São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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Ponto de fuga

Com som sem som

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Melhor ir direto: ópera sonorizada nunca dá certo, de jeito nenhum. Microfones, alto-falantes são empregados quando o espetáculo ocorre em lugares impróprios: estádios esportivos, sambódromos, descampados em que o som se perde.
São representações feitas em nome de uma demagogia da arte. Elas destroem a obra, que vem substituída por um vago populismo cultural, grandiloqüente, interminável e kitsch. A ampliação sonora ocorre também em alguns teatros de ópera nos EUA. O prazer é, ali, esmagado sob um comodismo insípido, caro à pasteurização balofa que a classe média do país cultiva.
A amplificação do som age como um vampiro que suga vida e alma da música. Os timbres tornam-se metalizados; o eco acrescentado artificializa as ressonâncias; as vozes se igualam no volume. Some o jogo de tensões, some o prazer físico que torna a escuta ao vivo insubstituível.
Essa neutralidade desenxabida vem plastificando musicais, como "Chicago" ou "O Fantasma da Ópera". Neste caso, é possível argumentar que os cantores são crooners, com vozes insuficientes para uma sala grande e que o público não liga muito para essas coisas. Seria possível responder que musicais, dos melhores, existiam bem antes dessa moda ser inventada. Mas a questão agora é outra: porque cargas d'água alguém pôde supor que o ótimo elenco de ópera, escalado para "Candide", dado no Teatro Municipal de São Paulo, cuja acústica é excelente, necessitava desse apoio dissimulado? Ou que a Orquestra Municipal, em excelente forma, com esplêndida regência, precisasse de estridências?

Pé na letra
Leonard Bernstein chamou seu "Candide" de opereta, definição que corresponde à vivacidade espirituosa e elegante da música e do texto. No entanto a complexidade elaborada da partitura, as exigências nada cômodas para os cantores fazem dele, de fato, uma ópera.
Conheceu versões diferentes: inicialmente para a Broadway, transformou-se em obra mais ambiciosa para os teatros de ópera e, aqui, não pressupõe amplificação. É verdade que um outro elemento ajudou a tornar pesado o que devia ser leve e esfuziante no espetáculo de São Paulo.
Traduzir libretos para serem cantados é um exercício interessante e muito difícil. Hoje ocorre bem menos, mas antigamente era comum que as óperas fossem transpostas para outras línguas. Por vezes, isso acontecia com sucesso quando as palavras se moldavam bem à melodia. Nos musicais há grandes exemplos: em velhos tempos, Henrique Pongetti fez uma inspirada tradução de "My Fair Lady", transformando "I could have danced all night", num perfeito "eu dançaria assim". Nesse espetáculo Bibi Ferreira, Paulo Autran e Jaime Costa enchiam o antigo teatro Paramount com suas vozes naturais, e nem do último poleiro se perdia o que quer que fosse.
O texto inglês de "Candide", no espetáculo dado em São Paulo, também foi traduzido. Mas as centelhas finas das palavras originais viraram cinza espessa na versão em português, sem imaginação, sem prosódia, com rimas terríveis, contra-sensos e soluções simplórias. Um exemplo: "Life is happiness indeed;/ Mares to ride and books to read" virou "Essa vida é tão feliz;/ Tudo é paz no meu país...".

Grau
Neste mundo de problemas tão graves, ficar lamentando a sonorização de uma ópera ou a vulgaridade de um libreto mal traduzido pode parecer frívolo. No entanto, ao ceder aqui, ao acomodar ali, ao baixar o nível de exigências, termina-se, pouco a pouco, aceitando qualquer gato por qualquer lebre.

Barra Funda
No Teatro São Pedro, em São Paulo, foi representada uma ópera muito rara: "A Dinner Engagement", de sir Lennox Berkeley. Composta em 1953, é uma jóia de puro "nonsense" inglês. O elenco misturou brasileiros e gente de fora, espantosos como atores e como cantores, ágeis em figurinos engraçados, de corte perfeito. O texto, desopilante, que contém uma receita de picles preparados com nozes, foi escrito por Paul Dehn, roteirista responsável, entre outros vários, pelos filmes que formaram a seqüência de "O Planeta dos Macacos".


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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