São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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Ponto de fuga

Que viva México!

Jorge Coli
especial para a Folha

Quem tem mais de 50 anos lembra-se dos filmes mexicanos que invadiam as telas brasileiras. Faziam tanto sucesso quanto os de Hollywood e, às vezes, mais ainda. Eram melodramas terríveis: a expressão "parece um filme mexicano" servia para designar situações exageradas de sofrimento sentimental. Nos países hispano-americanos, a palavra "mexicanada" tinha o mesmo sentido.
Com o passar dos anos, as cópias tornaram-se raras, e ficou difícil saber como essas obras teriam resistido ao tempo. O Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que terminou há pouco, trouxe 11 desses títulos. Eles figuraram discretamente no conjunto da mostra, mas formaram, na verdade, o que de mais precioso se apresentou ali.
São filmes que deveriam figurar no panteão dos maiores e melhores. Muitos foram dirigidos por Emilio "El Indio" Fernández. Sua câmera é capaz de grandeza, densidade e comoção. Ela impõe, às imagens, dignidade e altivez. Seu fotógrafo, Gabriel Figueroa, transfigura rostos e corpos femininos, idealizando-lhes a beleza perfeita. A narração flui, segura e intensa, os diálogos embebem-se de poesia elevada. Números musicais se integram na trama, sem artifício ou quebra, acentuando a espessura dramática. Alguns historiadores compararam Fernández a Eisenstein; talvez ele lembre ainda mais John Ford, pelo sentido épico do drama humano. Fernández possui, entretanto, uma originalidade que é sua, e essas comparações não o subordinam. Indicam apenas a formidável qualidade de seus melodramas. Lágrima - É das fraturas sociais que nascem os sofrimentos amorosos nos filmes de Emilio Fernández. "Pueblerina", de 1948, mostra dois párias. Um ex-presidiário volta a sua aldeia, tenta refazer a vida e esposar a mulher que ama. Mas ela fora estuprada por um poderoso, teve um filho, vive retirada e quase enlouquecida numa cabana fora da cidade. "Maria Candelaria", de 1943, com os super-astros Dolores del Rio e Pedro Armendáriz, faz com que a heroína, cujo estigma é ser filha de uma prostituta, termine apedrejada, vítima dos preconceitos de uma pequena aldeia. O mesmo casal estrela "Bugambilia" ("Coração Torturado", 1944), conto de amor entre o capataz e a filha do patrão. Em "Enamorada", Maria Félix, a protagonista, abandona riqueza e casamento bom para seguir um líder zapatista, num final que retoma a conclusão de "Marrocos" (1930), de Sternberg, onde Marlene Dietrich acompanhava, a pé, as tropas de seu legionário Gary Cooper.
As paixões individuais inserem-se no tecido social e histórico como parte deles, não como enxertos mais ou menos bem-sucedidos. Melhor do que compreender aquilo que está ocorrendo, o espectador vive as ramificações contraditórias dos embates, das injustiças, das frustrações e dos desfechos tremendos.

Mármore - Um outro desses diretores mexicanos, Roberto Gavaldón, também foi representado no ciclo mexicano do festival carioca. "La Diosa Arrodillada" ("A Deusa Ajoelhada", 1947), cujo título só se compara ao de "A Condessa Descalça" (1954), filme americano de Mankiewicz, mostra que os homens são frágeis, patéticos, e as mulheres, magníficas como estátuas. Ao lado de Arturo de Córdoba, Maria Félix nunca esteve tão resplandecente. Ela é o modelo para uma escultura, em que Vênus, nua, se põe de joelhos, tornando-se o centro de obsessões trágicas. Diverso de Fernández, Gavaldón situa tudo numa sociedade luxuosa e elegante.

Pepitas - Nenhum desses filmes mexicanos demonstra feitura artesanal ou acabamento desleixado. As técnicas de filmagem, de montagem, a fotografia e o som eram o que de melhor se podia fazer na época. Isso, mais o gênio dos diretores e o magnetismo dos intérpretes a serviço de situações emotivas, explica o sucesso fabuloso que esses filmes tiveram em toda a América Latina. Tomara que o ciclo proposto pelo Festival do Rio BR 2002 seja retomado em outras cidades. Tomara também que cópias restauradas dessas obras surjam em DVD. São filmes que deveriam encontrar, dentro da história do cinema internacional, o lugar elevado que merecem.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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