UOL


São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em "Miramar" e "O Beco do Pilão", Naguib Mahfuz, Prêmio Nobel de Literatura de 1988, traça um amplo painel da história do Egito contemporâneo

Dois romances de duas cidades

Milton Hatoum
especial para a Folha

Alexandria, jóia do Levante, é considerada volúvel, sinuosa, cosmopolita, lasciva. A cidade do Cairo, por sua vez, é séria, intelectual, internacional, árabe e islâmica (1). Essa oposição entre as cidades mais importantes do Egito se ajusta, até certo ponto, ao ambiente de dois romances de Naguib Mahfuz: "Miramar" e "O Beco do Pilão". O primeiro é ambientado em Alexandria, o segundo, no Cairo. Ambos partem de um espaço exíguo (uma pensão, um beco) para alcançar um sentido mais amplo da história do Egito contemporâneo. Romance da desilusão, marcado por uma forte perspectiva histórica, "Miramar" (1967) é, ao mesmo tempo, uma metáfora da sensualidade e da decadência de Alexandria, onde alguns personagens se encontram na pensão que dá título ao livro. Durante uma breve temporada na década de 1960, os hóspedes revelam anseios, temores, ambições, frustrações, paixões. Na verdade, é um encontro de cada personagem com o seu passado, numa Alexandria úmida e invernal, onde todos se reúnem para ouvir a voz da lendária cantora egípcia Umm Khaltum. É na oposição social e ideológica de duas velhas figuras (o jornalista Amer Wadgi e o ex-latifundiário Tolba Marzuq) que Mahfuz faz um recorte da história do Egito na primeira metade do século 20: da primeira revolução (1914-22) -o fim do protetorado britânico, a posse do rei Fuad, o surgimento da Irmandade Muçulmana e do partido nacionalista Wafd- ao movimento nacionalista de Nasser, que culminou na revolução de julho de 1953. Nenhum personagem é alheio à revolução nasserista, que, apesar dos erros e desvios, da excessiva burocracia e da corrupção, marcou a passagem de um Egito arcaico a um país mais moderno, com enormes desigualdades, mas dotado de conquistas sociais e econômicas significativas. No entanto não há laivos de ufanismo nem glória neste romance. O descompasso entre os ideais revolucionários e a dura realidade prevalece sobre as promessas do socialismo nasserista. As "lembranças ambíguas" do velho jornalista Amer são irônicas, mas não cínicas, e o que lhe resta no fim da vida é "um dilema particular, que nenhum partido ou revolução pode resolver".

Amor e conveniência
Cada personagem representa uma origem de classe, seus vínculos mais ou menos fortes com a revolução e a burocracia. O fundo dramático dos mais jovens é a dificuldade da entrega passional, a hesitação entre o amor e as conveniências de um casamento mais seguro. Sarham Al-Biheiri é um jovem economista que trabalha na Companhia Têxtil de Alexandria, entusiasta da revolução, membro da União Socialista, mas que se enreda num esquema de corrupção e encontra um destino trágico. Mansur Bahi, locutor de rádio e ex-comunista, tenta reviver um relação amorosa com a mulher de um amigo e ex-mestre. Hosni Allam, herdeiro de um latifúndio, sonha em abrir um grande negócio, mas leva uma vida besta de playboy, esbanjando em clubes e cassinos ou participando de orgias e bacanais. Todos vivem uma crise existencial, debatendo-se entre uma vida alienada e os compromissos com a revolução; e todos se encantam com uma empregada da pensão, Zohra, uma ex-camponesa, "a rosa selvagem", "a menina exilada, solitária e desonrada", mas que mantém, em sua simplicidade, coragem e autoconfiança, os valores de uma cultura antiga. Filha da terra, bela e hierática, Zohra é o centro do desejo dos três jovens personagens; sua beleza e força moral contrastam com a vida de Mariana, proprietária da pensão decadente e viúva de um oficial britânico, morto em combate durante a guerra.

Poliedro na escuridão
Nesse romance, Mahfuz maneja com muita habilidade os jogos do tempo, alternando o monólogo interior com situações no presente. No início, é como se os hóspedes da pensão Miramar formassem um poliedro na escuridão; aos poucos, cada personagem projeta uma luz na vida dos outros, tornando-os mais complexos, surpreendentes e imprevisíveis. Alguma coisa permanece na penumbra, como lacunas ou dúvidas, dando à imaginação do leitor o poder de preenchê-las. "O Beco do Pilão" (1947) [que chega às livrarias no próximo dia 25] foi escrito depois dos romances históricos sobre o antigo Egito e inaugura a fase realista de Mahfuz, que inclui a trilogia do Cairo e "Filhos do Nosso Bairro". Quase tudo o que acontece no beco é também metáfora de muitos impasses e tragédias no Cairo durante a Segunda Guerra Mundial. Mahfuz lança um olhar agudo sobre as miudezas da vida dos personagens, desfiando pequenos dramas, frustrações e amarguras. Nesse pequeno espaço do Cairo, move-se uma pirâmide social onde cabem vários tipos de personagens que se relacionam por meio de laços familiares, amizades, interesses e casos amorosos. O que ressalta ao longo da narrativa é a própria vida desses personagens e as relações entre eles. Esses laços, com seus trançados de eventos e conflitos, constituem a essência do romance, pois não há um enredo bem delineado, uma trama que conduz a um desfecho ou a um determinado fim.

Tradição e modernidade
O leitor encontra um pouco de tudo nesse beco povoado de muita miséria e pouco esplendor: empresários, jovens egípcios a serviço do Exército britânico, empregados, padeiros, confeiteiros, barbeiros e contadores de histórias. Algumas figuras impressionam como certos pesadelos das "Mil e Uma Noites".
Uma delas, Zaita, o terrível fazedor de aleijados, sonha com uma humanidade de mendigos mutilados; Umm Hamida, historiadora e cronista do beco, é "uma verdadeira enciclopédia de calamidades", capaz de fazer milagres em sua profissão de cafetina casamenteira. Numa época turbulenta e repleta de tabus, a religião, a prostituição e a homossexualidade são abordadas frontalmente, como na história de Kircha, o dono do café, ou na de Abbas e Hamida, uma das mais comoventes do romance.
É no embate entre uma tradição arraigada e um vislumbre de modernidade que "O Beco do Pilão" se situa. Numa cena liminar, o velho contador de histórias é condenado ao silêncio pelo advento do rádio, ameaçando uma tradição que, no entanto, está no centro da obra do prosador egípcio.
Mahfuz faz de "Miramar" e de "O Beco do Pilão" um mundo, e não falta ao grande escritor assunto para isso. Ele reaviva os personagens acanalhados e oportunistas de Balzac, os seres sofridos de Zola, os apaixonados de D.H. Lawrence e narra como um autor moderno, um verdadeiro precursor do gênero romanesco na literatura árabe.
As traduções exemplares de Safa Abou Chahla Jubran e Paulo Daniel Farah representam um passo importante para a edição de outras obras literárias e filosóficas da cultura árabe, de que Naguib Mahfuz é um dos representantes mais consistentes e famosos.
Nota
"Cairo e Alexandria", em "Reflexões sobre o Exílio" (Companhia das Letras), de Edward Said.


Milton Hatoum é escritor, autor dos romances "Dois Irmãos" e "Relato de um Certo Oriente" (ambos pela Companhia das Letras).

Miramar
238 págs., R$ 35,00
de Naguib Mahfuz. Trad. Safa Abou Chahla Jubran. Ed. Berlendis & Vertecchia (r. Moacir Piza, 63, CEP 01421-030, SP, tel. 0/xx/ 11/3085-9583).
O Beco do Pilão
320 pág., R$ 49,00
de Naguib Mahfuz. Trad. Paulo Daniel Farah. Ed. Planeta (r. Bernardino de Campos, 318, sala 53, CEP 04620-001, SP, tel. 0/xx/11/ 5543-7899).


Texto Anterior: Conferência discute Bakhtin
Próximo Texto: Ponto de fuga: Subterrâneos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.