São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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PONTO DE FUGA

O bastão e a bola

JORGE COLI
especial para a Folha

em Nova York
Stephen King transcreve o mundo. Sua maestria em recriar objetos, pessoas, relações cotidianas faria dele um grande escritor realista, uma espécie de Balzac do século 20. Mas Stephen King citou uma frase de Gertrude Stein sobre Los Angeles: "Não há aqui aqui". Suas realidades estão num cruzamento incessante e instável. Elas desovam, no mais das vezes, o sobrenatural. Há muito que não se tinha um romance tão perfeitamente construído e tão belo como seu último livro, "The Girl Who Loved Tom Gordon". Ele foge um pouco dos parâmetros de suas outras obras. É curto, quase uma novela, em que nada, em verdade, ultrapassa os limites de uma explicação racional. Talvez, assim, a obra não tenha encontrado, por parte de seus leitores, os ecos habituais tão unanimemente favoráveis. Também, por conter sua imaginação, o autor revela melhor a natureza da própria escrita. Nada é transcendente a ela. O conto iniciatório de uma menina perdida em perigosa mata, consolando-se com a adoração que nutre por um jogador de beisebol, parte das situações familiares mais comuns, da mais banal classe média. Os momentos terríveis da história não atuam como metáforas e, além do que está sendo contado, nada indicam, embora paire sempre uma interrogação sobre a natureza do divino. A resposta, no entanto, não escapa do que é vivido pela narração. Ela está dentro das palavras, na imanência de um boné, de um walkman ou de uma mochila.

JEDI - O tom militarista termina num triunfo "romano", como os que Mussolini podia sonhar. O menino predestinado é sabe-tudo e cheio de si; mais irritante ainda é a sua educação guerreira. Os alienígenas e os robôs são muito mais convincentes como atores do que os humanos. Jar Jar Binks, um anfíbio gozado e simpático, meio rasta, com calças pata-de-elefante, rouba a cena e engendrou a ira de alguns fãs de "Guerra nas Estrelas" (foi lançada, na Internet, uma muito séria "International Society for the Extermination of Jar Jar Binks"). A trama é frouxa e não tem importância nenhuma. Apesar de tudo isso, "Guerra nas Estrelas: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma" guarda uma sedução onírica. São maravilhosos os cenários, reais, como o do suntuoso palácio de Caserta, ou inventados por computadores. É fascinante a multiplicação dos seres mais inverossímeis que povoam a galáxia. Existe muita nostalgia nessa curiosa situação narrativa que faz descobrir o início de uma epopéia cinematográfica, há tempos na memória de tanta gente. O filme falha em alguns momentos espetaculares, como a corrida, tão convencional. Mas o velho encanto permanece agindo.

ÉTER - Uma reflexão mais longa revelaria afinidades e diferenças entre a última obra de Stephen King e o universo dos simbolistas. A trama, além dos contos de fada, lembra Mélisande fugindo na floresta. Mas são os poderes dos objetos evocados no texto que se sintonizam com as ressonâncias misteriosas obtidas por certos escritores daqueles tempos. Maeterlinck, com algum artifício, fazia as vibrações fugirem das palavras em direção a algo que se queria mais profundo. Em Stephen King a profundidade encontra-se na coisa e no dito.

FIN-DE-SIÈCLE - Não há, nesse "Guerra nas Estrelas", uma luta do bem contra o mal. É mais uma questão de alianças, de amigos e inimigos. Os Jedi concentram uma essência do bem, mas surgem como solução militar para as intermináveis tramóias políticas de um parlamento, isto é, para as falhas da democracia. São samurais solitários capazes de consertar o sistema, com risco de derrapagem da república para o império, da democracia para a ditadura.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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