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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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TENSÃO ENTRE A SIMPLES EVOCAÇÃO DE UMA OBRA E SUA REPRESENTAÇÃO COMPLETA APONTA PARA O SURGIMENTO DE UMA ESTÉTICA DO ESBOÇO NO CINEMA, NA DRAMATURGIA E NAS ARTES PLÁSTICAS

O PROCESSO COMO OBRA

por Jean-Claude Bernardet

Noutro dia, estava refletindo sobre ratos. Vi em "Carandiru", de Hector Babenco, a cena em que um personagem enfia a mão na latrina e a retira rapidamente, puxando um rato que lhe mordera o dedo. Minha reação foi bastante indiferente (o corte vem logo depois do movimento do ator, para evitar que o espectador perceba demais que o bicho é de plástico ou algo assim). Liguei a outras cenas. Uma do documentário "Casa de Cachorro", de Thiago Villas Boas, em que o entrevistador pergunta a um sem-teto o que mais lhe desagrada no lugar onde "mora". Ele hesita e responde com forte expressão facial: ratos. Acrescenta, com significativo gesto de mão, que já matou dois. Liguei também ao plano de "Prisioneiro da Grade de Ferro", de Paulo Sacramento, em que se colocou algum queijinho perto da câmera disposta no chão: um rato aproxima-se e o temos em primeiro plano. Esse rato visto em situação improvável ou aquele apenas referido pela palavra e pelo gesto me parecem mais densos, mais expressivos, do que o visto em "Carandiru". O plano do documentário de Rita Buzzar, "Carandiru.Doc", numa cena de "making-off" do filme de Babenco, em que um assistente guia o fotógrafo cuja câmera está quase encostada no peito de cavalos enfurecidos, me pareceu ter mais força e mais violência que as cenas de cavalaria de "Carandiru". A questão que coloca a minha reação, que com certeza não é a do público em geral, é que o não-ver, o evocar, o sugerir, o aludir podem ser mais expressivos que o visto, o representado. A evocação fornece elementos ao espectador e, por não concluir a representação, o deixa trabalhar e estimula sua imaginação. A evocação abre um além do mostrado que, justamente por estar indefinido, pode proporcionar indagações e emoções mais intensas que a representação completa.

"Cinema lido"
A esse respeito, um filme de Marguerite Duras (1914-96) é exemplar. Em "Caminhão" (1977), ela lê o roteiro ao ator Gérard Depardieu. Essa leitura é entrecortada por planos de um imenso caminhão azul circulando por estradas. O roteiro trata de uma mulher que teria ido visitar a irmã no interior e depois teria tomado uma carona no caminhão e conversado bastante com o motorista. A mulher e o motorista não são vistos nunca. Toda vez que Duras cita o caminhão nos vem logo à mente a imagem do caminhão, esse caminhão azul e nenhum outro. Ao passo que, quando se refere à mulher, nenhuma imagem nos vem à mente, ou melhor, vêm várias imagens, diferentes: com a fala de Duras, estamos hipoteticamente construindo a personagem, em várias direções. A imaginação flutua e fica incrivelmente ativa. Filme excelente para pensar a relação imagem/palavra/ imaginação. Ultimamente [a diretora] Tata Amaral tem se interessado pelo "cinema lido" ou o "cinema contado". No ano passado, o adido cultural do Consulado da França em São Paulo organizou leituras de peças curtas da recente dramaturgia francesa. Havia um ator para cada personagem e um esboço de encenação e de interpretação. Muitos dos que presenciaram essas leituras se perguntaram se seria necessário ir mais longe. Não só a compreensão do texto era plena, como a emoção despontava. Uma estranha relação se estabelecia com o ouvinte/espectador. Como não havia nada impositivo, como nada estava determinado, era possível se emocionar, era possível pensar que, se eu fosse o diretor ou o ator/atriz, daria uma linha diferente a esta ou aquela personagem ou cena, e justamente esse jogo de possibilidades, a partir dos estímulos proporcionados pela leitura dramática, permitia que se tivesse acesso às potencialidades do texto, e o texto se enriquecia. E isso criava intensa emoção estética e também proporcionava considerações várias, por exemplo, sobre tal questão social ou outra que poderia aparecer sob outro ângulo nesta ou naquela cena se se tivesse feito outra opção de encenação ou interpretação.

Laconismo
A estética do esboço não é recente na história da arte. Lembremo-nos dos comentário do crítico Fénéon sobre os impressionistas: "No entanto, quanto à técnica, nada de preciso: as obras desses pintores se apresentavam com um jeito de improviso; suas paisagens eram pedaços de natureza vistos de relance, como através de um postigo rapidamente aberto e fechado: era sumário e aproximativo. Essa técnica rigorosa..." (1887, grifo meu). Essas sugestões, esse rato ou essa mulher que não se vêem, essas encenações apenas esboçadas, tudo isso de certa forma lembra o laconismo de que fala Júlio Bressane -e a que seus filmes devem muito da sua expressividade e riqueza- e merece reflexão estética.
Do que se trata? De apresentar elementos visuais e sonoros, verbais ou não. Esses elementos são justapostos sem que se estabeleçam entre eles inter-relações fixas e precisas. São materiais temáticos ou formais que permitem ao espectador construir conexões.
Aparentemente se solicitaria um trabalho de decifração. De fato, não é o caso, porque não há nenhuma verdade, nenhuma mensagem a ser alcançada por baixo (ou por cima) desses elementos e de suas inter-relações frouxas. Uma certa opacidade estimula o espectador a construir conexões, trabalho que será ainda mais estimulado/estimulante se os materiais apresentados forem heterogêneos, díspares. E isso sem que nunca se chegue a uma conclusão que possa parecer correta ou definitiva. Simplesmente a apresentação dos materiais propõe uma área de atuação ao espectador, cujo trabalho pode lhe proporcionar intensa emoção estética, bem como discursos, falas a respeito. E, como não há conclusão a que chegar, esse relacionamento entre espectador e obra a rigor não tem fim.
O fato de esses elementos não estarem fechados numa narrativa homogênea, coesa e unívoca impede que a linguagem seja instrumentalizada, quer dizer, seja colocada a serviço de outra coisa, tal como um enredo ou uma exposição sobre este ou aquele assunto. O fato de que o discurso não se fecha deixa a linguagem constantemente presente, porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada. Isso me parece ser uma das bases do que vem se chamando "cinema de poesia" [ver a esse respeito as discussões entre Ruy Guerra, Júlio Bressane e Joel Pizzini, baseadas em Pasolini (revista "Cinemais", nš 33, 2003)]. Conceber a obra como elementos justapostos e conexões potenciais vai contra a teoria orgânica da arte, pensamento enraizado entre nós desde Aristóteles e que encontra num João Cabral de Melo Neto uma formulação precisa, quando fala do poema como um "organismo acabado". No caso, não há organismo, e, se houver, está desconjuntado.


A obra não é o resultado de um processo de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de criação


Quadro dentro do quadro
Fiquemos mais atentos ao trabalho do espectador. Ele observa os elementos dos quais extrai determinadas informações. Estas serão de natureza diversa e não serão as mesmas para todos os espectadores. A partir daí ele vai tentar construir conexões, o que será provavelmente o momento mais denso de sua relação com a obra. Esse momento está evidentemente baseado num pressuposto, o de que os elementos apresentados não são aleatórios. De alguma forma, o espectador busca uma lógica entre eles, busca uma unidade, a qual não será encontrada, e o caráter disperso dos elementos permanece. Portanto seu trabalho, a rigor, não encontra fim, ele se dá num terreno movediço e se reveste sempre de um caráter hipotético e pode sempre se renovar. Se o momento importante do trabalho, após a observação, sempre renovada, dos elementos consiste em construir conexões, podemos dizer que a área mais produtiva para o espectador não são os elementos em si, mas a potencialidade existente entre eles. Ou seja, é um trabalho sobre os interstícios, sobre o "entre". É essa área do não-visto e do não-dito que é estimulante. Podemos até afirmar que frequentemente os materiais apresentados têm mais valor pela potencialidade intersticial do que em si. O visto e o ouvido como motivadores do não-visto e não-ouvido. Para isso, o visto e o ouvido precisam ser elaborados com rigor. Essas reflexões nos encaminham para uma questão que é o centro do problema. Todos os artistas, de uma forma ou de outra, mental ou concretamente, passam por fases de elaboração desses materiais relativamente ou muito desconexos. Elas são consideradas etapas da elaboração da obra, constituiriam momentos de um processo que tem um fim: a obra. Tomam-se notas para um romance, imaginam-se diálogos ou uma cena para um roteiro, fazem-se rabiscos, esboços, rascunhos. É uma preparação a ser superada pela obra concluída. É o processo de elaboração da obra. Ora, nas "obras" que me inspiram estas reflexões, tendencialmente não há obra. Ou então, a obra é outra coisa. O quê? A obra não é o resultado de um processo de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de criação. Eu sei que tais idéias encontram resistência. Clarice Lispector escreve: "As pessoas pedem que se lhes esconda o processo" ("A Maçã no Escuro"). Esclareçamos que o processo de criação considerado como obra é totalmente diferente das obras concluídas que de algum modo incorporam referência a sua feitura ou ao dispositivo construtivo que as sustenta, como os filmes metacinematográficos, que nos mostram uma câmera ou um ator ensaiando, ou a pintura que constrói um quadro dentro do quadro a partir de uma janela ou um espelho. A crítica genética tem dado passos que talvez apontem na direção aqui assinalada. Essa modalidade crítica, já mais que centenária, parte tradicionalmente de uma obra pronta (literária, mas não necessariamente) e trabalha sobre manuscritos, anotações, versões, variantes, rasuras etc., no sentido de compreender e analisar o processo de escrita. Trata-se de "compreender o nascimento das obras" ou o "itinerário de produção". Mas [o crítico] Philippe Willemart, em entrevista recente, acrescenta: "Muitos colegas minimizam [a obra final como] ponto de partida, eles partem dos manuscritos e consideram o texto publicado como uma das versões possíveis da obra". Essa atitude coloca a obra final como uma das potencialidades do processo de criação e acaba valorizando mais este do que aquela. Se isso nos afasta da teoria orgânica, nos aproxima de outro pensamento, já também bastante antigo. Por exemplo, Paul Valéry, quando escreve que não existe poema acabado, já que este é sempre passível de retoques, e existe poema abandonado pelo autor; "o fazer como principal e tal coisa feita como acessório, eis minha idéia" (1926). [O poeta e crítico] Júlio Castañon Guimarães escreve: "Francis Ponge não só faz de seus textos uma permanente reescrita, como também transforma seus rascunhos em texto, do que dão testemunhos seus últimos livros, que apresentam os dossiês textuais, expondo todas as etapas da produção do texto, um texto que muitas vezes não chega a se concluir, existindo apenas como produção" (1).

Lembrete
Na exposição "A Respeito de Situações Reais" (no Paço das Artes, em São Paulo, em maio de 2003), a esplêndida instalação do cineasta português Pedro Costa permite rica reflexão sobre a relação entre obra e processo de criação. Sobre duas telas justapostas são projetados copiões do filme "No Quarto da Wanda". A cada tela corresponde um fone de ouvido que permite ouvir o som respectivo. A tela da esquerda só apresenta material gravado em interiores, enquanto a outra, gravações em exteriores.
Costa gravou 130 horas de material, que, trabalhado pela montagem, resultou num filme de cerca de três horas. "No Quarto da Wanda" oferece um leque de significações sobre o personagem principal, sobre a droga, sobre o bairro miserável e em processo de destruição pela Prefeitura de Lisboa, onde sobrevivem e se drogam pessoas focalizadas pelo filme.
Anos depois, por sugestão dos curadores Catherine David e Jean-Pierre Rehm, Costa montou essa instalação. Nela, é impossível -esta é pelo menos a minha opinião, não necessariamente compartilhada- reencontrar as significações organizadas pelo filme, e ela não sustenta os discursos sobre Wanda e a droga que foram motivados pelo filme. Então, o que acontece?
Num primeiro momento, podemos dizer que esses copiões relembram o filme e podem reativar os discursos que ele provocou. Usar-se-ia então a instalação como uma espécie de lembrete, mas assim se aproveitaria muito pouco a sua potencialidade. No entanto algo importante já aconteceu nesse primeiro momento: é que a instalação não está sozinha no tempo e no espaço, ela tem uma anterioridade, o filme. E a relação com a instalação depende do conhecimento pelo espectador dessa anterioridade. Num segundo momento, pensamos estar em presença da matéria-prima de que se originaram o filme e suas significações. Portanto temos de alguma forma acesso ao processo de criação do filme. Mas acredito que podemos chegar a um terceiro momento, mais problemático e instigante: esses copiões já não são mais a matéria-prima prévia à elaboração do filme, dado que este já foi realizado, mas são como uma volta da matéria-prima após a construção das significações do filme.
Esses copiões brutos -ou minimamente trabalhados, é claro que houve uma seleção nas 130 horas de gravação- que foram rejeitados ou beneficiados, domesticados pelo trabalho de montagem, retornam. O retorno do rejeitado que não se submete ao beneficiamento da montagem. Ele retorna numa atitude de resistência. Resistência a quê? À obra definitiva e significativa, e isso bloqueia as significações sobre as quais o filme definitivo permitia trabalhar. Essa situação é brutal na sua oposição à obra significativa -e ironicamente provocante.
De fato, a instalação alude a mecanismos de construção: além do interior/exterior já apontado, as duas telas justapostas remetem ao ato elementar de montagem: colar dois planos, o final de um com o início do seguinte numa sucessão temporal.
O observador participa desse ato: com um fone na orelha, ele pode olhar a tela correspondente ou a outra, trabalhando a relação imagem/ som. Mas não se trata propriamente de uma construção de linguagem, antes de um esboço primário, que não permite chegar, como o filme, a Wanda, à droga etc. Ficamos então nessa tensão entre a obra definitiva versus material bruto, que retorna afirmativo e se recusa a se dobrar a mecanismos de significação, pelo menos os do filme.
Essas considerações sobre a instalação de Pedro Costa nos conduzem a outras questões. Desde os primeiros contatos de Costa nesse bairro lisboeta até a instalação, anos se passaram. Por outro lado, filme e instalação não se encontram no mesmo espaço ao mesmo tempo.
Digamos que o "processo Wanda" precisou de tempo para se desenvolver e não cabe numa unidade espacial. Esse tempo me parece de natureza diferente do tempo finalista que precede a feitura de um filme (tantos meses de roteirização, tantas semanas de pré-produção). Não o espaço temporal necessário à preparação e execução da obra, mas o tempo como um dos elementos constitutivos do processo, uma das matérias do processo.
Aproveito para breve digressão sobre o tempo. Na projeção de um filme ou num concerto, o ouvinte/espectador está exposto à obra por uma duração sobre a qual não tem controle (ele pode sair). Diante de um quadro, o observador administra seu tempo, é dono dele. Talvez seja essa uma das razões de relações às vezes difíceis de parte do público com tendências atuais das artes plásticas, que lidam mais e mais com o tempo, em que ele até se torna matéria da obra. O observador tem menos controle sobre sua relação temporal com a obra.
O filme "Arca Russa", de Sukurov, proporciona excelente experiência a esse respeito: o "observador" dentro do filme administra seu tempo, passa rapidamente sobre determinadas obras e se detém à vontade diante de um El Greco. O espectador do filme está adstrito à duração do filme.
O tempo como matéria do processo me parece evidente na complexa instalação de Alejandra Riera na mesma exposição. Em torno ou ao lado de uma deputada curda encarcerada há anos, Leyla Zena, vão se agregando materiais diversos, um livro de Paul Celan, fragmentos de um vídeo feito no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, a "porta verde", vestígio de uma cadeia parisiense onde mulheres foram aprisionadas etc.
Esses numerosos e variados materiais, que se justapõem e permitem diversos relacionamentos entre si, me parecem sedimentações. Como se, no decorrer do tempo e dos acontecimentos, camadas tivessem se agregado num processo cujo ponto de partida é indefinível e que poderá ser abandonado, mas não tem fim necessário. A essas sedimentações, Tata Amaral acrescentou outra ou outras camadas, justapostas numa juke-box, a partir do que o processo de Alejandra Riera lhe sugeria o das suas próprias preocupações A instalação Alejandra Riera/Tata Amaral não é propriamente uma obra, são documentos heterogêneos que assinalam um percurso que continua em curso. A obra é o percurso no decorrer do tempo.
Problema: o mercado cultural organiza-se a partir de objetos definitivos (livro, quadro etc.), com unidade espacial (sala de cinema, museu etc.) e unidade temporal (duração de um filme, de um concerto) e não tem como absorver o processo de criação enquanto obra. Não existe "Ministério das Artes", e "galeria de arte" é uma expressão contraditória.
Nota
1. Para esta e outras referências, ver Eneida Maria de Souza e Wander Mello Miranda, "Arquivos Literários" (Ateliê Editorial , 2003).


Jean-Claude Bernardet é crítico, roteirista e escritor, autor de "Cinema Brasileiro - Propostas para uma História" (ed. Paz e Terra), "Aquele Rapaz" (ed. Brasiliense) e "A Doença" (Companhia das Letras).


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