São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros
Em "O Melhor de Bertrand Russell" o lógico inglês trata de modo irônico temas como sexo e política
Reflexões para o homem da rua

Newton da Costa
especial para a Folha

O Melhor de Bertrand Russell" constitui uma coleção de excertos de diversas obras do filósofo inglês, editada por R.E. Egner e publicado em 1958 por Unwin e Hyman, em Londres. Todos os trechos foram escolhidos de trabalhos destinados ao público em geral. Bertrand Russell (1872-1970) foi uma figura marcante deste século. Teve atuação relevante e firme em numerosas ocasiões como, por exemplo, em acontecimentos relacionados à Primeira e à Segunda guerras, ao comunismo, ao movimento feminista, às bombas atômica e de hidrogênio e às políticas bélicas das grandes potências do Ocidente e do Oriente. Sua postura singular e independente o conduziu duas vezes à prisão no seu país (em 1914 e em 1961) e o levou a ser impedido de lecionar no Colégio da Cidade de Nova York, mediante processo judicial (1940) que o acusava de ser imoral, libidinoso, corruptor da juventude e indigno da missão de professor, não obstante os protestos de, entre outros, John Dewey e Albert Einstein. Porém recebeu inúmeras distinções e prêmios, entre os quais a medalha Morgan da Sociedade de Matemática de Londres e o Prêmio Nobel de Literatura (1950). Na realidade, houve diversos Russells, tais como: 1) Russell lógico e matemático, que, de modo genial, revolucionou a lógica e os fundamentos da matemática, criando a teoria dos tipos lógicos, a teoria das descrições e descobrindo um paradoxo que transformou os alicerces da matemática, entre outros feitos notáveis. Uma das obras mais significativas do século 20 é "Principia Mathematica", em três grossos volumes (1910, 1912 e 1913), escrita por A.N. Whitehead e Russell. Aliás, Whitehead costumava dizer, por volta de 1910, que Russell era o maior lógico da história desde Aristóteles. 2) Russell filósofo: suas contribuições para a filosofia são relevantes. Característica da metodologia filosófica de Russell era que, em filosofia, deve-se adotar uma postura científica, procedendo-se, genericamente falando, mais ou menos como o cientista equaciona seus problemas. Ele procurou edificar uma filosofia científica (por exemplo, em "Our Knowledge of the External World", 1914), a qual influenciou muitos pensadores, como R. Carnap, H. Reichenbach e P. Suppes. As idéias de Russell constituem o ponto de partida do que hoje se entende por "fundamentos da ciência", acepção técnica, em oposição metodológica à filosofia da ciência usual.

Leitor não-especialista
3) Russell crítico e reformador social: até os 38 anos, ele ocupou-se quase unicamente da lógica, da matemática e de temas técnicos de filosofia. No entanto, a partir daquela idade, tendo sua vida sofrido metamorfose profunda, deixou de lado a ênfase que dava aos temas que o haviam interessado até então para se devotar a outros, diretamente ligados a questões de cunho social: política, educação, sexo, casamento e ética. Ademais, decidiu escrever para qualquer público e não apenas para especialistas. Suas concepções nesses domínios obtiveram repercussão internacional e ele se tornou um dos filósofos mais lidos no mundo inteiro. Entre outras coisas, defendeu o pacifismo, combateu o uso de armas atômicas, criticou a guerra do Vietnã, analisou criticamente a religião e buscou novos rumos para a educação, fundando uma escola elementar com Dora Russell, uma de suas ex-mulheres. 4) Russell ensaísta e divulgador: é vasta a quantidade de ensaios e escritos de divulgação do filósofo britânico (para exemplificar, mais de dois terços de seus 70 livros contêm ensaios ou destinam-se à divulgação). É difícil encontrar um tema que não tenha sido tratado por ele. 5) Russell literato: escreveu contos e fez poesias. "Satan in the Suburb" (1953) é uma série de contos que se lê com prazer. Embora sua obra literária propriamente dita tenha sido pequena, o Prêmio Nobel de Literatura lhe foi concedido pelo conjunto de sua obra. O livro que se está considerando aqui inclui passagens de Russell sobre psicologia, religião, sexo e casamento, política e ética. Visa ao leitor não-especialista, o "homem da rua". O estilo é irônico e agradável, lembrando, às vezes, o de Voltaire. Ao contrário do que o editor parece acreditar, os textos são algo superficiais, embora dignos de leitura não apenas pelo "homem comum", mas, também, pelas pessoas cultas. Para podermos formar uma idéia do espírito da obra, reproduziremos dois trechos:

Troca de carícias
"É estranho que nem a Igreja nem a moderna opinião pública condenem a troca de carícias desde que ela só vá até certo ponto. O ponto em que o pecado começa é uma questão sobre a qual os casuístas divergem. Um eminente clérigo católico ortodoxo estabeleceu que um confessor pode acariciar os seios de uma freira, desde que o faça sem más intenções. Mas eu duvido que as autoridades modernas concordem com ele nesse ponto".
"Quando Benjamin Franklin inventou o pára-raios, o clero da Inglaterra e dos Estados Unidos condenou-o, com apoio entusiástico de Jorge 3º, como tentativa ímpia de frustrar a vontade de Deus. Pois, como sabiam as pessoas bem pensantes, o raio é enviado por Deus para punir a impiedade ou algum outro pecado grave, e os virtuosos nunca são atingidos pelos raios. Portanto, se Deus deseja atingir alguém, Benjamin Franklin não devia frustar o Seu desígnio...".
Russell foi, sem dúvida, um grande homem, lógico genial e filósofo de destaque, não obstante a maioria dos seus escritos não serem "profundos". Mudou incontáveis vezes de opinião sobre praticamente tudo durante sua longa vida.
O surpreendente é que criticava de forma ferrenha e com desprezo quem divergia de suas posições, as quais, com o tempo, abandonava... É lastimável, todavia, que hoje Russell esteja ficando algo fora de moda.



O Melhor de Bertrand Russell
176 págs., R$ 23,50 Robert E. Egner (org.). Trad. de Pedro Jorgensen Jr. Ed. Bertrand Brasil (av. Rio Branco, 99, 22º andar, RJ, CEP 20040-004, tel. 0/xx/21/263-6112).



Newton C.A. da Costa é professor no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de fundamentos da computação e lógica da Unip (Universidade Paulista), autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).


Texto Anterior: Lançamentos
Próximo Texto: José Antonio Pasta Jr.: A forma angustiada de Lukács
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.