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O outsider do prazer
Autor de "Contra-História da Filosofia", que está saindo no Brasil, o francês Michel Onfray diz que o hedonismo foi injusta-mente rebaixado no campo das idéias
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos nomes mais
importantes da cena filosófica francesa contemporânea, Michel Onfray
tem uma presença maciça na
mídia e nas estantes de lançamentos das livrarias.
Mas ele segue uma trilha
"outsider" como professor:
rompeu com o sistema de ensino oficial do país e criou em
2002 uma "Universidade Popular", em Caen (cidade no
norte da França), gratuita e
aberta a todos os públicos.
E dos cursos que vem ministrando ali, para suas enormes
audiências, resultou, como
afirma na entrevista a seguir, a
iniciativa de recontar a história
do pensamento filosófico. Está
fazendo isso em uma monumental "Contra-História da Filosofia", cujo primeiro volume
("As Sabedorias Antigas"), de
um total de nove previstos, está
sendo lançado no Brasil pela
Martins Fontes.
Onfray é defensor militante
de uma doutrina materialista,
atéia e hedonista. Vê nos prazeres do corpo, da gastronomia
ao sexo, o bem supremo. E considera que os manuais tradicionais de filosofia, bem como o
ensino universitário na área,
são deturpados pelo idealismo
herdado de Platão e massificado pela igreja.
A contra-história de Onfray
tenta ser uma "história dos
vencidos", resgatando pensadores e escolas doutrinárias vitimadas pelos autos-de-fé do
regime ditatorial idealista.
FOLHA - Por que decidiu escrever
esse livro?
MICHEL ONFRAY - Abandonei o
ensino porque estava cansado
da política educacional: direção, inspeção, cópias para corrigir. Queria ensinar livremente, gratuitamente, de forma benevolente, pessoas de fora da
instituição. Assim, criei um
curso para pessoas que desejassem filosofia não-institucional.
Comecei pelo hedonismo,
pois me diziam que ele não
constituía uma filosofia, que o
prazer não bastava para fazer
uma filosofia. Decidi mostrar
que isso estava errado, e eis que
parti para nove anos de seminários... Dou esse curso para
700 pessoas toda semana.
FOLHA - O livro pode ser visto como uma espécie de genealogia de
sua filosofia hedonista?
ONFRAY - Sim, certamente.
Sempre disse que me inscrevia
nessa linhagem que se define
por um conjunto de linhas de
força: sensualismo, materialismo, ateísmo, elogio do corpo e
das mulheres, celebração da vida, ódio da morte, do ideal ascético, da renúncia...
FOLHA - Quais são as principais
afirmações e singularidades do livro
com relação aos manuais tradicionais de história da filosofia?
ONFRAY - Impossível resumir
isso em duas palavras! Precisei
de cinco tomos até o século 19 e
precisarei de outros quatro!
Alguns pontos: não há pré-socráticos, pois muitos deles
sobreviveram àqueles que eles
supostamente precederam;
Epicuro não foi o "porco" que
se diz -estóicos e cristãos foram os inventores dessa ficção;
Jesus não existiu historicamente; são Paulo foi um neurótico impotente ao qual se deve a
fórmula do cristianismo planetário; o cristianismo é uma máquina de guerra totalitária;
houve dois séculos de cristianismo hedonista; Montaigne
não escreveu, e sim ditou seus
"Ensaios"; os materialistas
franceses pilharam um desconhecido obscuro, o abade Meslier, que foi o primeiro ateu na
história das idéias; Voltaire foi
um falsificador incomparável;
Sade não foi o libertador do sexo, mas o precursor dos campos de concentração.
Existe uma grande linha de
força hedonista [ao longo dos
séculos], que é a seguinte: Demócrito, Epicuro, Lucrécio,
Montaigne, Espinosa, Meslier,
Bakunin, Stirner, Nietzsche,
Freud etc. Contra a linha de
força da instituição idealista:
Pitágoras, Platão, Descartes,
Kant, Rousseau, Hegel, Marx...
FOLHA - Quais são as mentiras e injustiças mais graves da história oficial da filosofia?
ONFRAY - A pior é ter feito crer
que toda a filosofia estava dentro da história oficial da filosofia, o que contribuiu para o auto-de-fé de milhares de pensadores e de pensamentos -tendo-se por vítimas principais os
atomistas, os sensualistas, os
materialistas, os ateus, os utilitaristas, os vitalistas etc.
FOLHA - Gostaria que o sr. comentasse uma questão levantada na
obra: "O corpo antigo e grego é semelhante ao corpo pós-moderno e
pós-cristão?". A cultura contemporânea de algum modo realiza os
ideais hedonistas da Antigüidade?
ONFRAY - Vivemos com um
corpo cristão, tema de meu
próximo livro, "Le Souci des
Plaisirs" [O Cuidado dos Prazeres]: um corpo dualista, esquizofrênico, mutilado, cindido
entre a alma imaterial e o corpo
material, que gerou a neurose
de nossa civilização cristã.
FOLHA - Não é paradoxal que mesmo filósofos tidos como hedonistas
e materialistas, como Demócrito e
Epicuro, manifestem certas desconfianças e distâncias em relação ao
amor, à paixão, à relação sexual?
ONFRAY - Não: o ideal ascético
atravessa todas as tradições filosóficas, inclusive a hedonista.
O segundo volume de minha
contra-história se intitula "O
Cristianismo Hedonista". Ele
mostra que mil anos de cristianismo, por fora da instituição,
não recusam o corpo: caso dos
gnósticos licenciosos, os Irmãos do Livre Espírito, Erasmo, Montaigne, os libertinos
eruditos do século 17.
FOLHA - Que relações podem ser
apontadas entre o idealismo hegemônico na história das idéias
-"platônico, cristão e alemão", segundo o sr.- e a concepção e prática da filosofia nas universidades?
ONFRAY - A filosofia se tornou
universitária no século 19, depois da Revolução Francesa,
quando cumpria restaurar a
antiga ordem, e o cristianismo
e a monarquia encontravam
em Hegel e no idealismo alemão defensores incomparáveis. A tradição filosófica ainda
vive sob esse regime intelectual. É contra isso que me bato.
FOLHA - No começo de "A Arte de
Ter Prazer" (Martins Fontes), o sr.
narra de forma impressionante um
infarto que sofreu. Chega-se até a
pensar que o episódio representou
uma espécie de momento crítico de
"conversão" sua ao hedonismo...
ONFRAY - Sim, verifiquei [naquele momento] que minhas
intuições estavam bem fundadas: pensava que efetivamente
a morte era a verdade de nosso
destino e que, diante dessa evidência trágica, cumpria desenvolver uma filosofia hedonista
existencial. E experimentei essa verdade na minha carne.
FOLHA - O sr. parece estar de acordo com a frase célebre de Alfred
North Whitehead [1861-1947], segundo a qual a filosofia ocidental
não passa de uma série de notas de
rodapé a Platão. Mas dá a essa tese
uma conotação de denúncia. Por
quê? O sr. se dirige mais contra o
próprio Platão ou contra as interpretações que se fizeram dele ao longo
dos tempos?
ONFRAY - De fato, as coisas são
assim, uma vez que a filosofia
oficial e institucional tomou
Platão como Deus, e necessariamente tudo o que seguiu foi
uma glosa da palavra de Deus.
FOLHA - O sr. conhece o Brasil? Pensa que ele tem afinidades com sua
filosofia hedonista?
ONFRAY - Fui ao Brasil uma vez,
com uma real felicidade. Descobri São Paulo, Rio de Janeiro
e Brasília com um prazer diferente a cada vez, pois me parece
haver mil Brasis! Pelo que vi, o
Rio me pareceu a cidade hedonista por excelência; por outro
lado, vi também as favelas...
FOLHA - O sr. participou de um debate com Nicolas Sarkozy durante a
última campanha presidencial francesa. Quais foram suas impressões e
como avalia o governo dele?
ONFRAY - Ele é um homem psicologicamente frágil que se serve do poder para tentar encontrar um equilíbrio que, é claro,
não encontra. Mas é a França
que paga o pato... Nós nos preparamos para quatro anos loucos e perigosos...
FOLHA - O sr. é um dos principais
nomes do pensamento ateu contemporâneo. Como interpreta essa
aparente expansão atual do interesse das pessoas pela religião ou espiritualidade?
ONFRAY - O fim dos grandes
discursos marxistas deixou o
terreno livre, mas nenhum discurso racionalista o ocupou; assim, são os "pensamentos"
mais fáceis, isto é, os pensamentos mágicos, os mitos, as
fábulas, portanto as religiões,
que reúnem todos os apoios.
Pois sempre se prefere uma
fábula que conforte (a religião)
a um pensamento que inquiete
(a filosofia). Mas é preciso continuar o combate...
AS SABEDORIAS ANTIGAS
Autor: Michel Onfray
Tradução: Monica Stahel
Editora: WMF Martins Fontes (tel.
0/ xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 49,80 (336 págs.)
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