São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

O guerreiro e a vítima

Jorge Coli
especial para a Folha

O filme "Tróia" não é uma adaptação da "Ilíada". O poema homérico relata poucas semanas no décimo ano da guerra. Conta uma história curta que vai da cólera de Aquiles à morte de Heitor. "Tróia", de Wolfgang Petersen, começa muito antes e termina bem depois. O roteiro de David Benioff clarifica a ação e humaniza os personagens. As infidelidades ao poema, que foram denunciadas em tantas críticas, podem ser tomadas como variações a partir de um tema central; nem mais nem menos abusivas do que a mitografia antiga e a literatura moderna já haviam feito. Essas liberdades talvez até sejam sinal de energia criadora: Schiller escreveu uma admirável tragédia, na qual Joana d'Arc morre, de maneira esplêndida, lutando numa batalha.
"Tróia" não tem muita coesão nem muita energia. Sua melhor qualidade talvez seja um kitsch entranhado nas imagens como há muito não se via e que deve melhorar o sabor do filme com o passar do tempo. Aquiles é um garotão bonito do Oklahoma, Helena, uma top model alemã, e o Príamo de Peter O'Toole comove até às tripas.
A guerra de Tróia não foi tão adaptada para o cinema quanto a "Odisséia", que é bem mais divertida. Ela torna-se agora um blockbuster, no momento em que os Estados Unidos se encontram em plena e abominável aventura militar, cujo pretexto é exportar civilização e democracia. "Tróia" retrata os invasores, isto é, os gregos, como bárbaros e brutais, subjugados a um rei ambicioso e sem escrúpulos. Vencidos e arrasados, os troianos dão lições de humanidade, sabedoria, ponderação. "Tróia" resultou num filme desigual, longe da obra-prima. Mas demonstra que Hollywood não é uma fábrica subserviente de ideologias sob encomenda.

Dom - A vitalidade de Hollywood vem de par com uma estranha capacidade em incorporar, de maneira vital, problemas complexos em seus filmes, mesmo naqueles que parecem os mais comerciais. Está claro, nunca se trata de um projeto intelectual ou de intenções artísticas elevadas. Isso não impede que, por meios que não são os do conceito ou da tese, a arte brote ali, complexa e inquieta.

Mal-estar - No filme de Petersen, a guerra é tratada em modo realista e prosaico; encontra-se nos avessos da poesia épica. Buscou-se uma "verdade" segundo a qual os motivos nobres ou líricos são desmentidos pelo cinismo dos interesses sórdidos. É como se a "autenticidade histórica" fosse mais convincente do que o mito.
"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, afirma-se também num verismo convicto. Aquilo que era, tal como era; até as línguas faladas no filme são, como se sabe, as da época. Como se sabe também, o filme foi acusado de anti-semitismo. Nisso, ele reacende, de fato, velhas posições presentes na história da Igreja Católica e que esta, nos últimos decênios, buscou combater (não sem tropeços, como assinala Carlo Ginzburg em "Um Lapso do Papa Wojtyla", capítulo de "Olhos de Madeira", Companhia das Letras).
Assim, é difícil ver o filme por trás das convicções que pressupõe e das sensibilidades que fere. Começa num cenário onírico, onde se infiltra um diabo estranho; depois, é um pesadelo que se desencadeia. A violência física que torna o corpo de Cristo uma chaga exposta vem acompanhada por uma angústia insuportável. A verdade desse filme não é a da história: o que parece hoje tão fidedigno baseia-se em convenções destinadas ao envelhecimento. Sua verdade vem, para o bem ou para o mal, de uma verdadeira força cinematográfica.

Sentimentos - Alguns efeitos, em "Tróia", são espetaculares: o avanço de um grupo protegido por uma carapaça de escudos, os enormes rolos de corda incendiada. Os combates coletivos são meio confusos, não muito cruéis, muito menos do que os descritos por Homero. As lutas individuais têm uma vivacidade esportiva. A plástica de Brad Pitt é exibida de todos os ângulos ou quase. O mais difícil de engolir são os espantosos sentimentos classe-média desses semideuses. A bela Helena, por exemplo, suspira e diz algo assim: "Não quero saber de heróis, quero alguém para envelhecer ao meu lado".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.


Texto Anterior: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.