São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2000


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Reedição de "Sobrados e Mucambos" e seminário internacional em São Paulo e no Rio de Janeiro voltam a pôr em evidência o sociólogo pernambucano, cujo centenário de nascimento acontece neste ano
Gilberto Freyre em questão

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Otto Maria Carpeaux, em 1958, escreveu que Gilberto Freyre sempre seria conhecido como o autor de "Casa-Grande & Senzala", mas que a posteridade daria a esse epíteto uma significação mais ampla: "Quem pensar em "Casa-Grande & Senzala", asseverava o crítico, "também pensará em "Sobrados e Mucambos", "Nordeste", "O Mundo Que o Português Criou" e em "Ordem e Progresso'". Lamentavelmente, porém, o tempo não deu muita razão a Carpeaux. Passado quase meio século da sua otimista previsão, Freyre continua sendo, em larga medida, conhecido como o autor de um único livro, um livro que de tão relevante e polêmico acabou por lançar os demais numa espécie de zona de penumbra.
A primeira e maior "vítima" do estrondoso sucesso de "Casa-Grande & Senzala" talvez tenha sido "Sobrados e Mucambos", a segunda parte da "Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil". Lançado em 1936, o livro, um dos mais importantes estudos que se produziu sobre a sociedade brasileira oitocentista, nasceu apagado pelas vivas reações despertadas pelo seu antecessor e, a despeito da sua importância, quase não mereceu dos críticos -que cedo o vincularam à primeira parte, como se se tratasse de um mero apêndice- uma atenção particularizada.
"Sobrados e Mucambos", esclarece-nos o subtítulo, investiga a "decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano". Dando sequência à história da família brasileira, iniciada três anos antes com "Casa-Grande e Senzala", Freyre, nesse segundo estudo, leva a cabo uma análise detalhada do movimento de "acomodação" (palavra cara ao sociólogo pernambucano) que o crescimento da vida urbana impôs ao "modus vivendi" dos senhores patriarcais. Dito de uma maneira mais "freyriana", o sociólogo promove uma descrição acurada do processo de "desorientalização" ou "europeização" dos hábitos e costumes daqueles brasileiros que habitavam as cidades litorâneas do país na primeira metade do século 19.
Amparado em variada e inovadora documentação (memórias, teses médicas, narrativas de viagem, romances etc.), o livro é uma sucessão de quadros, ricos em pormenores, das mudanças por que passou o cotidiano do brasileiro com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, com a abertura dos portos e com a rápida expansão das cidades.
Em suas páginas, longa é a série de temas que encontramos abordados, entre os quais vale citar: a gradativa vitória das ruas (do espaço público) sobre as casas (o auto-suficiente casarão patriarcal); a perda de prestígio do senhor patriarcal (figura rústica e pouco urbana) e a ascensão de "tipos de homem" mais citadinos e refinados (o embaixador, o cortesão, o negociante estrangeiro, o bacharel etc.); o desaparecimento da "matrona" dos tempos coloniais -com seus hábitos pouco polidos, corpo volumoso e trajes antiquados- e a emergência das damas de talhe fino, dotadas de "prendas" sociais e vestidas pelas modistas recém-chegadas da França; e especialmente a mutação na arte de morar, ou seja, a transformação dos casarões patriarcais (com suas dependências de escravos, alcovas e capelas) em modernos sobrados urbanos (menores, mais bem mobiliados e desprovidos das deselegantes gelosias) e das senzalas em mucambos, embriões das nossas favelas.
Pode-se alegar, e tem-se de fato alegado, que Freyre, em "Sobrados e Mucambos", utilizou de maneira acrítica um ou outro documento, exagerou aqui e ali nas generalizações, deixou de dar a devida atenção às implicações políticas das mudanças que descrevia e até mesmo amenizou os conflitos gerados por tais mudanças, conferindo excessiva ênfase às "acomodações" entre os elementos da velha ordem que se dissolvia e da nova que se consolidava.
É impossível, no entanto, deixar de reconhecer o quão bem documentada, articulada e sugestiva é a perspectiva que nos legou da mutante sociedade brasileira das primeiras décadas do oitocentos. Uma perspectiva que permanece ainda pouco explorada e que mereceria ocupar um papel mais relevante nos debates contemporâneos sobre a história da construção da sociedade brasileira.


Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio) e de "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", que acaba de ser lançado pela mesma editora.


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