São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997.

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ENTENDA A SUA ÉPOCA
Artes plásticas

LISETTE LAGNADO
especial para a Folha

É difícil formular conceitos em pleno vôo do efêmero. A presença de um vocabulário da ``crise'', derivado do universo da medicina, não ronda apenas a filosofia, mas também a arte contemporânea.
Na última década, a interpretação da obra consagrou termos filosóficos e psicanalíticos, notadamente a ``marca'' (Jacques Derrida); a ``desterritorialização'', as ``cartografias do desejo'', a ``dobra'' (Gilles Deleuze); e a teoria do ``abjeto'' (Julia Kristeva). Foi palco, ainda, de questões políticas voltadas para uma afirmação da identidade (o multiculturalismo e os estudos sobre o ``gênero''). A crítica no Brasil, por sua vez, acolheu estas leituras com reserva. Preferiu canonizar as expressões ``arte matérica'' e ``desmaterialização da obra'' (1).
Se os anos 80 enfatizaram uma ``volta à pintura'', na esteira das expressivas camadas de matéria de Anselm Kiefer, hoje celebra-se a dimensão do virtual. O ingresso da fotografia e do vídeo nas mostras de artes plásticas, deixando de figurar no ambíguo estatuto de ``salas especiais'', onde eram tratados como simples artifícios tecnológicos, favoreceu esta vocação para a rapidez e multiplicidade. De todo modo, o foco está no corpo, em sua abordagem fenomenológica, psicológica e política.

Arte abjeta
Tendência que ganhou impulso com a mostra ``Abject Art: Repulsion and Desire in American Art'' (Whitney Museum, Nova York, 1993), o abjeto se funda no binômio atração/repulsão e na ruptura de tabus (religiosos, sexuais). A tradução americana, em 1982, de ``Pouvoirs de l'Horreur - Essai sur l'Abjection'' (Poderes do Horror - Ensaio Sobre a Abjeção), de Kristeva, serviu de fonte teórica para a fusão do sagrado com o escatológico.
±Não por acaso, sua inspiração provém de mulheres (Louise Bourgeois, Annette Messager) e refere-se a uma Ferida, espécie de sublime feminino. Prevalecem imagens sexuais, cavidades segregando seu muco viscoso (em tempos de Aids, Eros beija a morte). Obras de Mike Kelley, Orlan, Kiki Smith, Andres Serrano, Robert Gober, Damian Hirst e Cindy Sherman revelam um corpo desmantelado, o colapso do sentido de autoconservação. Para o crítico Hal Foster, é uma volta violenta do real dentro de uma obscena aproximação (2). Ou, em outras palavras: cenas de catástrofe sem a cena da representação.
±No Brasil, nenhuma mostra encampou tal predileção, embora alguns elementos possam ser elencados na coletiva ``Espelhos e Sombras'', de Aracy Amaral (Museu de Arte Moderna, São Paulo, 1994). É possível localizar uma corruptela do abjeto no abuso de arquivos íntimos, onde são arrolados cartas, fotografias, roupas bordadas e móveis antigos, vasculhando os mínimos cantos da casa.
±Tomada pela promessa de ex-votos, a subjetividade regride para a infância (medo da castração e mímese da mãe), no frenesi da estética de nichos e caixinhas. É a fertilidade do ``pequeno eu'', cujos adeptos elaboram a partir de sua memória de papai-e-mamãe e das doenças correlatas, esquecendo que a produção artística não se confunde com fins terapêuticos.

O informe
Para recolocar os princípios do modernismo (isto é, contra um certo tipo de pós-modernismo), Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois formularam um conceito performativo, o ``informe'', a partir de um verbete de Georges Bataille no ``Dicionário Crítico'' (``Documents'', 1929-30), que mereceu uma ampla exposição no Centro Georges Pompidou (Paris), em 1996.
±O informe é antes um modo de interpretação do que uma categoria estética. Articulado em quatro modos de intervenção, permite uma crítica ao abjeto e, num sentido mais amplo, uma revisão das taxionomias fixas. Refuta a criação de uma norma; dependendo da obra, um mesmo artista pode aparecer em registros diferentes:
±a) horizontalidade: seu paradigma está em Jackson Pollock (1912-1956), que rompeu com o eixo vertical do quadro de cavalete ao pintar sobre a tela esticada no chão;
±b) baixo materialismo: designa uma matéria escatológica, destituída de uma ontologia. A transposição simbólica do excremento em ouro será feita pelo fetichismo.
±c) batida (pulsação): um surto libidinal inquieta a arte retiniana (Marcel Duchamp, ``Rotorelevos'', 1935).
±d) entropia: em qualquer sistema, acumulação e gasto integram o irreversível processo de decomposição da energia. Obras imateriais ou de sucatas industriais decorrem desta instabilidade.
±Cabe relevar que a mostra do ``informe'' incluía Lygia Clark (1920-1988) em duas operações, pulsação e entropia. Esta última, talvez a mais contundente para entender a produção atual, analisou a ação de rasgar a fita de Moebius de Clark (``Caminhando'', 1964).
±Entropia certamente acolheria as ``droguinhas'' (c. 1965), de Mira Schendel (1919-1988). Há irreverência neste diminutivo de droga, substância do bem e do mal. Afinal, como definir esculturas de papel de arroz torcido e trançado, feitas de uma temporalidade de nós sobre nós, flutuando no ar como proposições abertas?
±Desde Eva Hesse (1936-1970), o ponto nodal, tão caro aos lacanianos, atravessou toda sorte de materialidade (cabelo, papel, látex, corda, cobre), oferecendo um amplo repertório de gestos moles que pendem em laços do teto até o chão. Representação mais arcaica do nascimento, é uma estrutura orgânica que traz a marca de um trabalho compulsivo, com ênfase na questão do processo. O gesto está imerso na duração. Nó e diafaneidade (transparência) povoam obras de José Resende e Fernanda Gomes, Ernesto Neto e Rivane Neuenschwander.
±Diametralmente oposto, o monumento arquitetônico, sua força imaginária e construtiva, constitui uma resistência à entropia. As sombras de Regina Silveira e as superfícies frias de Ana Tavares fornecem bons exemplos, no limiar entre design, arquitetura e arte.

A ``instauração''
Idéia tributária de Lygia Clark e Hélio Oiticica (1937-1980), para quem a obra era uma experiência que envolvia a percepção sensorial do corpo do Outro no ambiente. Introduzido por Tunga, o conceito de ``instauração'' chega com a força de uma nova ordem poética. De caráter heterogêneo, serve de matriz para fábulas míticas (pode inserir textos literários). A obra se desencadeia a partir de um movimento que se enreda numa psicótica repetição.
±A primeira instauração pode ser localizada nas ``Xifópagas'' (1981) do artista. O fenômeno, à beira da monstruosidade, exibia uma dupla de moças unidas por uma trança. O público assistia a um rito de iniciação a uma difícil liberdade, em que a medida de cada passo era uma resistência contra a separação dos corpos. Se a instauração remete ao ``happening'', ela se diferencia na mudança da estrutura bilateral artista-meio.
±O autor raramente usa seu próprio corpo como superfície (Cabelo e Laura Lima). Excluído da ação, escolhe e dirige os protagonistas. O acaso é aspirado dentro da energia xamânica da criação, mas seu eventual dano permanece sob controle. Assim funcionam também certos vídeos de Bill Viola.
±Como depende de um corpo em movimento, a instauração pode aludir a uma expansão da pintura gestual. Difere, contudo, da intensidade da Action Painting (Jackson Pollock, anos 50), cuja fúria trazia uma noção forte de sujeito. Instaurar evoca um ``estar à deriva'', espécie de individuação sem consciência que pulsa na matéria.
±Sob a égide de uma experiência interior extática, a carnalidade é pulverizada em corpos estranhos (``Antropologia da Face Gloriosa'', Arthur Omar, 1973-1993). Na instauração, o sentido irrompe de um rasto, excesso, sobra de um acontecimento: sete ninfetas nuas de Tunga, imprimindo sua genitália na argila úmida (``Querido Amigo'', 1996).
±O ateliê do artista é uma rede, no sentido duplo: além de virtual (``web''), retoma uma preguiça (baudelairiana), indolência lânguida propícia à erupção da libido. A instauração é mestre em burlar o sistema comercial da arte, negar-lhe o fetiche, este ``objeto da falta''.

Continuidade/Descontinuidade
Conceito que deverá nortear a próxima Bienal de Veneza, evento para o qual o curador Germano Celant propõe um sobressalto à paralisia da ``angústia da influência''. Neste prisma, a tradição não é vista como uma etapa intransponível. Isto significa abrir novas possibilidades para o passado, uma vez que a criação só pode se dar dentro de um contexto.
±``Continuidade/descontinuidade'' aniquila a idéia de repetição como pastiche de um modelo anterior e retoma a modernidade como projeto ainda não concluído. Como na psicanálise, a reconstrução não é um mero ``retorno''. Supera-se a melancolia de um cenário já em ruínas e sobredenominado por meio de uma autoconsciência do discurso narrativo das vanguardas. Em vez de mitificar o cânone, na figura de uma tradição heróica e gloriosa, trata-se de trabalhar com uma noção de tempo circular, ``futuro-presente-passado''. Segundo Hal Foster, a reavaliação do cânone é tão significativa quanto sua expansão ou descontinuidade.

Notas:
1. Cabe mencionar, ainda, termos cunhados pelos artistas. ``Arte Híbrida'' foi título da mostra reunindo trabalhos de Leda Catunda, Mônica Nador, Sergio Romagnolo e Ana Tavares (Funarte-RJ, Museu de Arte Moderna-SP, Espaço Cultural Banco Francês-Brasileiro, Porto Alegre - 1989). Remetia à ``aculturação criativa da antropofagia''. É curioso notar a atual popularidade de um vocabulário tomado da biologia e do sistema imunológico quando a tese do orgânico, como princípio, já estava presente na biomorfia do surrealismo (Brancusi, Arp).
O jocoso ``Beige'' de Iran do Espírito Santo, Edgard de Souza e Caetano de Almeida (Galeria Luisa Strina, São Paulo, 1996) pretendia ser uma crítica à estética elegante do pós-minimalismo e da pintura abstrata. ``Beige'' é cor de pele e tem a sonoridade imperativa de um ``beije''.
2. Idéia desenvolvida no seu livro ``The Return of the Real'' (MIT Press, 1996).


Lisette Lagnado é autora de ``Conversações com Iberê Camargo'' e ``Leonilson"; foi curadora das exposições ``A Presença do `Readymade' - 80 Anos'' e ``Entre o Desenho e a Escultura''; em 1996 foi uma das curadoras do evento Antarctica Artes com a Folha.

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