São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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E A HISTÓRIA CONTINUA

PARA O CIENTISTA POLÍTICO FRANCIS FUKUYAMA, 1º MUNDO NÃO IRÁ RESOLVER O PROBLEMA DA IMIGRAÇÃO

EDUARDO SZKLARZ
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando proclamou o fim da história, o historiador e cientista político norte-americano Francis Fukuyama respirava os ares otimistas do início dos anos 90. O liberalismo finalmente triunfara sobre o comunismo, seu último inimigo secular.
Não que a roda do progresso houvesse parado de girar; simplesmente não havia terreno fora da modernidade. Eleições livres e liberdade de mercado formavam a receita que prometia trazer a paz e a prosperidade mundial.
Mas a história revelou ter outras facetas. "Hoje, muitos problemas do mundo não vêm de estados extremamente fortes, como a Alemanha nazista ou a União Soviética, mas de Estados fracos demais", diz o autor de "Construção de Estados" (Rocco). "Eles são as principais fontes de males como terrorismo, pobreza, Aids e drogas."


EUA, Brasil, Argentina e Chile absorveram imigrantes de forma mais bem-sucedida do que a Europa


Com as migrações, diz Fukuyama, esses problemas passaram a se refletir no coração de países "pós-históricos", como a França, que está hoje desnorteada com os sérios distúrbios que têm tomado conta de suas principais cidades.
Professor de economia política internacional na Universidade Johns Hopkins (EUA), Fukuyama falou à Folha na quarta-feira passada, em Buenos Aires, onde participava de um seminário sobre desenvolvimento econômico. Para ele, os princípios do liberalismo continuam corretos; o problema é que foram mal-interpretados.
 

Folha - Qual é a sua avaliação dos distúrbios que estão ocorrendo sobretudo nas cidades da França, além de Bélgica e Alemanha?
Francis Fukuyama -
Creio que no centro da questão reside um problema social que não tem sido bem resolvido pelo modelo francês. Quase 8% da população é de imigrantes muçulmanos, que, embora sejam cidadãos há duas ou três gerações, ainda não se sentem parte da sociedade. Por um lado, esse quadro resulta de problemas econômicos, já que não há empregos para essas pessoas. Mas também existe um problema cultural: uma resistência em ver os muçulmanos como verdadeiros membros da sociedade francesa.

Folha - Os problemas dos países periféricos estão se refletindo nas cidades do Primeiro Mundo?
Fukuyama -
Sim. Com a imigração, grande parte do mundo em desenvolvimento passou a se reproduzir dentro dos países desenvolvidos. É um problema difícil de resolver democraticamente. A única solução possível a longo prazo seria criar um senso de identidade nacional mais inclusiva para pessoas vindas de fora. EUA, Brasil, Argentina e Chile conseguiram absorver imigrantes de forma mais bem-sucedida do que a Europa.

Folha - Mas os EUA também foram criticados depois do Katrina, pelo fato de terem sido os pobres, negros e imigrantes os mais atingidos pelos efeitos do furacão.
Fukuyama -
Muitos europeus dizem que isso revela a falência do modelo social americano. Discordo. De fato, os governos federal e estatal demonstraram grande falta de preparação. Mas creio que, com a enorme mobilização gerada, essa situação não se repetirá num futuro próximo.

Folha - Os princípios de diminuição do Estado defendidos pelo Consenso de Washington têm sido desacreditados na América Latina. Havia neles algum erro conceitual?
Fukuyama -
O Consenso de Washington foi uma resposta legítima para as crises dos anos 80. Países latino-americanos tinham amplos setores estatais muito regulados e precisavam retirar o Estado do âmbito do mercado privado.
Essa política funcionou muito bem em países como a China. O problema é que esse conselho, que pretendia reduzir o alcance do Estado, infelizmente teve o efeito de reduzir também sua capacidade. Não se trata da falência do liberalismo, pois os princípios ainda são bons, e sim de uma confusão sobre essas duas dimensões. Muitos pensaram que o Estado tinha que encolher, sem compreender que algumas partes suas precisavam se fortalecer.

Folha - Quais partes?
Fukuyama -
Por exemplo, as instituições. Uma reforma econômica liberal que não leve em conta todas as instituições importantes vai falhar. Você terá muitos problemas se abrir a conta de capital (diferença entre receita e gasto) sem ter boa regulação bancária.
Se se tentar privatizar indústrias estatais sem que o Estado tenha capacidade de realizá-la de forma transparente, vai pôr a perder todo o projeto de reforma liberal.

Folha - Como está o Brasil nesse processo?
Fukuyama -
O Brasil nunca realizou a liberalização de maneira tão entusiasmada como o Chile ou a Argentina dos anos 90. Seus problemas são sobretudo institucionais. Por exemplo, o federalismo brasileiro permitiu aos Estados ter déficits de orçamento, o que vem sendo contornado desde o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Como em outros países em desenvolvimento, a diminuição do Estado pode melhorar a governança em algumas áreas. Quanto mais você regula, mais cria incentivos para a corrupção, porque as decisões de mercado passam a ser feitas dentro do sistema político e abrem espaço para suborno e outras manobras.

Folha - Como construir uma ordem mundial baseada na soberania dos Estados em um mundo cada vez mais interdependente?
Fukuyama -
Essa é uma questão complicada. A globalização pode minar o poder do Estado mas também, por outro lado, pode ajudar a construí-lo. Polônia, Romênia e outros países do Leste Europeu tiveram enorme melhora em governabilidade graças à pressão para entrar na União Européia.
Quem entrou na globalização com instituições fortes foi capaz de se beneficiar dela. Países como China e Índia tinham instituições relativamente estáveis quando começaram o processo de desenvolvimento e conseguiram controlar o impacto da globalização sobre suas sociedades.

Folha - Atualmente, a maior ameaça ao liberalismo vem de atores não-estatais?
Fukuyama -
A novidade não é a existência de atores não-estatais, mas sua convergência com a tecnologia moderna. Se você mantiver radicais de um lado e armas nucleares de outro, o problema será contornável. O problema é que nunca lidamos com as duas coisas juntas.
O fim da história continua sendo uma questão em debate. Outros problemas acompanham a modernização, como o aquecimento global. Nossa civilização moderna e tecnológica talvez esteja colocando em risco a sua própria existência.

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