), "Sade contra o Ser Supremo" (ed. Estação Liberdade), entre outros. Este texto foi publicado originalmente no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Notre Coeur Tend vers Le Sud - Correspondence de Voyage, 1895-1923 [Nosso Coração Tende ao Sul - Correspondência de Viagem, 1895-1923]
422 págs., 23 euros -R$ 84 de Sigmund Freud. Trad. Jean-Claude Capèle. Ed. Fayard (França).

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/ 11/ 3231-4555) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (0/xx/21/2533-2237) ou no site www.alapage.com



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