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Reedição de "Sobrados e Mucambos" e seminário internacional em
São Paulo e no Rio de Janeiro voltam a pôr em evidência o sociólogo pernambucano, cujo centenário de nascimento acontece neste ano
Gilberto Freyre em questão
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
Otto Maria Carpeaux, em 1958, escreveu que
Gilberto Freyre sempre seria conhecido como
o autor de "Casa-Grande & Senzala", mas que
a posteridade daria a esse epíteto uma significação mais ampla: "Quem pensar em "Casa-Grande &
Senzala", asseverava o crítico, "também pensará em "Sobrados e Mucambos", "Nordeste", "O Mundo Que o Português Criou" e em "Ordem e Progresso'". Lamentavelmente, porém, o tempo não deu muita razão a Carpeaux. Passado quase meio século da sua otimista previsão, Freyre continua sendo, em larga medida, conhecido como o autor de um único livro, um livro que de
tão relevante e polêmico acabou por lançar os demais
numa espécie de zona de penumbra.
A primeira e maior "vítima" do estrondoso sucesso de
"Casa-Grande & Senzala" talvez tenha sido "Sobrados e
Mucambos", a segunda parte da "Introdução à História
da Sociedade Patriarcal no Brasil". Lançado em 1936, o
livro, um dos mais importantes estudos que se produziu sobre a sociedade brasileira oitocentista, nasceu
apagado pelas vivas reações despertadas pelo seu antecessor e, a despeito da sua importância, quase não mereceu dos críticos -que cedo o vincularam à primeira
parte, como se se tratasse de um mero apêndice- uma
atenção particularizada.
"Sobrados e Mucambos", esclarece-nos o subtítulo,
investiga a "decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano". Dando sequência à história da
família brasileira, iniciada três anos antes com "Casa-Grande e Senzala", Freyre, nesse segundo estudo, leva a
cabo uma análise detalhada do movimento de "acomodação" (palavra cara ao sociólogo pernambucano) que
o crescimento da vida urbana impôs ao "modus vivendi" dos senhores patriarcais. Dito de uma maneira
mais "freyriana", o sociólogo promove uma descrição
acurada do processo de "desorientalização" ou "europeização" dos hábitos e costumes daqueles brasileiros
que habitavam as cidades litorâneas do país na primeira
metade do século 19.
Amparado em variada e inovadora documentação
(memórias, teses médicas, narrativas de viagem, romances etc.), o livro é uma sucessão de quadros, ricos
em pormenores, das mudanças por que passou o cotidiano do brasileiro com a transferência da corte portuguesa para o Brasil,
com a abertura dos portos e com a
rápida expansão das cidades.
Em suas páginas, longa é a série de
temas que encontramos abordados,
entre os quais vale citar: a gradativa
vitória das ruas (do espaço público)
sobre as casas (o auto-suficiente casarão patriarcal); a perda de prestígio do senhor patriarcal (figura rústica e pouco urbana) e a ascensão de "tipos de homem" mais citadinos e refinados (o embaixador, o cortesão, o negociante estrangeiro, o bacharel
etc.); o desaparecimento da "matrona" dos tempos coloniais -com seus hábitos pouco polidos, corpo volumoso e trajes antiquados- e a emergência das damas
de talhe fino, dotadas de "prendas" sociais e vestidas pelas modistas recém-chegadas da França; e especialmente a mutação na arte de morar, ou seja, a transformação
dos casarões patriarcais (com suas dependências de escravos, alcovas e capelas) em modernos sobrados urbanos (menores, mais bem mobiliados e
desprovidos das deselegantes gelosias)
e das senzalas em mucambos, embriões das nossas favelas.
Pode-se alegar, e tem-se de fato alegado, que Freyre, em "Sobrados e Mucambos", utilizou de maneira acrítica um ou outro documento, exagerou aqui e ali nas generalizações, deixou
de dar a devida atenção às implicações políticas das mudanças que descrevia e até mesmo amenizou os conflitos gerados por tais mudanças, conferindo excessiva
ênfase às "acomodações" entre os elementos da velha
ordem que se dissolvia e da nova que se consolidava.
É impossível, no entanto, deixar de reconhecer o quão
bem documentada, articulada e sugestiva é a perspectiva que nos legou da mutante sociedade brasileira das
primeiras décadas do oitocentos. Uma perspectiva que
permanece ainda pouco explorada e que mereceria
ocupar um papel mais relevante nos debates contemporâneos sobre a história da construção da sociedade
brasileira.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e
autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio) e de "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", que acaba de ser
lançado pela mesma editora.
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