São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

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O outsider do prazer

Autor de "Contra-História da Filosofia", que está saindo no Brasil, o francês Michel Onfray diz que o hedonismo foi injusta-mente rebaixado no campo das idéias

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos nomes mais importantes da cena filosófica francesa contemporânea, Michel Onfray tem uma presença maciça na mídia e nas estantes de lançamentos das livrarias. Mas ele segue uma trilha "outsider" como professor: rompeu com o sistema de ensino oficial do país e criou em 2002 uma "Universidade Popular", em Caen (cidade no norte da França), gratuita e aberta a todos os públicos.
E dos cursos que vem ministrando ali, para suas enormes audiências, resultou, como afirma na entrevista a seguir, a iniciativa de recontar a história do pensamento filosófico. Está fazendo isso em uma monumental "Contra-História da Filosofia", cujo primeiro volume ("As Sabedorias Antigas"), de um total de nove previstos, está sendo lançado no Brasil pela Martins Fontes.
Onfray é defensor militante de uma doutrina materialista, atéia e hedonista. Vê nos prazeres do corpo, da gastronomia ao sexo, o bem supremo. E considera que os manuais tradicionais de filosofia, bem como o ensino universitário na área, são deturpados pelo idealismo herdado de Platão e massificado pela igreja.
A contra-história de Onfray tenta ser uma "história dos vencidos", resgatando pensadores e escolas doutrinárias vitimadas pelos autos-de-fé do regime ditatorial idealista.  

FOLHA - Por que decidiu escrever esse livro?
MICHEL ONFRAY
- Abandonei o ensino porque estava cansado da política educacional: direção, inspeção, cópias para corrigir. Queria ensinar livremente, gratuitamente, de forma benevolente, pessoas de fora da instituição. Assim, criei um curso para pessoas que desejassem filosofia não-institucional.
Comecei pelo hedonismo, pois me diziam que ele não constituía uma filosofia, que o prazer não bastava para fazer uma filosofia. Decidi mostrar que isso estava errado, e eis que parti para nove anos de seminários... Dou esse curso para 700 pessoas toda semana.

FOLHA - O livro pode ser visto como uma espécie de genealogia de sua filosofia hedonista?
ONFRAY
- Sim, certamente. Sempre disse que me inscrevia nessa linhagem que se define por um conjunto de linhas de força: sensualismo, materialismo, ateísmo, elogio do corpo e das mulheres, celebração da vida, ódio da morte, do ideal ascético, da renúncia...

FOLHA - Quais são as principais afirmações e singularidades do livro com relação aos manuais tradicionais de história da filosofia?
ONFRAY
- Impossível resumir isso em duas palavras! Precisei de cinco tomos até o século 19 e precisarei de outros quatro!
Alguns pontos: não há pré-socráticos, pois muitos deles sobreviveram àqueles que eles supostamente precederam; Epicuro não foi o "porco" que se diz -estóicos e cristãos foram os inventores dessa ficção; Jesus não existiu historicamente; são Paulo foi um neurótico impotente ao qual se deve a fórmula do cristianismo planetário; o cristianismo é uma máquina de guerra totalitária; houve dois séculos de cristianismo hedonista; Montaigne não escreveu, e sim ditou seus "Ensaios"; os materialistas franceses pilharam um desconhecido obscuro, o abade Meslier, que foi o primeiro ateu na história das idéias; Voltaire foi um falsificador incomparável; Sade não foi o libertador do sexo, mas o precursor dos campos de concentração.
Existe uma grande linha de força hedonista [ao longo dos séculos], que é a seguinte: Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Montaigne, Espinosa, Meslier, Bakunin, Stirner, Nietzsche, Freud etc. Contra a linha de força da instituição idealista: Pitágoras, Platão, Descartes, Kant, Rousseau, Hegel, Marx...

FOLHA - Quais são as mentiras e injustiças mais graves da história oficial da filosofia?
ONFRAY
- A pior é ter feito crer que toda a filosofia estava dentro da história oficial da filosofia, o que contribuiu para o auto-de-fé de milhares de pensadores e de pensamentos -tendo-se por vítimas principais os atomistas, os sensualistas, os materialistas, os ateus, os utilitaristas, os vitalistas etc.

FOLHA - Gostaria que o sr. comentasse uma questão levantada na obra: "O corpo antigo e grego é semelhante ao corpo pós-moderno e pós-cristão?". A cultura contemporânea de algum modo realiza os ideais hedonistas da Antigüidade?
ONFRAY
- Vivemos com um corpo cristão, tema de meu próximo livro, "Le Souci des Plaisirs" [O Cuidado dos Prazeres]: um corpo dualista, esquizofrênico, mutilado, cindido entre a alma imaterial e o corpo material, que gerou a neurose de nossa civilização cristã.

FOLHA - Não é paradoxal que mesmo filósofos tidos como hedonistas e materialistas, como Demócrito e Epicuro, manifestem certas desconfianças e distâncias em relação ao amor, à paixão, à relação sexual?
ONFRAY
- Não: o ideal ascético atravessa todas as tradições filosóficas, inclusive a hedonista. O segundo volume de minha contra-história se intitula "O Cristianismo Hedonista". Ele mostra que mil anos de cristianismo, por fora da instituição, não recusam o corpo: caso dos gnósticos licenciosos, os Irmãos do Livre Espírito, Erasmo, Montaigne, os libertinos eruditos do século 17.

FOLHA - Que relações podem ser apontadas entre o idealismo hegemônico na história das idéias -"platônico, cristão e alemão", segundo o sr.- e a concepção e prática da filosofia nas universidades?
ONFRAY
- A filosofia se tornou universitária no século 19, depois da Revolução Francesa, quando cumpria restaurar a antiga ordem, e o cristianismo e a monarquia encontravam em Hegel e no idealismo alemão defensores incomparáveis. A tradição filosófica ainda vive sob esse regime intelectual. É contra isso que me bato.

FOLHA - No começo de "A Arte de Ter Prazer" (Martins Fontes), o sr. narra de forma impressionante um infarto que sofreu. Chega-se até a pensar que o episódio representou uma espécie de momento crítico de "conversão" sua ao hedonismo...
ONFRAY
- Sim, verifiquei [naquele momento] que minhas intuições estavam bem fundadas: pensava que efetivamente a morte era a verdade de nosso destino e que, diante dessa evidência trágica, cumpria desenvolver uma filosofia hedonista existencial. E experimentei essa verdade na minha carne.

FOLHA - O sr. parece estar de acordo com a frase célebre de Alfred North Whitehead [1861-1947], segundo a qual a filosofia ocidental não passa de uma série de notas de rodapé a Platão. Mas dá a essa tese uma conotação de denúncia. Por quê? O sr. se dirige mais contra o próprio Platão ou contra as interpretações que se fizeram dele ao longo dos tempos?
ONFRAY
- De fato, as coisas são assim, uma vez que a filosofia oficial e institucional tomou Platão como Deus, e necessariamente tudo o que seguiu foi uma glosa da palavra de Deus.

FOLHA - O sr. conhece o Brasil? Pensa que ele tem afinidades com sua filosofia hedonista?
ONFRAY
- Fui ao Brasil uma vez, com uma real felicidade. Descobri São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília com um prazer diferente a cada vez, pois me parece haver mil Brasis! Pelo que vi, o Rio me pareceu a cidade hedonista por excelência; por outro lado, vi também as favelas...

FOLHA - O sr. participou de um debate com Nicolas Sarkozy durante a última campanha presidencial francesa. Quais foram suas impressões e como avalia o governo dele?
ONFRAY
- Ele é um homem psicologicamente frágil que se serve do poder para tentar encontrar um equilíbrio que, é claro, não encontra. Mas é a França que paga o pato... Nós nos preparamos para quatro anos loucos e perigosos...

FOLHA - O sr. é um dos principais nomes do pensamento ateu contemporâneo. Como interpreta essa aparente expansão atual do interesse das pessoas pela religião ou espiritualidade?
ONFRAY
- O fim dos grandes discursos marxistas deixou o terreno livre, mas nenhum discurso racionalista o ocupou; assim, são os "pensamentos" mais fáceis, isto é, os pensamentos mágicos, os mitos, as fábulas, portanto as religiões, que reúnem todos os apoios.
Pois sempre se prefere uma fábula que conforte (a religião) a um pensamento que inquiete (a filosofia). Mas é preciso continuar o combate...


AS SABEDORIAS ANTIGAS
Autor:
Michel Onfray
Tradução: Monica Stahel
Editora: WMF Martins Fontes (tel. 0/ xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 49,80 (336 págs.)


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