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E A HISTÓRIA CONTINUA
PARA O CIENTISTA POLÍTICO FRANCIS FUKUYAMA,
1º MUNDO NÃO IRÁ RESOLVER O PROBLEMA DA IMIGRAÇÃO
EDUARDO SZKLARZ
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quando proclamou o fim
da história, o historiador e
cientista político norte-americano Francis Fukuyama respirava os ares otimistas do
início dos anos 90. O liberalismo finalmente triunfara sobre o comunismo, seu último inimigo secular.
Não que a roda do progresso houvesse parado de girar; simplesmente
não havia terreno fora da modernidade. Eleições livres e liberdade de
mercado formavam a receita que
prometia trazer a paz e a prosperidade mundial.
Mas a história revelou ter outras
facetas. "Hoje, muitos problemas do
mundo não vêm de estados extremamente fortes, como a Alemanha
nazista ou a União Soviética, mas de
Estados fracos demais", diz o autor
de "Construção de Estados" (Rocco). "Eles são as principais fontes de
males como terrorismo, pobreza,
Aids e drogas."
EUA, Brasil,
Argentina e Chile
absorveram imigrantes
de forma mais bem-sucedida
do que a Europa
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Com as migrações, diz Fukuyama,
esses problemas passaram a se refletir no coração de países "pós-históricos", como a França, que está hoje
desnorteada com os sérios distúrbios que têm tomado conta de suas
principais cidades.
Professor de economia política internacional na Universidade Johns
Hopkins (EUA), Fukuyama falou à
Folha na quarta-feira passada, em
Buenos Aires, onde participava de
um seminário sobre desenvolvimento econômico. Para ele, os princípios do liberalismo continuam
corretos; o problema é que foram
mal-interpretados.
Folha - Qual é a sua avaliação dos
distúrbios que estão ocorrendo sobretudo nas cidades da França, além de
Bélgica e Alemanha?
Francis Fukuyama - Creio que no
centro da questão reside um problema social que não tem sido bem resolvido pelo modelo francês. Quase
8% da população é de imigrantes
muçulmanos, que, embora sejam cidadãos há duas ou três gerações,
ainda não se sentem parte da sociedade. Por um lado, esse quadro resulta de problemas econômicos, já
que não há empregos para essas pessoas. Mas também existe um problema cultural: uma resistência em ver
os muçulmanos como verdadeiros
membros da sociedade francesa.
Folha - Os problemas dos países periféricos estão se refletindo nas cidades do Primeiro Mundo?
Fukuyama - Sim. Com a imigração,
grande parte do mundo em desenvolvimento passou a se reproduzir
dentro dos países desenvolvidos. É
um problema difícil de resolver democraticamente. A única solução
possível a longo prazo seria criar um
senso de identidade nacional mais
inclusiva para pessoas vindas de fora. EUA, Brasil, Argentina e Chile
conseguiram absorver imigrantes de
forma mais bem-sucedida do que a
Europa.
Folha - Mas os EUA também foram
criticados depois do Katrina, pelo fato
de terem sido os pobres, negros e imigrantes os mais atingidos pelos efeitos do furacão.
Fukuyama - Muitos europeus dizem que isso revela a falência do modelo social americano. Discordo. De
fato, os governos federal e estatal demonstraram grande falta de preparação. Mas creio que, com a enorme
mobilização gerada, essa situação
não se repetirá num futuro próximo.
Folha - Os princípios de diminuição
do Estado defendidos pelo Consenso
de Washington têm sido desacreditados na América Latina. Havia neles algum erro conceitual?
Fukuyama - O Consenso de Washington foi uma resposta legítima
para as crises dos anos 80. Países latino-americanos tinham amplos setores estatais muito regulados e precisavam retirar o Estado do âmbito do
mercado privado.
Essa política funcionou muito
bem em países como a China. O problema é que esse conselho, que pretendia reduzir o alcance do Estado,
infelizmente teve o efeito de reduzir
também sua capacidade. Não se trata da falência do liberalismo, pois os
princípios ainda são bons, e sim de
uma confusão sobre essas duas dimensões. Muitos pensaram que o
Estado tinha que encolher, sem
compreender que algumas partes
suas precisavam se fortalecer.
Folha - Quais partes?
Fukuyama - Por exemplo, as instituições. Uma reforma econômica liberal que não leve em conta todas as
instituições importantes vai falhar.
Você terá muitos problemas se abrir
a conta de capital (diferença entre
receita e gasto) sem ter boa regulação bancária.
Se se tentar privatizar indústrias
estatais sem que o Estado tenha capacidade de realizá-la de forma
transparente, vai pôr a perder todo o
projeto de reforma liberal.
Folha - Como está o Brasil nesse processo?
Fukuyama - O Brasil nunca realizou
a liberalização de maneira tão entusiasmada como o Chile ou a Argentina dos anos 90. Seus problemas são
sobretudo institucionais. Por exemplo, o federalismo brasileiro permitiu aos Estados ter déficits de orçamento, o que vem sendo contornado
desde o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Como em outros países em desenvolvimento, a diminuição do Estado
pode melhorar a governança em algumas áreas. Quanto mais você regula, mais cria incentivos para a corrupção, porque as decisões de mercado passam a ser feitas dentro do
sistema político e abrem espaço para
suborno e outras manobras.
Folha - Como construir uma ordem
mundial baseada na soberania dos Estados em um mundo cada vez mais interdependente?
Fukuyama - Essa é uma questão
complicada. A globalização pode
minar o poder do Estado mas também, por outro lado, pode ajudar a
construí-lo. Polônia, Romênia e outros países do Leste Europeu tiveram
enorme melhora em governabilidade graças à pressão para entrar na
União Européia.
Quem entrou na globalização com
instituições fortes foi capaz de se beneficiar dela. Países como China e
Índia tinham instituições relativamente estáveis quando começaram
o processo de desenvolvimento e
conseguiram controlar o impacto da
globalização sobre suas sociedades.
Folha - Atualmente, a maior ameaça
ao liberalismo vem de atores não-estatais?
Fukuyama - A novidade não é a
existência de atores não-estatais,
mas sua convergência com a tecnologia moderna. Se você mantiver radicais de um lado e armas nucleares
de outro, o problema será contornável. O problema é que nunca lidamos com as duas coisas juntas.
O fim da história continua sendo
uma questão em debate. Outros problemas acompanham a modernização, como o aquecimento global.
Nossa civilização moderna e tecnológica talvez esteja colocando em risco a sua própria existência.
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