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BRASIL 500 D.C.
A cultura da autenticidade e da confissão leva os homens a atitudes tolas e insensatas
Roteiro social da felicidade
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
Vamos ao tesouro da sabedoria
popular. Conta-se que um louco
procurava algo sob o facho de luz
de um poste. Outro louco se aproxima, pergunta o que ele estava
procurando e obtém como resposta uma chave! O segundo louco
pergunta se ele tem certeza de que
perdera a chave naquele lugar. O
primeiro diz que não, mas só ali
havia bastante luz para que se pudesse ver alguma coisa. O segundo, espantado, diz que o primeiro
é louco e propõe que ambos procurem a chave no escuro.
A emenda é tão ruim quanto o
soneto. Procurar o que se perdeu
no lugar errado, só porque está
iluminado, ou no lugar certo, mas
onde nada se pode enxergar, são
duas saídas insensatas, pois ou
nunca encontraremos o que queremos achar, ou, se acharmos, não
poderemos reconhecer o que encontramos.
A anedota pode metaforizar, para alguns, a cegueira do destino
humano, às voltas com o malogro
inelutável da ilusória realização do
desejo. Entre o desejo e o objeto
existe sempre o empecilho da luz
que nada ilumina ou da escuridão
que nos impede de reconhecer,
quando encontramos, aquilo mesmo que estamos procurando.
Mas, como disse Henry James,
"nosso destino jamais se frustra". A idéia do insucesso "intrínseco" à natureza do desejo pode ser temperada com uma dose
salutar de pragmatismo. Em vez
de sucumbir à sedução da impossibilidade, por que não experimentar outra saída? Por exemplo,
no caso da anedota, por que não
pensar em usar uma boa e simples
lanterna? É isso o que William James dizia, ao evocar o adágio escolástico: "Onde encontrar uma
contradição, faça uma distinção".
Feita a distinção, o enigma ganha
outra descrição, e, quem sabe, virão a surgir novos fachos de luz,
novas lanternas e novos parceiros
na busca do que desejamos.
A impressão que fica, ao se assistir ao filme de Todd Solondz, "Felicidade", é a de "loucos em busca de uma chave". O diretor evita,
com inteligência, a atitude de palmatória do mundo diante dos personagens. Não se trata de afirmar
que os adultos se infantilizaram,
que as crianças perderam a infância ou que as famílias de hoje, artificiais como bonecos playmobil,
perderam o script do que fazer ou
dizer. Trata-se de mostrar o novo
roteiro social da "felicidade": a
confissão e a autenticidade. Em
nome da "autenticidade", os indivíduos se sentem autorizados a
confessar tudo o que sentem ou
pensam, pouco importa o que decorra da confissão.
À primeira vista, tudo parece
uma honesta reação à hipocrisia
dos velhos tempos. No novo código moral, toda ocultação é mentira, portanto qualquer sandice dita
vale cem sabedorias caladas. De
fato, é possível que algo de honesto exista em tudo isso. Mas entre o
compromisso com a verdade e a
compulsão da confissão existe um
formidável abismo moral. No filme, o que é sobremaneira constrangedor não é a desenvoltura
com que os personagens expõem
as fantasias sexuais ou agressivas:
é a incapacidade de dizerem
"não" à ordem cultural de confessar! Fazer das relações humanas
cópias de confessionários religiosos ou divãs de psicoterapias não é
ser mais honesto, sincero ou autêntico: é desistir do exercício da
autonomia.
Há 20 anos, mais ou menos, a
psicanalista Piera Aulagnier dizia
que o direito ao segredo é a condição de se poder pensar. Pensar é
buscar a coerência consigo e, a
partir disso, julgar o que é justo ou
injusto, em decorrência do contexto em que se pensa. Ao renunciarmos ao direito de pensar e julgar, em favor da confissão compulsória, renunciamos ao poder
de selecionar o que é relevante para a vida moral.
Como qualquer forma de consciência de si, a "verdade sentimental obtida por confissão" se
apóia em crenças e regras de conduta que não revelam, de imediato, seus objetivos morais implícitos. A primeira dessas crenças é de
que, ao confessarmos o que sentimos, estamos "descobrindo" algo sobre nós mesmos, até então
enterrado pela dissimulação social
ou pela covardia emocional.
Quem confessa o que sente, mesmo ao preço de sofrimentos, sente
o alívio heróico de padecer pela
"justa causa". Ora, a confissão
sentimental não descobre nada.
Ela inventa, isso sim, uma identidade pessoal que, sem a prática da
confissão, deixaria de existir. Assim como a confissão religiosa
criava a identidade do pecador, a
confissão sentimental cria a identidade do "sujeito emocionalmente maduro", essa pífia figura
da cultura do narcisismo. Para um
budista, um estóico, um Padre do
Deserto ou um vitoriano esclarecido, dedicar-se a confessar as esquisitices da vida íntima seria não
apenas despudor, mas estupidez.
A segunda crença é de que, ao
confessarmos o que julgamos indecente, podemos nos tornar totalmente transparentes à nossa
consciência e à consciência do outro. O mito racionalista da onipotência cognitiva, no ato mesmo de
idolatrar o pretenso "irracional"
humano, recalca o que os moralistas franceses disseram há muito
tempo, e que pode ser sintetizado
na máxima de Pascal: "O coração
tem razões que a própria razão
desconhece". Não precisamos recitar Freud para mostrar quão caricato é o saber psicanalítico usado
como aval científico para a orgia
da confissão leiga atual.
A terceira crença, enfim, é de
que a verdade de nossos desejos,
impulsos ou inclinações é "mais
verdadeira" do que a verdade da
sensibilidade à dor e à humilhação
do outro. Em uma cena do filme, o
aspecto grotesco da cultura da
confissão aparece em toda violência: diante do filho (Rufus Read),
preocupado com os mistérios da
sexualidade masculina, o pai
(Dylan Baker) não hesita em dizer
o que lhe vem à cabeça. A "autenticidade" de seus sentimentos tem
mais valor moral do que a delicadeza para com o sofrimento e a
perplexidade afetiva do filho
criança.
Os personagens de "Felicidade" não são maus, perversos ou
"seres reprimidos" ávidos por liberação; são, pura e simplesmente, indivíduos inconsequentes e irresponsáveis, em relação às atitudes morais que reclamam para si.
Ou seja, todos querem ser compreendidos, tolerados, perdoados
e inocentados no que sentem e dizem, mas nenhum, exceto o personagem de Joy Jordan (Jane
Adams), duvida que a prática da
boa vida consiste, exclusivamente,
em saber e dizer "quem se é" em
matéria de sexo e agressividade.
Passamos da hipocrisia vitoriana,
em que o inferno era o outro, para
o vaudeville nova-iorquino ou californiano da auto-ajuda, em que o
inferno está dentro de nós, até que
venhamos a cuspi-lo na cara dos
outros.
Não temos por que nos sentir
obrigados a escolher entre um ou
outro desses cacoetes mentais. Se
escutarmos William James, entre
outros, podemos jogar fora a
"chave dos loucos" e tentar viver
outras felicidades menos tolas e
infelizes.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e
autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d. C.", da
Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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