São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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Urros silenciosos

"O Homem Sentado no Corredor" e "A Doença da Morte" sugerem uma Marguerite Duras cruel consigo mesma

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Marguerite Duras, que andava em "off", com outras autoras de prestígio cíclico tais como Marguerite Yourcenar, Simone de Beauvoir e Nathalie Sarraute, volta à cena com dois de seus melhores textos ("O Homem Sentado no Corredor" e "A Doença da Morte"), conhecidos aqui desde 1987 e 1984, respectivamente, mas agora apresentados numa edição conjunta, de capa dura, com novas traduções e apensos bibliográficos.
Em sua cola virá a reedição de "O Amante" [Cosacnaify, a ser lançada no segundo semestre], seu aclamado livro, Prêmio Goncourt de 1985, cujo entrecho se tornou mundialmente conhecido pela realização cinematográfica de Jean-Jacques Annaud.
Embora ainda continuem inéditos entre nós alguns de seus livros fundamentais, como "L"Après-Midi de Monsieur Andesmas" [A Tarde do Sr. Andesmas], já se aguarda o lançamento dos "Cadernos da Guerra e Outros Textos" (previsto para setembro pela Estação Liberdade), que testemunham a participação de Duras na Resistência francesa durante a invasão nazista de 1942.
O estilo durasiano, que privilegia uma imbricação cinematográfica do texto e que tanta influência exerceu sobre o "nouveau roman" francês, exibe nestes dois contos sua performance exemplar.
"A Doença da Morte", por exemplo, traz à cena um narrador que funciona ao mesmo tempo como câmera focada sobre um casal em vários atos amorosos. Ele fala ao leitor, mostrando o que se passa, e também com o homem do casal, argüindo-o sobre seus sentimentos e reações (ou a falta destes), além de reproduzir a voz das ocasionais perguntas ou respostas da mulher.
O foco não se desloca (há pouco movimento); permanece fixo no casal, mas vai delineando aos poucos o drama, de maneira velada e às vezes equívoca, como esses flashes que nos filmes jogam apenas com as expressões do olhar.
O personagem se revela afinal como um "uomo" finito, doente da morte que nele se aprofunda e, embora faça sexo com a prostituta que contratou para a experiência, chegando mesmo a levá-la a gozar (numa inversão da expectativa), ele próprio permanece como aquele "rei de um país chuvoso", de Baudelaire, roído pelo tédio, que nada consegue jamais satisfazer.
Talvez haja aqui a negação do amor como razão da vida, que, para Duras, se explica apenas pelo ato de escrever: "Escrever é tentar saber o que se escreveria se escrevêssemos".

A vida como ela foi
Quem conhece a biografia de Duras sabe que se trata de uma "transposição literária", em que tanto o narrador quanto o homem do casal são ela mesma, num dos momentos mais difíceis de sua vida.
Se aqui esses aspectos biográficos se mostram disfarçados e em código, ao longo do tempo a autora acabará se tornando explícita e, em certos casos, até mesmo exibicionista e cruel consigo mesma. Pois Duras escreve, segundo ela própria, para transformar em literatura o que tinha vivido de verdade. "Nada é verdadeiro no real", diz ela.
Assim, para suportar a vida ("para não se suicidar"), ela escreve, apagando-se e refazendo-se, substituindo-se, mimetizando-se, numa tentativa de se tornar o personagem de si mesma ("Escrever é também não falar. Calar-se. Urrar sem ruído.").
E escrever foi uma das inúmeras atividades a que Duras se dedicou: além de escritora, sempre esteve à frente das manifestações políticas francesas, desde os tempos em que participava, com o marido, Robert Antelme, de movimentos maquis ao lado de François Mitterrand; alistou-se no Partido Comunista em 1943 para abandoná-lo em 1950, depois do golpe de Praga; participou das marchas contra a Guerra da Argélia (em 1960) e também pela abolição da lei contra o aborto, ao lado de Simone Beauvoir e Jeanne Moreau (em 1971).

Frustração com "O Amante"
Dedicou-se igualmente ao teatro, como autora, diretora e intérprete; fez gravações, adaptações, jornalismo, televisão. Mas foi o cinema talvez o que de fato a seduziu, sendo o roteiro de "Hiroshima, Meu Amor" (de Alain Resnais) apenas a mais conhecida de suas dezenas de participações no gênero.
A grande frustração ocorreu com "O Amante", que começou a adaptar a partir do sucesso do livro para uma realização de Claude Berri.
Mas adveio o inevitável: afundando-se cada vez mais no álcool ("Viver com o álcool é viver com a morte ao alcance da mão", dirá nesse amargo "La Vie Materielle", A Vida Material), entra em coma e passa seis meses no hospital; nesse meio tempo, Jean-Jacques Annaud já tinha feito a adaptação e dirigido o filme.
Sentindo-se traída, Marguerite Duras tenta uma nova versão com "O Amante da China do Norte", que não obtém, no entanto, o sucesso do primeiro.
Já completamente deformada pelo álcool, nesse espantoso percurso -como disse Thibaud Doulan em seu necrológio- "da graça sensual e perturbadora de seus tempos de jovem para a careta zombeteira e o olhar de batráquio do monstro sagrado da atualidade", já no fim da vida, com dificuldades de escrever, ditou ao companheiro Yann Andrea seu último livro, que recebeu o expressivo título de "C'Est Tout" (É Tudo, 1995).


IVO BARROSO é poeta e crítico, autor de A Caça Virtual (Record).

O HOMEM SENTADO NO CORREDOR/A DOENÇA DA MORTE
Autora:
Marguerite Duras
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: Cosacnaify
(tel. 0/xx/11/3218-1444)
Quanto: R$ 39,90 (112 págs.)



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