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Murilo Mendes e o mistério da poesia
Maria da Saudade Cortesão Mendes
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Murilo Mendes com um objeto de Lygia Clark, na Bienal de Veneza de 1968 |
Nelson Ascher
Articulista da Folha
Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, há exatos cem anos, no dia 13 de maio de 1901, uma data que o inscreve
na segunda geração da modernidade literária e artística internacional, constatação cronológica
que nem sua carreira nem sua obra haveriam de desmentir.
Nessa época, os membros da primeira geração moderna, nascidos pouco antes, durante ou pouco depois
da década de 1880, encontravam-se na adolescência
ou no começo da juventude e, se ainda não haviam dado à luz, seguramente já traziam, em gestação dentro
de si, o expressionismo e o futurismo, a poesia pós-simbolista e a pintura cubista, as obras e movimentos,
enfim, que, não raro permeados tanto de uma imensa
inventividade e de um dinamismo voraz quanto de
uma violenta iconoclastia e de um otimismo relativamente plausível antes da Primeira Guerra, não apenas
marcariam as décadas iniciais do novo século, como
cantariam, celebrariam e/ou promoveriam o fim do
que ainda restava do "ancien régime", acabando também por se constituir no incontornável ponto de referência de toda a cultura subsequente.
Leve desajuste
Crescendo no interior de uma típica família de classe média da província, o poeta, de
acordo com as informações biográficas, bem como do
rico anedotário que, em seu redor, se desenvolveu ao
que parece desde muito cedo, assumiu logo o papel do
jovem "desajustado", embora seu desajuste, por assim
dizer "leve", se manifestasse principalmente na resistência a concluir os estudos formais, adotar uma profissão convencional, conseguir um emprego estável
ou formar uma família.
É mais ou menos assim que ele viveria até bem entrado na casa dos 40, quando casou com a poeta e tradutora Maria da Saudade Cortesão, filha do grande
historiador português Jaime Cortesão (exilado desde
1940 no Brasil por se opor à ditadura salazarista de seu
país), e quando, depois de passar por uma variedade
de empregos, como os de telegrafista, prático de farmácia, guarda-livros, professor de francês e, já residindo no Rio de Janeiro, arquivista do Patrimônio
Histórico, escriturário num banco etc., obteve, em 46,
algum tipo de estabilidade com o cargo de escrivão
num cartório. Uma posição condizente com o intelectual erudito e poliglota que Murilo era não lhe seria
dada antes dos anos 50: entre 52 e 56 esteve em missão
cultural na Bélgica e na Holanda, deu palestras na
França, conferências no Brasil e, em 57, como professor de cultura brasileira da Universidade de Roma, se
instalou definitivamente na Europa, onde, celebrado,
premiado, traduzido para outras línguas e reconhecido pelos principais poetas e artistas do continente,
morreria em 1975.
Do modesto percurso existencial do cidadão Murilo
Mendes não seria exatamente fácil inferir a complexa,
rica e bem-sucedida trajetória do poeta homônimo.
Ele foi nada menos que um dos cinco ou seis maiores
poetas da geração que, dando continuidade ao trabalho pioneiro daqueles que, a partir de 1922, inauguraram e/ou promoveram o modernismo nacional (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Luis Aranha,
Raul Bopp), elaborou os poemas que, em seu conjunto, são consensualmente (ou quase) considerados o
que de melhor se escreveu neste país desde a morte de
Machado de Assis.
Além do próprio Murilo, essa geração era formada
por Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto (apesar de ser quase
dois decênios mais jovem), talvez Cecília Meireles
(mas seguramente não Jorge de Lima) e, de certa forma (malgrado ser algo mais velho), Manuel Bandeira.
Unidade poética
Sem colocar em dúvida a individualidade inconfundível de cada participante da
plêiade acima, um traço marcante que se patenteia nas
obras de todos eles é uma espécie de parentesco estilístico, temático e formal, de tom, linguagem e abordagem, um parentesco que aponta, no limite, para uma
unidade no plano mais abstrato da poética, ou seja, há
uma idéia ou concepção (não só) de poesia que é comum a todos eles e cuja materialização está menos em
cada qual das obras individuais do que na somatória
de todas.
Trocando em miúdos, há, se não poemas ou livros
inteiros, certamente versos, imagens, soluções no trabalho de qualquer um deles que, de um ou de outro
modo, poderiam ter sido escritos por qualquer um
dos outros. Nesse contexto, o autor que se vale do
maior número de recursos que, embora pudessem ter
sido, não foram usados pelos outros é claramente Murilo Mendes.
Por mais que já em 78 o crítico José Guilherme Merquior afirmasse que "a imagem da obra ímpar" do
poeta mineiro parecia "ter passado de tangente a eixo
da nossa tradição moderna", o último quarto de século não fez mais que enfatizar que de todos era precisamente ele o que estava mais distante do centro, e isso
se deve não só ao fato de ter, mais que seus colegas, se
aproximado do surrealismo ou de ter se mostrado o
mais consequentemente avesso à retomada das formas fixas, mas, acima de tudo, à sua maneira peculiar
de ver o mundo e de abordá-lo em/com sua poesia. O
ginasiano que detestava a matemática virou, ao contrário de seus companheiros de geração, um poeta para o qual, comparada com o pensamento analítico, a
imaginação indiscutivelmente era a principal aptidão
humana.
Foi provavelmente a aliança desses traços diferenciais com a distância física do poeta após ter se radicado na Itália que adiou a chegada de sua obra ao público, restringindo também sua recepção crítica. Entre a
publicação de sua poesia completa até então, em 1959,
e a do alentado volume (perto de 1.800 páginas) chamado "Poesia Completa e Prosa" que, organizado por
Luciana Stegagno Picchio, saiu em 1994 pela editora
Nova Aguilar, houve, numa época -quando o acesso
ao que escreveram seus contemporâneos e predecessores se tornava cada vez mais fácil-, um longo vácuo durante o qual Murilo Mendes só era (ou podia
ser) lido em antologias ou em algum livro ainda encontrável nas livrarias.
O resultado é que, de todas as grandes obras poéticas
da modernidade brasileira, a dele, e de nenhum modo
por falta de méritos, é a menos influente, discutida ou
mapeada. Se algo de bom resulta de um tal estado de
coisas é que este transforma a obra de Murilo numa
das mais misteriosas do momento e, por isso mesmo,
também numa das mais convidativas que há.
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